QUESTÃO DE AUTORIDADE

Padre Anthony Cekada
1990

Cuidado com quem diz:
“Siga-me ou morra!”

Há algumas semanas, fui convidado a comparecer a um conclave e ajudar a eleger um papa.

Trinta anos atrás [o A. escreve em 1990 (N. do T.)], a oferta teria sido irresistível, mas hoje em dia qualquer sacerdote católico tradicional cujo nome apareça em malas diretas recebe no mínimo um convite desses por ano. O conclave deste ano se congregará em algum lugar no Kansas durante o mês de julho. Escusado dizer que planejo estar alhures…

Um conclave caseiro choca-nos como coisa bizarra ou mesmo cômica. Quem são essas pessoas no Kansas – ano passado, era o Canadá – para eleger o Sucessor de Pedro e Vigário de Cristo na terra? Para que propor tamanho absurdo?

Esse exemplo exótico, sem embargo, ilustra um dilema muito real com que os católicos tradicionais se deparam: a natureza mesma da Igreja é hierárquica, fundada sobre uma autoridade que vem do próprio Cristo. Mas a quem recorrer quando os homens da Igreja em posições de autoridade abandonam a fé, como aconteceu em nossos dias? Como então resolvemos as questões prementes sobre, digamos, teologia, direito canônico ou prática pastoral, questões estas que tão-somente alguém com autoridade verdadeira pode resolver?

Os organizadores do conclave no Kansas responderiam: É simples, basta eleger um papa. Tão logo você tenha um papa, pode voltar para casa sossegado. Ele terá autoridade suprema, ele nomeará uma hierarquia católica e ele resolverá todas as questões.

Ação de Preservação

A maioria dos católicos que tentam preservar a Missa tradicional e a íntegra Fé Católica, tanto clero como leigos, reconhece instintivamente a loucura do empreendimento extremo dos conclavistas. Nós entendemos, ao menos implicitamente, que nossos esforços não passam de uma “ação de preservação”, para salvar o maior número de almas que pudermos até que venham dias melhores.

E a maioria de nós se dá conta, de novo ao menos implicitamente, de que seria gravemente errado – de fato, manifestamente cismático – montar uma “hierarquia” paralela por conta própria, pela atribuição de “autoridade” a alguma pessoa ou organização para ser nosso magistério, legislador supremo e juiz universal.

Nenhum clérigo tradicional, vale lembrar, seja ele sacerdote ou mesmo bispo, possui jurisdição ordinária: poder dado pela Igreja para comandar súditos, fazer leis, interpretá-las autenticamente, conduzir julgamentos, emitir sentenças, compor disputas legais e infligir penas canônicas. A lei da Igreja concede jurisdição ordinária somente para indivíduos formalmente designados a ofícios específicos: para um Bispo, por exemplo, que o Papa nomeie cabeça de uma diocese, ou para um padre que o cabeça de uma diocese designe como pastor, ou para outro padre que o Papa nomeie juiz num tribunal eclesiástico.

Diferentemente desses oficiais, um padre ou bispo que celebra a Missa tradicional goza somente de jurisdição suprida: em essência, somente poder suficiente para distribuir os sacramentos.

Apresentando… o “Autsequismo”!

Os clérigos católicos tradicionais reconhecem o escopo restrito de sua autoridade… geralmente. Todavia, um padre (ou um bispo, ou mesmo um leigo) pode facilmente ultrapassar os limites, quando, numa questão específica, digamos que ele age como se fosse autêntico mestre, legislador e juiz, ao infligir o equivalente de penas eclesiásticas àqueles que colidem com ele.

Chamo isso de síndrome do “Siga-me ou morra!”, ou, para lhe dar um nome mais formal, “autsequismo” (de “aut sequi, aut mori”, que é a tradução latina da sentença).

A síndrome funciona assim: o Padre W. (ou o Escritor X., ou o Bispo Y., ou a Fraternidade Z., a propósito) aborda uma questão teológica disputada ou um problema espinhoso sobre como aplicar as normas do direito canônico ou a prática pastoral numa dada situação. Forma alguns princípios (até aqui, tudo bem), reúne provas (um passo razoável), chega a alguma conclusão (o que é justo, espera-se), e então salta à condenação de todo o clero e laicato que discordem de sua solução como sendo todos um bando de – e aqui varia – hereges, cismáticos, pecadores ou genericamente réprobos que agem com absoluta má-fé e, portanto, devem ser evitados (Puxa!).

