A TÚNICA INCONSÚTIL E O GRANDE PRIVILÉGIO DE TESTEMUNHAR A PAIXÃO DO CORPO MÍSTICO

Uma visão geral da crise presente

John F. Lane
2006

Em sua essência, esta crise é uma crise de Fé. Façamos um pequeno tourpela história, para melhor aquilatar como isso é assim, e o que isso significa para aqueles de nós que fomos escolhidos, desde toda a eternidade, para viver ao longo desta crise e para receber o grande dom da verdadeira Fé.

Podemos, para os nossos propósitos, dividir a história da Igreja em quatro períodos: a fundação, a antiga, a intermediária, e a presente crise.

A fundação ou início viu a Santa Igreja emergir misticamente do lado de Nosso Senhor no Calvário, como os Padres dizem, simbolizada pelo Sangue e água (o divino e o humano). E viu Nosso Santíssimo Redentor aparecer aos Apóstolos e discípulos muitas vezes, para confirmar a Fé deles e instruí-los. Mas, para dar a eles a oportunidade de tornar-se homens verdadeiramente espirituais com Fé verdadeiramente meritória, Ele subtraiu-Se sensivelmente da presença deles e enviou o Espírito Santo, que os iluminaria interiormente e recordaria a eles todas as coisas que Ele ensinara-lhes enquanto ainda estava na terra. “Bem-Aventurados os que não viram e creram.” Santo Agostinho diz que se Nosso Senhor tivesse permanecido visivelmente na terra, os Apóstolos e discípulos teriam encontrado em Sua humanidade santa um obstáculo ao progresso na Fé e Caridade, precisamente porque seu amor por Ele era demasiado humano e imperfeito. E foi por essa razão que o Espírito Santo, que pode fazer tudo, não podia vir a nós sem que Cristo antes nos deixasse: pois ainda não podíamos recebê-lO. Aprendemos assim que, bem no início da história da Igreja, a retirada, por Nosso Senhor, de um bem (Ele Mesmo) foi, em si mesma, um ato de caridade pelos homens. Foi para o homem poder crescer em virtude e tornar-se mais semelhante a Ele, e assim merecer para a eternidade. E foi para que o Espírito Santo pudesse vir e habitar permanentemente em nossas almas! Deus é muito bom!

O segundo período – os primórdios – da Igreja viu o dom dos milagres ser concedido aos Apóstolos e seus sucessores imediatos, conforme a promessa de Nosso Senhor, para dar confirmação indiscutível da verdade do Evangelho e garantir, assim, sua rápida propagação pelo mundo. Quando isso foi cumprido, esse dom particular foi subtraído, assim como Nosso Senhor subtraíra Sua própria presença visível, para permitir aos homens merecer em grau maior por meio de atos de Fé. Novamente, vemos Nosso Senhor tirar algo – o dom de milagres – para dar a maior oportunidade possível aos homens de elevarem a si próprios acima deste mundo e, assim, conquistarem a felicidade eterna.

O período intermediário – isto é, o período anterior à crise presente – mostra muitas características que são indiscutivelmente divinas, tais como a realmente espetacular unidade visível da Igreja na Fé e Caridade, a linhagem dos Papas ininterrupta mesmo a despeito de horrores como Grande Cisma do Ocidente, a óbvia fertilidade da Igreja em produzir tantos e tão variados santos, a cultura pujante da civilização forjada pela Igreja a partir dos restos da cultura clássica e da matéria bruta da exótica mistura de sangues da Europa, com sua música, arquitetura, literatura, ordens religiosas, universidades, corporações, parlamentos e tudo o mais. Tudo isso, afirmo, foram motivos monumentais para ter a Igreja na mais alta conta – e tê-la em alta conta, crendo em seu caráter divino. O homem moderno não enxerga isso, porque ele não percebe que a Europa é criação da Igreja, mas todo o mundo antes de nossos séculos ignorantes enxergou e respeitou isso, mesmo que não quisessem enxergá-lo.

Nosso período vê tudo isso obscurecido, e rapidamente obscurecido. A Santa Madre Igreja virtualmente desapareceu. Sua influência no mundo parece ser nula. Ela tornou-se diminuta onde ela era imensa. Sua unidade é nublada por rachaduras não essenciais mas ainda assim importantes – fissuras que ameaçam criar divisões essenciais e portanto mortíferas mesmo entre os Fiéis remanescentes. Tudo é sombrio, e acumulam-se trevas.

Se acreditamos na Igreja Católica e acreditamos na Divina Providência, então temos de enxergar que há diversas provações que Nosso Santíssimo Redentor está permitindo que padeçamos nesta crise. Uma é a aparente ausência daqueles motivos mesmos de crer, que os manuais de apologética empregavam como ponto de partida: a unidade visível da Igreja, sua santidade manifesta, etc. Outra é a própria ausência de decisões finais de Roma. Sim, nós desejamos com desejo ardente que Nosso Senhor nos instrua, e Ele permanece em silêncio.

