OS HEREGES, OS APÓSTATAS E OS CISMÁTICOS SEGUNDO SÃO ROBERTO BELARMINO

Cardeal S. Roberto Belarmino, S.J.
1586

CAPITULO IV
OS HEREGES E APÓSTATAS

Afonso de Castro [lib. 2 de justa haereticorum punitione, cap. 24] ensina que os hereges e apóstatas batizados são membros e partes da Igreja, ainda que professem publicamente sua falsa doutrina. Essa sentença, sendo abertamente falsa, pode ser facilimamente refutada. Pois, em primeiro lugar, a Escritura o indica, ao dizer que “alguns naufragaram na fé”. [I Tm 1,19] Nessa passagem, deve-se entender, pela metáfora do naufrágio, que os hereges, em se quebrando uma parte do navio da Igreja, dela caíram no mar. Isso também é simbolizado por aquela parábola do Senhor, sobre a rede que se rasgava por causa do grande número de peixes (Lucas 5,6). Ademais: “Foge do herético, depois da primeira e segunda correção, sabendo que um tal homem está pervertido e peca, como quem é condenado pelo seu próprio juízo”. [Tt 3,10s] Aí o apóstolo ensina ao bispo que evite o herege, coisa que certamente não ordenaria, se este estivesse dentro da Igreja. Afinal, o pastor não deve evitar, e sim cuidar daqueles que pertencem ao seu rebanho. E acrescenta uma razão: porque tal herético pertinaz condenou-se por seu próprio juízo, isto é (como expõe Jerônimo), ele não foi expulso da Igreja pela excomunhão, como muitos outros pecadores, senão que se expulsou a si mesmo da Igreja. Da mesma forma: “Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos”. [I Jo 2,29] Isto é, saíram de entre nós porque estavam conosco na mesma Igreja, mas não eram dos nossos, segundo a divina eleição – como expõe Agostinho. [lib. de perseverantiae, cap. 8.]

Em segundo lugar, prova-se o mesmo pelos capítulos 8 e 19 do Concílio de Niceia, onde se diz que os hereges podem ser recebidos na Igreja, se quiserem voltar, mas com certas condições. Igualmente do Concílio de Latrão, no qual se diz [cap. Firmiter, de summa Trinitate et fide catholica] que a Igreja é a congregação dos fiéis. Com efeito, consta que os heréticos não são fiéis de maneira alguma.

Em terceiro lugar, prova-se a partir dos Padres. Irineu [lib. 3, cap. 3] diz que Policarpo converteu muitos hereges para a Igreja, do que se segue que esses hereges haviam antes saído da Igreja. Tertuliano [lib. de praescriptione] diz que Marcião, posto quisesse voltar à Igreja, recebeu a condição de que restituísse à Igreja os restantes que pervertera. Cipriano [in epistola ad Jubajanum] diz que os hereges, embora estejam fora da Igreja, contudo arrogar para si a autoridade da Igreja, à maneira de macacos, os quais, embora não sejam homens, contudo querem parecer-se com homens.

Jerônimo [In dialogo contra Luciferianos, próximo do fim] diz: “Se em algum lugar ouvires aqueles que dizem ser de Cristo serem chamados pelo nome não do Senhor Jesus Cristo, mas de algum outro qualquer – como marcionistas, valentinianos, montenses ou campenses –, sabe que não se trata da Igreja de Cristo, mas da sinagoga do Anticristo”. Agostinho [lib. 4 contra Donatistas] diz que vez ou outra acontece que um homem exteriormente herético não aja contra a Igreja, e que um homem interiormente católico aja contra a Igreja etc. E [lib. de unitate Ecclesiae, cap. 4] também diz: “Aqueles que não creem que Cristo veio, em carne, da Virgem Maria, da descendência de Davi, ou que ressurgiu no mesmo corpo no qual foi crucificado e sepultado – esses sem dúvida não estão na Igreja etc.”