É nessa fase final do processo – arrogando-se a autoridade para infligir pena contra o não-assentimento – que o agressor ultrapassa seu limite de velocidade jurisdicional e derrapa para o mundo do “Siga-me ou morra”.

Algumas Questões de “Siga-me ou Morra”

O autsequismo está presente no cenário tradicionalista há um bom tempo e esconde seu rosto sob diversos disfarces:

— Vários grupos não sedevacantistas declarando que os grupos sedevacantistas são “cismáticos” e a serem evitados;

— Vários grupos e padres sedevacantistas declarando que os grupos não sedevacantistas são “hereges” ou “cismáticos” e igualmente a serem evitados;

— Um padre na Pensilvânia emitindo carta de “excomunhão” a um leigo irritante;

— Um padre na Costa Oeste anunciando que os membros da Birch Society estavam barrados da recepção dos sacramentos em sua igreja;

— Um grupo de irmãs tradicionalistas, elas mesmas não possuidoras de qualquer reconhecimento canônico, declarando “sacrílega” e “acanônica” a renovação de votos de uma ex-membro;

— Uma associação leiga no Meio-Oeste exigindo de um padre convidado que concordasse por escrito com a posição deles acerca do Papa antes de permitirem que ele celebrasse um casamento na capela deles.

Deixai Vir as Criancinhas

As crianças que assistem à Missa nas capelas onde sirvo não têm acesso a bispo que as confirme com o rito tradicional. Alguns pais, então, levam suas crianças a uma das capelas operadas pela Fraternidade São Pio X, quando um dos bispos da Fraternidade faz seu rodízio anual. Pensar-se-ia que a Fraternidade não teria objeção a isso: afinal de contas, parece desejável que tantas crianças quantas possível recebam esse sacramento. No entanto, pensar-se-ia errado, e há aí uma história.

O Arcebispo Dom Marcel Lefebvre, o fundador da Fraternidade, ordenou-me sacerdote em 1977. Alguns anos mais tarde, em 1983, estive entre um grupo de nove padres americanos que, entre outras coisas, recusaram-se a implementar uma série de mudanças litúrgicas que ele propôs e declinaram aceitar algumas das opiniões teológicas particulares dele. (Embora Sua Excelência seja bispo, ele não é cabeça de uma diocese e, portanto, não desfruta de jurisdição alguma do Papa para legislar e fazer cumprir leis.) Isso levou a uma separação entre Sua Excelência e nós nove, e nesse pé se encontra a questão.

Um Bocado a Declarar

Sete anos depois, em 1990, algumas famílias que assistem às minhas Missas apresentaram suas crianças para Confirmação numa capela que um dos bispos da Fraternidade visitaria. O padre encarregado, por sua vez, apresentou-lhes uma Declaração de duas páginas, em espaço simples, para os filhos deles assinarem como condição para a recepção da Confirmação. O propósito da Declaração (que combina doses pesadas de terminologia teológica, inglês execrável e citações em latim do Código de Direito Canônico… para crianças de dez anos de idade, note-se bem!) era forçar os candidatos (a) a repudiar opiniões teológicas que a Fraternidade pensa que eu defendo, e (b) a aceitar as posições teológicas que a Fraternidade defende (ou pensa que defende; um pouco complicado isso).

O ultraje, claro, é a reação apropriada. Mas analise os processos de pensamento que levam à exigência “extra”: A Fraternidade tirou suas conclusões sobre certas questões teológicas, canônicas e de rubricas. Tudo bem. Essas opiniões, a Fraternidade sente que são diametralmente opostas às do Padre Cekada, que a Fraternidade considera completamente errado. Tudo bem, e nada surpreendente para mim. Mas aí, apresentando uma Declaração para os confirmandos, a Fraternidade vai adiante e ameaça quem não compartilha de suas conclusões com o equivalente a uma penalidade eclesiástica: Aceite nossos princípios, provas, conclusões e julgamentos sobre todos os pontos, assinando essa Declaração, ou um sacramento lhe será negado.

A Fraternidade, destarte, posiciona-se como se fosse um mini-magistério, legislador e juiz eclesiástico improvisados, com poder para fazer valer sua vontade: Siga-me ou morra, noutras palavras.

