Padre Anthony Cekada
2007
PERGUNTA: A Constituição do Papa Pio XII que regulamenta o conclave papal diz o seguinte:
“34. Cardeal nenhum, sob pretexto ou em razão de alguma excomunhão, suspensão, interdito ou outro impedimento eclesiástico, seja qual for, pode ser excluído, de qualquer modo que seja, da eleição ativa e passiva do Sumo Pontífice. Ademais, Nós suspendemos tais censuras, para efeito somente dessa eleição, ainda que de resto permaneçam em vigor.” (Constituição “Vacantis Apostolicae Sedis”, 8 de dezembro de 1945)
Tenho muitas perguntas sobre isso:
(1) Qual é a interpretação que a Igreja dá a essa passagem?
(2) Levanta ela todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes num conclave papal? Isso também inclui o cardeal que foi eleito papa, por ser isso o que o termo “eleição passiva” parece significar?
(3) Sendo assim, a passagem significa que um cardeal excomungado pode ser validamente eleito Papa. Isso não derruba o princípio fundamental subjacente a toda a argumentação sedevacantista?
RESPOSTA: Ao longo dos anos, muitos autores tradicionalistas do lado da FSSPX, tais como o Pe. Carl Pulvermacher, Michael Davies, o Pe. Dominque Boulet e os dominicanos de Avrillé — e mesmo autores conservadores como o Pe. Brian Harrison — citaram essa passagem como resposta definitiva ao sedevacantismo. Pio XII suspendeu explicitamente todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras quaisquer que sejam para quem quer que seja eleito Papa, então (prossegue o argumento deles) um herege poderia ser eleito verdadeiro Papa.
Mas será esse um princípio correto a extrair da passagem? Trataremos da questão mais ampla primeiro, que é a da interpretação.
I. INTERPRETAÇÃO DA LEI
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Falando de modo geral, a “interpretação” em Direito Canônico vem, ou da autoridade pública, como o Papa, sua Cúria, etc. (chama-se isso interpretação autêntica), ou de outra fonte reconhecida, tal como o ensinamento dos canonistas (e chama-se isso interpretação doutrinal). (Para um tratamento completo, ver Abbo & Hannon, 1:17.)
Não logrei encontrar pronunciamento papal ou curial interpretando ou explicando a passagem em questão. Aparece esta, com essencialmente a mesma formulação, na legislação eleitoral papal promulgada por Clemente V (1317), Pio IV (1562), Gregório XV (1621) e Pio X (1904). Assim, o seu significado deve ter parecido auto-evidente — ao menos para tipos curiais.
Onde não haja interpretação da autoridade pública — e tal é o caso com frequência em Direito Canônico —, olha-se para outras passagens no Código e para o ensinamento dos canonistas (especialistas acadêmicos em Direito Canônico) para descobrir o que significam os termos. Seguindo esse procedimento, o significado da passagem da constituição de Pio XII fica claro. Então, vamos agora nos embrenhar na terminologia.
(a) Censuras. A “excomunhão, suspensão e interdito” que o Pontífice mencionou são censuras — punições que o direito eclesiástico inflige num malfeitor para fazê-lo arrepender-se. (Para uma visão geral, ver Bouscaren, Canon Law, 815–6.) Os cardeais estão isentos de incorrer em censuras, exceto nos casos em que a lei especifique o contrário. (Cânon 2227.2)
Num conclave papal, um cardeal eleitor ou um eleito Papa que tivesse, sem embargo, incorrido de algum modo em excomunhão se depararia com alguns obstáculos quase insuperáveis. Os efeitos dessa censura impedem o excomungado de administrar ou receber os sacramentos, de exercer jurisdição, de votar, de designar outros para ofícios e, de fato, até mesmo de ser eleito para um ofício eclesiástico. (Ver Bouscaren, 831–4.) Isso não deixaria nada ao eleito Papa além de acenar do terraço e andar de papamóvel. (Não mencionado por Bouscaren…)
As censuras são, por vezes, chamadas também de penas medicinais, pois sua finalidade é curar a teimosia do malfeitor. Isso as distinguia das penas vindicativas, que expiam diretamente um crime, independentemente de se o malfeitor se arrepender ou não. (Bouscaren, 846.)
(b) Impedimentos eclesiásticos. O termo “outros impedimentos eclesiásticos” mencionado na Constituição de Pio XII é uma categoria mais genérica.
Um impedimento desses, por exemplo, é a pena vindicativa de infâmia: perda de reputação devido a algum crime horrível. Entre outras coisas, essa pena torna o criminoso inelegível para ofícios eclesiásticos, dignidades eclesiásticas etc. (Bouscaren, 849.)
Esse impedimento, então, assim como a excomunhão, barraria um cardeal, seja de votar num conclave, seja de ser eleito Papa.
II. SUSPENSÃO DE CENSURAS E IMPEDIMENTOS
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Tendo averiguado o significado desses termos no parágrafo 34 da Constituição de Pio XII, podemos ver com facilidade a razão de ser da lei: evitar altercações intermináveis acerca da validade das eleições papais.
Aí então, fica fácil de responder à segunda pergunta: “Levanta ela todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes num conclave papal?”
A resposta é sim.
O parágrafo 34 cobre também o caso de um cardeal excomungado que tenha sido eleito Papa?
Novamente, a resposta é sim, pois a Constituição usou os termos eleição ativa e passiva, que significam, respectivamente, ser capaz de votar e ser capaz de ser eleito. Então, realmente está correto dizer que a Constituição de Pio XII permite explicitamente que um cardeal excomungado seja validamente eleito Papa.