Acresce, por fim, que, sendo a Igreja uma multidão unida (pois ela é um certo povo, ou reino, ou um só corpo); e consistindo tal união sobretudo da profissão de uma única fé, bem como da observação das mesma leis e ritos; nenhuma razão permite que digamos ser do corpo da Igreja aqueles que não têm com ele conjunção alguma.

Mas alguns objetam em contrário. Primeiro, porque em Mateus 13, na parábola da cizânia, no mesmo campo se encontram três coisas: grão, palha e cizânia, que significam os bons católicos, os maus católicos e os hereges, como expõem Agostinho, [quaest. 11 super Matthaeum] Jerônimo e Crisóstomo.  Ademais, que o campo seja a Igreja, ensinam-no Cipriano [lib. 3 epist. 3] e Agostinho. [lib. 2 contra Cresconium, cap. 34]

Respondo: Alguns entendem por cizânia não os hereges, mas os homens maus que estão na Igreja. Assim ensinam Cipriano [loc. cit., e lib. 4 epist. 2] e Agostinho, este último com frequência, e falando não tanto de sua própria posição quanto pelo pensamento de Cipriano. E que Cipriano por cizânia não entenda os heréticos, pode-se depreender do fato de que, nos mesmos lugares onde ele diz que a cizânia está na Igreja, ele diz que os hereges não estão na Igreja.

Depreende-se também da intenção de Cipriano, o qual, sobre essas passagens, escreve contra os novacianos, que não queriam admitir os penitentes caídos à Igreja, temendo comungar dos pecados alheios. A estes Cipriano demonstra, a partir da parábola do Senhor, que na Igreja não há apenas homens fortes, mas também homens fracos, que alguma vez caem, assim como, no campo, ao lado do trigo há também cizânia.

Mas, embora esta exposição não deva ser desprezada, nem contrária a nós, contudo se responde melhor, com Agostinho, [quaest. 11 super Matthaeum] que o campo não significa a Igreja, mas o mundo inteiro. Com efeito, o Senhor, expondo a parábola, diz que o campo é o mundo. Demais, ainda que, pelo nome de cizânias corretamente se entendam os hereges, contudo talvez mais literalmente poderíamos entender todos os maus in genere, sejam eles heréticos ou não. Desse modo, o objetivo da parábola é mostrar que no mundo sempre há de existir alguns maus, e que o mundo não pode ser purgado por nenhum prodígio humano antes do dia do juízo. Por isso é que diz o Senhor que a cizânia são os filhos maus, e todos aqueles que, por fim, serão lançados no fogo eterno.

Em segundo lugar, objetam aquela passagem de II Timóteo 2,20: “Numa grande casa há não somente vasos de ouro e de prata, mas também vasos de pau e de barro”. Aí parece que, pelo nome casa, Paulo entende a Igreja, e, pelo nome vasos de pau e de barro, os hereges. Pois ele pouco antes dissera: “E a palavra de quem se entrega a tais conversas vai lavrando como gangrena; neste caso estão Himeneu e Fileto, que se extraviaram da verdade”. Mas que pelo nome casa se entenda a Igreja, ensinam-no Cipriano, [lib. 3, epist. 3 et lib. 4 epist. 2] Ambrósio e Agostinho. [lib. 2 de baptismo, cap. 12.]

Respondo: Aqui as exposições dos antigos são diversas. Uma é a dos gregos, nomeadamente de Crisóstomo e Teofilacto, que pelo nome casa não entendem a Igreja, mas o mundo, como dissemos do campo em que havia cizânia. Outra exposição é a dos latinos: Cipriano, Ambrósio e Agostinho, que pelo nome casa entendem a Igreja. E, embora Agostinho e Ambrósio queiram que por vasos de pau e de barro estejam significados os hereges, contudo Agostinho explica o mesmo, [lib. 3 de baptismo, cap. 19] de que maneira se deva compreender que eles estão na Igreja. Aí diz que eles estão na Igreja antes de se separarem por obstinação e pertinácia, e que é a esse tempo que se refere o apóstolo.