Erro e Correção

Já faz cerca de um ano que tenho atuado como “pastor” de facto da Missão de Santa Clara, em Columbus, Ohio, para onde viajo todos os domingos, para celebrar Missa. Entre as almas que agora vão à Missa lá, há alguns leigos que, em vários estágios e em diversos níveis, tornaram-se apoiadores de uma instituição em Spokane, Washington, chamada Monte São Miguel. O grupo de São Miguel foi fundado por Francis Schuckardt, um pregador leigo da Mensagem de Fátima que, na década de 1960, reuniu um grupo de seguidores entusiasmados e, pouco a pouco, começou a erigir para si próprio o que só posso descrever como um clássico culto à personalidade. Em 1970, Schuckardt fez com que um “bispo” casado vétero-católico, um tal Daniel Q. Brown, consagrasse-o “bispo”. (“Vétero-católico” é termo genérico para uma porção de seitas cismáticas originadas nos séculos XVIII e XIX.)

A despeito disso, a personalidade magnética de Schuckardt, sua eloquência e ênfase na Missa tradicional e na piedade mariana conquistaram muitos partidários leigos para o seu movimento em várias partes dos E.U.A. ao longo dos anos. Dada a ignorância da maioria dos leigos acerca da natureza cismática do movimento vétero-católico – mais de uma vez já encontrei outros católicos tradicionais que inadvertidamente se misturaram com o vétero-catolicismo –, é somente justo presumir que a maioria das pessoas acompanhou a coisa de boa fé, sem absolutamente nenhuma intenção de se envolver com o cisma vétero-católico.

No início da década de 1980, alguns membros mais velhos do grupo, localizado então em Spokane, forçaram Schuckardt a sair e, tudo indica, começaram o processo de tentar endireitar as coisas. Em 23 de abril de 1985, o grupo abjurou seus erros e circulou pelo menos duas declarações públicas que atestam esse fato. A nova liderança, ademais, declarou que o grupo fora no passado uma “seita” [“cult” (N. do T.)], que os membros só querem ser bons católicos tradicionais e que a liderança quer alinhar tudo o que eles fazem com as crenças e práticas católicas tradicionais.

Mais uma vez, pensar-se-ia que todos se regozijariam com o desfecho: abjuração, renúncia dos erros passados, determinação a serem somente bons católicos, e assim por diante. Mas, novamente, pensar-se-ia errado, e outra vez, há aí uma outra história.

Uma Carta Inesperada

Recentemente, recebi carta extensa e inesperada do Rev. Pe. Clarence Kelly, sacerdote com quem eu havia trabalho em Oyster Bay Cove, Nova York, mas com quem eu não tinha ligação alguma desde julho de 1989.

Em suma, o Padre: (a) Condena os delitos de Francis Schuckardt, particularmente seu envolvimento com vétero-católicos — assim como fiz há muitos anos, a propósito, num longo artigo que escrevi sobre o movimento vétero-católico. (b) Descarta como “insincera” ou “afetada” (baseado em parâmetros de sua própria criação, lamentavelmente!) a abjuração de erro e outras retratações públicas que o grupo e seus líderes fizeram depois da expulsão de Schuckardt. (c) Presume que todo o mundo que algum dia esteve associado com o grupo de Monte São Miguel, incluindo famílias a três mil quilômetros de distância, em Columbus, agiram com absoluta má fé (i.e., sabendo que o envolvimento com vétero-católicos é errado ou cismático, mas acompanhando a coisa mesmo assim). E (d)Conclui que, na realidade, todo o mundo ligado com o grupo de São Miguel ainda faz parte de “uma seita vétero-católica”.

Mas por que, perguntará o leitor, o Padre Kelly está lhe escrevendo sobre isso, Padre Cekada, dado que o senhor não tem absolutamente nenhuma ligação seja com o Padre Kelly ou com o grupo de Monte São Miguel? Bem, tendo ponderado a questão e chegado a essa conclusão, o Padre Kelly escreveu para me informar da decisão dele de que eu, Padre Cekada, devo agora (a) considerar alguns de meus paroquianos como cismáticos impenitentes e (b) negar-lhes os sacramentos. Se eu agir doutro modo, “escandalizo e ponho em perigo as almas e a fé deles”, “poluo a pureza da religião católica” e torno-me lobo em pele de cordeiro — linguagem do tipo, favor notar, normalmente reservado a decretos papais pronunciando sentenças condenatórias.