III. UM ARGUMENTO CONTRA O SEDEVACANTISMO?
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Agora então, a pergunta final: “Isso não derruba o princípio fundamental que subjaz à argumentação sedevacantista?”
Aqui, porém, a resposta é não.
A maioria dos tipos FSSPX, muitos sedevacantistas e mesmo estudiosos inteligentes como o Pe. Harrison presumem que a excomunhão seja o ponto de partida do argumento sedevacantista, que eles acreditam ir mais ou menos assim:
• O Direito Canônico impõe excomunhão automática num herege.
• A excomunhão impede o clérigo de votar para eleger alguém a um ofício, de ser ele próprio eleito ao ofício, ou de permanecer no ofício uma vez que tenha se tornado herege público.
• Paulo VI e seus sucessores incorreram nessa excomunhão por heresia pública.
• Logo, eles não foram papas de verdade.
Retire-se a possibilidade de excomunhão com o ¶34 da Constituição de Pio XII (prossegue o argumento anti-sede), e o argumento sedevacantista desaparece.
Mas entenderam errado. A excomunhão é uma criação do direito eclesiástico, e não é o ponto de partida do argumento sedevacantista. Na realidade, não tem absolutamente nada a ver com ele.
Pelo contrário, para o sedevacantismo o ponto de partida é um princípio inteiramente outro: o de que a lei divina impede que um herege se torne verdadeiro Papa (ou permaneça tal, caso um papa adote a heresia ao longo de seu pontificado). Esse princípio deriva diretamente daquelas seções, dos principais comentários pré-Vaticano II ao Código de Direito Canônico, que tratam da eleição ao ofício papal e das qualidades exigidas na pessoa eleita.
Eis algumas citações:
“Os hereges e cismáticos estão excluídos do Sumo Pontificado pelo direito divino mesmo… [E]les devem com certeza ser considerados impedidos da ocupação do trono da Sé Apostólica, que é o mestre infalível da verdade da fé e o centro da unidade eclesiástica.” (Maroto, Institutiones I.C. 2:784)
“Designação ao Ofício do Primado. 1. O que é exigido por direito divino para essa designação… Também necessário para a validade é que o eleito seja membro da Igreja; portanto, os hereges e apóstatas (ao menos os publicamente tais) estão excluídos.” (Coronata, Institutiones I.C. 1:312)
“Todos os que não estão impedidos por lei divinaou por lei eclesiástica invalidante são validamente elegíveis [para serem eleitos Papa]. Por onde, um homem que goze do uso da razão suficiente para aceitar a eleição e exercer jurisdição, e que seja verdadeiro membro da Igreja, pode ser validamente eleito, ainda que seja somente um leigo. Excluídos como incapazes de eleição válida, todavia, estão todas as mulheres, as crianças que ainda não chegaram à idade da razão, os afligidos por insanidade habitual, os hereges e cismáticos.” (Wernz-Vidal, Jus Can. 2:415)
Assim, a heresia não é mero “impedimento eclesiástico” ou censura do tipo que Pio XII enumerou e suspendeu no parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis. É, pelo contrário, um impedimento de direito divino, que Pio XII não suspendeu — e, de fato, era incapaz de suspender, precisamente por ser de direito divino.
IV. EM SUMA: ALHOS COM BUGALHOS
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O parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis suspende os efeitos de censuras (excomunhão, suspensão, interdito) e outros impedimentos eclesiásticos (e.g., infâmia de direito) para os cardeais que estão elegendo um Papa ou para o cardeal que eles acabarem elegendo. Assim, um cardeal que tenha incorrido em excomunhão antes de sua eleição a Papa seria, não obstante, validamente eleito.
Esta lei refere-se somente a impedimentos de direito eclesiástico, todavia. Como tal, não pode ser invocada como argumento contra o sedevacantismo, o qual se baseia no ensinamento dos canonistas pré-Vaticano II de que a heresia é impedimento de direito divino a receber o Papado.
Os controversistas anti-sedevacantistas deveriam, pois, parar de reciclar argumentos baseados na passagem em questão. Não tem nada que ver com a posição a que se opõem.
BIBLIOGRAFIA
ABBO, J & J. Hannon. The Sacred Canons. St. Louis: Herder 1957. 2 vols.
BOUSCAREN, T. & A. Ellis. Canon Law: A Text and Commentary. Milwaukee: Bruce 1946.
Bullarum, Diplomatum et Privilegiorum Ss. Rom. Pont. Turim: Vecco 1847.
CLEMENTE V. Constitutiones Clementinae. 1317. Cap. 2, Ne Romani ¶4, de elect. I, 3 in Clem.
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. 1917.
CORONATA, M. Institutiones Juris Canonici. 4.ª ed. Turim: Marietti 1950. 3 vols.
GREGÓRIO XV. Bula Aeterni Patris, 15 de novembro de 1621. In Bullarum 12:619–27. ¶22
MAROTO, P. Institutiones Iuris Canonici. Roma: 1921. 4 vols.
PIO IV. Bula In Eligendis, 9 de outubro de 1562. In Bullarum 7:230-6. ¶29
PIO X. Constituição Vacante Sede Apostolica, 25 de dezembro de 1904. ¶29.
PIO XII. Constituição Vacantis Apostolicae Sedis, 8 de dezembro de 1945. Acta Apostolicae Sedis 36 (1946). 65–99. ¶34.
WERNZ, F. & P. Vidal. Ius Canonicum. Roma: Gregoriana 1934. 8 vols.
Trad. por Felipe Coelho, de: “Can an Excommunicated Cardinal be Elected Pope?”.
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