De maneira que não se diz tanto que os hereges estejam na Igreja, quanto os que estão no erro. Acrescenta também que se pode dizer que estejam na Igreja, depois de terem saído, em razão da administração dos sacramentos, porque também eles administram verdadeiramente alguns sacramentos. Vale dizer, eles estão na Igreja secundum quid, e não simplesmente. Ambrósio, porém, entende a expressão “Igreja” de modo amplo, e mais vulgar do que próprio, a saber, na medida em que abarca todos aqueles que de qualquer maneira se nomeiam cristãos. E desse modo que os pagãos costumam dizer que, na assembleia dos cristãos, há muitas opiniões divergentes e seitas.

Mas, segundo Cipriano (cuja exposição julgo mais verdadeira), por vasos de pau e de barro não se entendem os hereges, mas os fiéis enfermos e fracos, que são facilmente seduzidos. Pois aquilo que diz o apóstolo: “Numa grande casa há vasos de ouro etc”. não se refere a isto: “A palavra de quem se entrega a tais conversas vai lavrando como gangrena; neste caso estão Himeneu e Fileto, que se extraviaram da verdade”, mas sim a isto: “E perverteram a fé de alguns”. Pois o apóstolo quer dizer que, se eles perverteram alguns, nem por isso há o perigo de que todos sejam pervertidos. Pois na Igreja há fortes, e há fracos, etc.

Mas, dirás tu, Agostinho, que entende por vasos de pau e de barro os hereges, diz que foi movido a assim pensar pelas palavras de Cipriano. [In epistola ad Antonianum, a segunda do lib. 4.]

Respondo: Agostinho pensou que Cipriano referia aquelas palavras do apóstolo (“Numa grande casa há vasos de ouro etc.”) a esta: “A palavra de quem se entrega a tais conversas vai lavrando como gangrena,” como ele mesmo referia. De resto, as palavras de Cipriano não soam assim de modo algum. E certamente, que Cipriano não tenha querido dizer que os hereges estão na Igreja é evidente da mesma epístola, onde ele diz abertamente que Novaciano, por ser herege, está fora da Igreja.

O terceiro argumento é o seguinte: A Igreja pode julgar e punir os he-reges, portanto eles estão dentro. “Por que é porventura a mim que pertence julgar aqueles que estão fora?” diz Paulo. [I Cr 5,12] Além disso, os hereges retêm o caráter do batismo e do sacerdócio, e, portanto, são cristãos e sacerdotes.

Respondo: Os hereges, embora não sejam da Igreja, contudo devem ser, e por isso lhe pertencem, como as ovelhas pertencem ao aprisco de onde fugiram. Do mesmo modo se costuma dizer que esta ovelha é daquele aprisco, embora esteja, em verdade, vagando fora do aprisco. A Igreja pode,porém, julgar sobre aqueles que estão verdadeiramente dentro, ou que decerto devem estar, assim como o pastor pode, de fato, conduzir de volta ao aprisco uma ovelha que erra pelos montes, fora do aprisco; também um imperador pode conduzir, pela força, de volta ao seu acampamento um desertor da milícia que fugiu para o acampamento inimigo, ou mesmo suspendê-lo. O apóstolo, porém, fala daqueles que estão fora de tal maneira, que nunca estiveram dentro.

Quanto à questão do caráter, digo que os hereges retêm fora da Igreja aqueles caracteres indeléveis, assim como as ovelhas perdidas retêm o caráter’45 impresso no seu dorso, e os desertores de uma milícia retêm os signos militares. Mas isso não significa que sejam da Igreja, porque esses caracteres não bastam para constituir alguém na Igreja. De outra forma, a Igreja estaria até mesmo no inferno. E, no entanto, Santo Tomás [3 part. quaest. 8 art. 3] diz que os condenados não são membros de Cristo nem em ato nem em potência.

Ademais, o caráter não une propriamente o homem com seu chefe, mas é um certo sinal de poder e união, e por isso no inferno se ficam conhecendo por esse sinal aqueles que foram membros de Cristo. E que esse sinal não una é evidente, pois não une exteriormente, visto que é uma coisa invisível; nem interiormente, visto que não é um ato, nem hábito operativo. Por esses motivos é que Santo Tomás põe a primeira união interna na fé.