Examine o processo pelo qual ele chegou à sua conclusão prática: o Padre Kelly (que, como qualquer outro sacerdote ou organização tradicionalista, não possui absolutamente nenhuma autoridade jurisdicional) montou suas próprias regras pelas quais seriam julgados aqueles que ele acusasse, e, quando (naturalmente) os acusados não se adequaram aos parâmetros dele, ele os considerou todos culpados conforme os autos. E ele impôs a pena: alguns de seus paroquianos, Padre Cekada, não podem receber os sacramentos, e, se o senhor agir doutro modo, o senhor é uma ameaça à religião católica e deve ser condenado publicamente como tal.

Assim, igual à Fraternidade São Pio X, também o Padre Kelly posicionou-se como se fosse um mini-magistério, legislador e juiz eclesiástico ad hoc, com poder para fazer valer sua vontade: Siga-me ou morra, noutras palavras.

Os Fiéis de Boa Fé

Convém fazer uma observação adicional a ambos os casos acima. Nenhuma organização ou sacerdote tradicional que eu conheça – e isso inclui tanto a Fraternidade São Pio X quanto o Padre Kelly – exige declarações ou abjurações formais dos católicos do Novus Ordo que se “convertem” e desejam receber os sacramentos tradicionais. A presunção razoável subjacente a isso é a de que os novatos que se afirmam católicos e estão tentando agir como católicos (qualquer que tenha sido o envolvimento passado deles nos erros e depredações da religião conciliar): (a) ao menos agiram de boa fé e (b) foram absolvidos, assim que se confessaram com um sacerdote tradicional, de quaisquer censuras em que pudessem ter incorrido. Dada essa presunção, parece adverso à salvação das almas – além de ser enorme tolice – confabular exigências “extra” para impôr a pessoas que rejeitam a religião conciliar há anos.

Falsos Dilemas

A síndrome do “Siga-me ou morra” não trouxe nada além de sofrimento, para um rebanho espalhado que tenta desesperadoramente preservar a fé em circunstâncias que já são adversas o bastante. Os padres, bispos e organizações que brincaram de hierarcas geralmente acabaram infligindo aos grupos e indivíduos católicos tradicionais: falsos dilemas, discórdia pública, crises de consciência provocadas, escândalo, desavenças familiares e uma série de outros males; precisamente o tipo de coisas que afastam as pessoas da verdadeira Missa ao invés de atraí-las para ela.

Embora ninguém aprecie mais a certeza absoluta do que os católicos fiéis à tradição, aqueles de nós responsáveis por pastorear os rebanhos precisamos tomar cuidado, para não investirmos pronunciamentos que não passam de nossas opiniões com o tipo de autoridade que nem nós nem nossas opiniões possuímos. Afinal de contas, não são absolutamente todas as teorias, opiniões ou juízos práticos que elaboramos questão de graça ou culpa, salvação ou perdição, céu ou inferno. Se pretendermos o contrário e começarmos a distribuir penalidades a torto e a direito, nós (e não os alvos de nossa ira) é que nos tornamos quem conduz uma lenta valsa rumo ao cisma.

Antídoto ao Autsequismo

O antídoto para o autsequismo, a meu juízo, é duplo:

Reconheça seus limites: Seja qual for sua opinião sobre qualquer uma das grandes questões que os católicos tradicionais debatem tão frequentemente, lembre-se de que você não tem nenhuma autoridade de Cristo e da Igreja para resolvê-la definitivamente, nem tem o poder de infligir censuras nos que discordarem de suas conclusões.

Presuma a boa vontade: Nem todo o mundo é um gênio tão grande como você em se tratando de dogmática, eclesiologia, direito canônico, história da Igreja, teologia moral, ou o que for; naturalmente, seus oponentes não conseguem perceber o brilhantismo do seu raciocínio. Mas talvez fosse bom (ao menos de vez em quando) presumir que eles têm um pouco de boa vontade. Tente.

A síndrome do “siga-me ou morra” provavelmente não desaparecerá antes que Deus, em Seu bom tempo, restaure a ordem por toda a Igreja. Nesse ínterim, já que temos de discordar, rezemos por um pouco mais de prudência e senso comum.

Trad. por Felipe Coelho; de de: “A Question of Authority”, Milwaukee, Wisconsin (Igreja de Sto. Hugo de Lincoln), junho de 1990.

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