Por que isso é assim? A história e os Evangelhos dão a resposta. Nosso Senhor faz essas coisas para dar-nos oportunidade de merecer. Com a Sua graça recebemos, assim, Fé maior do que beneficiaríamos de outro modo e, por essa Fé, mérito maior do que de outro modo poderíamos conquistar. E essa Fé e o mérito correspondente dão a Ele glória.

A outra face da mesma moeda é que Ele faz isso para permitir ao demônio “fazer o seu pior” como o demônio fez a Jó, e assim provar a todos que ele é impotente contra a graça. Leão XIII sabia que o diabo recebera cerca de cem anos para destruir, se possível, a Igreja Católica. Ele fracassará. Mas quão perto chegará da vitória, antes desse fracasso? A ressurreição da Igreja será, de fato, demonstração maravilhosa da onipotência de Deus e da definitiva impotência de Satanás.

Examinemos agora, um pouco mais detidamente, o laço da Caridade, para que possamos ver como ele existe e como ele é agredido, e como devemos preservá-lo. A natureza essencial do duplo laço de unidade da Igreja foi exprimida pelo Concílio do Vaticano:

“O Eterno Pastor e guardião de nossas almas, para perpetuar a salutífera obra da redenção, determinou fundar a Santa Igreja, na qual, como na casa do Deus vivo, todos os fiéis se conservassem unidos pelo vínculo da mesma fé e da mesma caridade.”

Assim, a túnica inconsútil de Nosso Senhor, deixada intacta até mesmo pela soldadesca romana no Calvário, e que representa misticamente a unidade da Igreja, consiste de dois elementos entrelaçados: Fé e Caridade. Vimos como nossa Fé é testada, purificada, e incrementada, quando seus apoios usuais são removidos ou obscurecidos. Devemos ver também como a Caridade é servida pelo mesmo processo.

Estamos sendo convidados por Deus a permanecer em paz com homens com quem sofremos as maiores diferenças possíveis fora daquelas coisas ensinadas infalivelmente pela Santa Madre Igreja. Temos de considerar irmãos católicos a homens que aceitam um falso papa ou rejeitam o verdadeiro, dependendo de nosso ponto de vista. Estamos sendo convidados a combater o bom combate ao lado de homens que pensam que Nosso Santo Redentor é ultrajado diariamente na Santa Eucaristia no Novus Ordo, ou com homens que pensam que Ele não está lá em absoluto, dependendo novamente do juízo que formamos sobre o ponto controvertido.

Santo Agostinho, falando da controvérsia sobre questões ainda não decididas pela Santa Igreja, após referir-se ao fato de que sem a caridade todas as outras virtudes são vãs, explica:

“E, contudo, se dentro da Igreja homens diferentes ainda detivessem opiniões diferentes sobre o assunto, sem nesse ínterim violarem a paz, então até que um decreto simples e claro seja emitido por um Concílio universal, seria correto à caridade que procura a unidade cobrir com um véu o erro da enfermidade humana, como está escrito: ‘Pois a caridade apaga uma multidão de pecados’. Pois, vendo que a ausência dela faz com que a presença de tudo o mais seja vã, podemos muito bem supor que, na presença dela, encontra-se perdão para a ausência de algumas coisas faltantes.”
(Sobre o Batismo, contra os donatistas, destaque acrescentado.)

Sim, a caridade. O laço da perfeição, a virtude eterna, pois a própria natureza de Deus mesmo é, nas palavras de São João, que Ele é amor. E essa mesma caridade é o segundo laço de unidade da Igreja, e portanto tem de ser praticada não somente para o bem de nosso irmão católico, mas também pela própria preservação da Igreja.

Esse é o verdadeiro espírito católico, e é esse espírito que mantém a unidade da paz apesar das mais graves diferenças entre homens de boa vontade. É por essa razão que “sedevacantistas” podem cultuar ao lado de “sedeplenistas”. É por essa razão que o Arcebispo Dom Lefebvre sempre recusou cair na armadilha de recusar sacramentos aos “sedevacantistas”. É essa virtude essencial que é o segundo laço de unidade da Igreja Católica, visível e indissolúvel, ainda que obscurecido e enfraquecido até ao ponto da aparente falência. Sua sobrevivência até este ponto é tão improvável, a ponto de constituir um milagre, e devemos ponderá-la com temor e reverência. Ela, é claro, é um fruto da Santa Eucaristia; não menos que o principal efeito da Santa Eucaristia.

Ei-la descrita, com relação a crises anteriores, pelo justamente renomado Dom Hedley [1837-1915; beneditino, foi Bispo de Newport (N. do T.)]:

“O Santíssimo Sacramento, depois da Santa Sé, manteve a Cristandade unida. E numa circunstância, quando por cerca de meio século a própria Santa Sé parecia deixar de governar – refiro-me àquele período conhecido como o Grande Cisma do Ocidente –, não pode restar dúvida de que foi o Santíssimo Sacramento que manteve a Europa inabalada em sua Fé Católica. Naquele tempo nefando havia grandes santos do Santíssimo Sacramento de ambos os lados – Sta. Catharina de Siena de um lado, e São Vicente Ferrer e Sta. Colette do outro –, e era em redor do trono da Eucaristia que eles, e o clero e povo da Europa, encontravam aquela vigorosa lealdade à verdade católica integral que fez com que o cisma não fosse de maneira alguma um cisma de verdade, mas apenas uma escuridão e uma provação. Mas com que facilidade, não fosse pelo Santíssimo Sacramento, a Igreja poderia ter sido cindida ao meio!