CAPÍTULO V
OS CISMÁTICOS

Sobre os cismáticos, não poucos católicos duvidam que pertençam a Igreja. Na verdade, Afonso de Castro afirma que eles são da Igreja. [loc. cit.] Mas é fácil ensinar o contrário a partir das letras sagradas e da tradição dos Padres. Pois, sobretudo, quando se diz, em Lucas 5,6: “[…] que a sua rede se rompia”, pelo rompimento da rede e pela saída dos peixes da rede se entendem os cismas da Igreja e a saída dos hereges e cismáticos da Igreja, como expõe Agostinho. [Tract. 122 in Joannem.]

Ademais, a Escritura chama a Igreja de “um só rebanho”; [Jo 10,16] “um só corpo”, [Rm 12,4] e “uma só esposa, uma só amiga, uma só pomba”, [Ct 6] O cisma, porém, fende aquilo que era um só em partes, como é evidente do próprio nome. Com efeito, skhízein quer dizer rasgar, e skhimé, rasgo. Portanto, os cismáticos não estão na Igreja, nem são da Igreja. Pois a parte separada do corpo já não é parte daquele corpo. Por isso é que Cipriano [lib. de unitate Ecclesiae] diz, belamente, que a Igreja é simbolizada pela veste inconsútil de Cristo, que não foi rasgada, a fim de que compreendêssemos que a Igreja pode dividir-se, mas não da mesma maneira pela qual as vestes são rasgadas. Neste caso, com efeito, todas as partes permanecem sendo partes da veste. A Igreja, ao contrário, divide-se da mesma maneira pela qual, ao cortar-se um ramo de uma árvore, ele morre imediatamente, ao passo que a árvore permanece viva. E, quando um rio se separa da sua fonte, ele logo seca, ao passo que a fonte continua a fluir. E um raio do sol, ao separar-se, de imediato desfalece, ao passo que o sol permanece como estava. E, se disseres que uma parte separada da Igreja é algo como uma Igreja, então terás muitas Igrejas, o que vai de encontro às Escrituras logo antes notadas.

Prova-se, em segundo lugar, pelos decretos do Papa Pelágio, o qual prova ex professo que os cismáticos não são da Igreja. [24 q. 1 can. Pudenda, et can. Schisma] Acrescente-se a isso o testemunho de toda a Igreja, a qual, na Preparação para a Páscoa, ora por todos os hereges e cismáticos, a fim de que Deus se digne chamá-los de volta à Igreja Católica. O que decerto não faria se cresse que eles estão na Igreja. Aqui também vem ao caso o testemunho do Catecismo Romano, cuja autoridade não é pequena na Igreja de Deus. O fato é que o predito catecismo, na explicação do Símbolo Apostólico, separa os cismáticos da Igreja com palavras expressivas.

Prova-se, em terceiro lugar, a partir dos Padres. Irineu, [lib. 4 cap. 62] depois de ter dito, nos capítulos superiores, que o homem espiritual julga a todos os hereges e cismáticos; enumerado em particular muitas heresias; e adicionado certas informações sobre os cismas propriamente ditos; conclui, em suma, dizendo: “Julgará todos aqueles que estão fora da verdade, isto é, fora da Igreja”. São Cipriano [lib. 4 epist. 9 ad Florentinum Papianum] diz: “A Igreja é o povo unido ao sacerdote, e a grei que adere ao seu pastor. Por isso, deves saber que o bispo está na Igreja e a Igreja está no bispo, e que, se alguém não está com o bispo, não está na Igreja etc”. Mas certamente os cismáticos não estão com o bispo, e, portanto, tampouco estão na Igreja.

Crisóstomo [hom. 3 in epist. 1 ad Corinthios] diz: “A importância do cisma os repreende suficientemente, ou antes é suficiente dizer esse nome para os comover com veemência. Pois não foram feitas muitas partes íntegras, mas foi uma parte que pereceu. Porque, realmente, estando as Igrejas íntegras, eles as constituiriam muitas”. E o mesmo autor [hom. 11 in epist. ad Ephesios] ensina que os cismáticos são semelhantes a uma mão cortada do seu corpo, que logo cessa de ser membro. E [ibidem] também diz que os cismáticos estão noutra Igreja, embora na fé e nos dogmas consintam com a verdadeira Igreja de Cristo.

Jerônimo [In cap. 1 Amos] diz: “Os cismáticos de fato separam uma multidão enganada da Igreja de Deus, contudo não o fazem por crueldade, como os heréticos […]”. E [In cap. 3 ad Titum] também: “Entre a heresia e o cisma julgamos que há esta diferença: a heresia tem um dogma perverso, e o cisma separa igualmente da Igreja, por dissensão episcopal”. Aí, note-se a expressão: “Igualmente”. Agostinho [lib. de fide et symbolo, cap. 10] diz: “Cremos também [n]a Santa Igreja, que sem dúvida é católica. Pois também os hereges e cismáticos chamam suas congregações de Igrejas; mas os hereges violam a fé mesma, ao pensar coisas falsas a respeito de Deus, ao passo que os cismáticos, por iníquas divisões, se afastam da caridade fraterna, embora creiam o mesmo que nós cremos. Por isso, nem o herege pertence à Igreja católica por amar a Deus, nem o cismático por amar o próximo”. Optato, [lib. 1 contra Parmenianum] falando dos cismáticos, diz: “Deixando para trás a mãe católica, os filhos ímpios, ao correrem para fora e separar-se, como vós fizestes: amputados da raiz da mãe Igreja pelas foices da inveja, afastam-se, rebeldes e errantes”. E o mesmo autor [lib. 2] compara os rebeldes com ramos, riachos e raios separados da árvore, da fonte, do sol. Fulgêncio [De fide ad Petrum, cap. 38 e 39] diz: “Compreende com toda a firmeza, e não duvides de maneira alguma, que não só os pagãos, mas também os judeus, hereges e cismáticos, que terminam sua vida fora da Igreja Católica, irão para o fogo eterno.” Finalmente, ensinam o mesmo Tomás de Walden, [tom. 1 lib. 2 cap. 9 doctrinalis antiquae] João Driedo [lib. 4 de Scripturis et dogmatibus ecclesiasticis, cap. 2 part. 2] e outros dentre os mais recentes.

Prova-se, em último lugar, pela razão. Pois é da natureza da Igreja que ela seja una pela união dos membros entre si e com sua cabeça. O cismático, contudo, elimina-se dessa união ao separar-se da comunhão da cabeça e dos outros membros. Quanto ao fato de que a unidade essencial da Igreja consista na referida conjunção dos membros entre si e com a cabeça, isso está provado, pois se encontra na Igreja uma unidade múltipla. A primeira é a unidade em relação ao mesmo princípio, isto é, no chamado de Deus; como em João 6,44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair etc”. A segunda é a unidade em razão do mesmo fim último, o que foi simbolizado em Mateus 20 por aquele mesmo denário prometido a todos os trabalhadores. A terceira é a unidade em razão dos mesmos meios, isto é, a fé, os sacramentos, as leis; como em Efésios 4,5: “Uma só fé, um só batismo”. A quarta é a unidade em razão do mesmo Espírito Santo, pelo qual toda a Igreja é governada como por um reitor externo e separado. Veja-se I Coríntios 12,4: “Há, com certeza, diversidade de graças, mas um mesmo é o Espírito”. A quinta é a unidade em razão da mesma cabeça, que é um como reitor interno e conjunto. Com efeito, toda a Igreja obedece ao mesmo Cristo e ao seu vigário como sua cabeça; como em Efésios 1,22: “Constituiu-o cabeça de toda a Igreja”; e João 21: “Simão Pedro, apascenta as minhas ovelhas”. A sexta é a unidade em razão da conexão dos membros entre si, e sobretudo da sua conexão com a cabeça, que é o membro principal; como em Romanos 12,5: “Somos um só corpo em Cristo, e todos, membros uns dos outros”.