O Santíssimo Sacramento seria em nosso favor ainda que as coisas ficassem bem piores; como, de fato, podem ficar, por um tempo. Se o livre intercâmbio da Santa Sé com a Igreja Católica fosse interrompido, a prática da Comunhão frequente e cotidiana, para a qual a perseguição daria fervor redobrado, eficazmente colocaria fora de questão todo cisma e desunião. Se eles retirassem todas as nossas igrejas, nunca deveríamos abandonar a Missa; como nossos ancestrais, por ela deveríamos, praza a Deus, estar preparados para enfrentar corajosamente prisão, confisco e morte; deveríamos de algum modo encontrar a Mesa do Senhor, ainda que no descampado…

Quanto mais próxima e constantemente os católicos se unirem em celebrar o grande Sacramento da Eucaristia… mais o inteiro corpo do clero e dos fiéis perceberá sua unidade católica, e, percebendo sua unidade, mais sentirão eles seus deveres bem como o poder que têm como constituindo o Reino de Deus na terra.”
(Dom John Cuthbert HEDLEY, O.S.B., The Blessed Sacrament and Catholic Unity [O Santíssimo Sacramento e a Unidade Católica].) 

Leiam as orações da Missa imediatamente antes da Santa Comunhão e vejam como elas são sobre paz e unidade. Vejam como homens de todas as disposições se unem em curvar-se perante Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento na Bênção. Recordem a grande verdade de que, quando recebemos Nosso Senhor, somos unidos não somente a Ele, mas a todos os outros verdadeiros cristãos, na mais íntima união possível deste lado do Paraíso. A Santa Comunhão não é, como os protestantes dizem, uma questão meramente individual, mas é antes um ato social.

É por isso que a objeção à conduta dos sedevacantistas, com base em eles não elegerem um Papa como parece que deveriam, é falsa. A própria razão pela qual eu e outros como eu (a vasta maioria dos sedevacantistas, de fato) não tentamos eleger um Papa é por sabermos que aqueles que compartilham da nossa Fé, mas diferem de nós sobre a “questão do Papa”, são nossos irmãos católicos, de modo que, se fizermos algo temerário, só lograríamos criar um cisma onde no presente há apenas diferença de juízo. Estaríamos, em suma, realizando nosso próprio Concílio de Pisa e acrescentando às aflições dos Fiéis, ao causar dano à unidade da Igreja. Essa seria a última coisa que deveríamos fazer!

Evitemos, pois, ter um desejo desmedido de ver resolvida qualquer questão que só pode ser decidida finalmente pela Santa Madre Igreja, e especialmente desse modo preservemos a caridade com nossos irmãos católicos. De ambos os lados temos de afastar de nossas mentes toda sugestão de que os motivos de nossos oponentes sejam impuros, e contentemo-nos em examinar todas as questões disputadas, incluindo a questão dos papas do Vaticano II quando surgir ocasião, no espírito de que se não pudermos concordar, então temos ocasião de exercer a caridade, e se concordarmos, então temos ocasião de exercer a caridade, pois esta é sem dúvida a vontade de Deus, o Qual estabeleceu na terra uma autoridade final precisamente para dar certeza a todos os homens em questões sobre as quais eles não acabariam concordando de outro modo, e o Qual em nosso tempo permitiu que essa autoridade permanecesse em silêncio, seja por pensarmos que isso se deve à Santa Sé estar vacante, seja por estar ocupada por um homem indigno. E além disso, que Ele permite essa provação precisamente para que possamos exercer a Fé e a Caridade e, assim, dar glória a Ele, o Autor de nossa Fé e Caridade bem como de nossa Esperança, e receber uma recompensa eterna por termos cooperado em Seu plano infinitamente sábio.

E se pensamos que isso é difícil, deveríamos imaginar como foi ao pé da Cruz, pois esse é o precedente místico desta provação. Sim, é difícil. Mas há outro lado a considerar: o de que é um grande privilégio, é a seu modo como ser escolhido para estar de pé no Calvário no dia terrível e belo quando o mundo foi redimido do pecado, e Cristo conquistou Sua vitória. Nós somos testemunhas da crucifixão do Corpo Místico. Que dom! Senhor, tornai-nos menos indignos! E Nossa Senhora nos ajude, Vós que costurastes com amor a túnica inconsútil de Jesus com vossas próprias mãos, e que sozinha destruístes todas as heresias e cismas.

John Lane
25 de maio de 2006
Ascensão de Nosso Senhor

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