Ora, entre essas duas unidades, aquelas que propriamente fazem que a Igreja seja uma só são as duas últimas. Pois, pela primeira, a Igreja não tanto é uma só, quanto provém de um só. Pela segunda, não tanto é uma só, quanto se dirige a um só. Pela terceira, não tanto é uma só, quanto existe por meio de um só. Pela quarta, não tanto é uma só, quanto está sob o comando de um só. Pela quinta e pela sexta, ela é propriamente una, isto é, um só corpo, um só povo, uma só sociedade. E o cisma se opõe precisamente a estas duas últimas unidades. Com efeito, há cisma quando um membro não quer mais ser membro daquele corpo, nem estar sob o comando daquela cabeça. Por isso, o cisma atenta contra a unidade essencial, e contra a própria Igreja. Assim, pois, o cismático não é da Igreja.

Mas objetam, em primeiro lugar, que a Igreja é a congregação dos católicos, como definiu o Papa Nicolau. [De consecrat. dist. 1 can. Ecclesia] Mas os cismáticos são católicos, e portanto são da Igreja. Respondo, em primeiro lugar, que os cismáticos, ainda que tenham a fé católica, contudo não se dizem propriamente católicos, a menos que professem essa fé na Igreja Católica – como é evidente de Agostinho e Optato. [op. cit.] Em segundo lugar, digo que não é plena a definição do Papa Nicolau: ele não quis definir a Igreja, mas apenas excluir os hereges da Igreja. Assim também fez Inocêncio, ao dizer que a Igreja é a congregação dos fiéis. [cap. Firmiter, de summa Trinitate et fide catholica.]

Em segundo lugar, objetam que os cismáticos, ainda que não queiram se submeter ao pontífice, contudo querem submeter-se a Cristo, a suma cabeça da Igreja. E, embora não queiram estar em comunhão com esta Igreja, que está na terra, contudo querem estar em comunhão com a Igreja que está nos céus, que é a melhor parte da Igreja. Não eliminam, pois, a unidade da Igreja, nem estão absolutamente fora dela. E confirma-se o argumento a partir de um fato semelhante. Pois, se alguém não quisesse estar sob o seu bispo particular, nem estar em comunhão com a Igreja particular que está sob determinado bispo, e no entanto quisesse estar sob o sumo pontífice e em comunhão com a Igreja universal, não se poderia dizer que esse homem está fora da Igreja.

Respondo: Ninguém pode, mesmo que o queira, submeter-se a Cristo e estar em comunhão com a Igreja celeste, se não se submete ao pontífice, e não está em comunhão com a Igreja militante. Com efeito, diz Cristo: “O que vos ouve, a mim ouve”. [Lc 10,16] Ademais, assim como Cristo é a suma cabeça, quanto ao influxo interior (pois ele mesmo influi em seus membros sentido e movimento, isto é, fé e caridade), assim o papa é a suma cabeça na Igreja militante, quanto ao influxo exterior da doutrina da fé e dos sacramentos. Também a Igreja triunfante está unida à Igreja militante, e na verdade elas são uma só; portanto, ninguém pode querer separar-se de uma sem que se separe da outra.

À confirmação respondo de maneira semelhante: Aquele que se separa da Igreja e do bispo particular, necessariamente se separa também da Igreja e do bispo universal, a menos, talvez, que alguém se separe da Igreja e do bispo particular porque essa Igreja e esse bispo são heréticos e cismáticos. Com efeito, Cipriano [lib. 4 epist. 9] tem razão ao dizer: “Lisonjeiam-se inutilmente aqueles que, não tendo paz com os sacerdotes de Deus, aproximam-se in-sensivelmente, e creem ocultamente comungar entre alguns, uma vez que a Igreja que, sendo católica, é uma só, não é fendida nem dividida, mas sem dúvida conexa, e ligada com a cola de sacerdotes unidos entre si”.

Excerto de: S. ROBERTO BELARMINO; Disputas sobre a fé cristã – Sobre a Igreja, volume II, Editora CDB, 2021, pp. 261-272. De controversiis Christianis Fidei, lib. III, cap. IV-V.

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