JOÃO XXIII

[NOTA INTRODUTÓRIA: O dono do site em si não é declarado publicamente “sedejoanino”, um sedevacantista que aceita João XXIII como um papa legítimo. A intenção da publicação desse artigo do Pe. Belmont serve para antes de tudo levantar um debate. Apesar de não ser um sedejoanino declarado, estamos abertos à possibilidade.]

Padre Hervé Belmont
2011

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Aqueles que são nomeados (com ou sem razão) sedevacantistas estão divididos quanto a João XXIII: alguns negam que ele tenha sido verdadeiramente Papa; outros colocam-no em dúvida ou não se interessam por ele; outros, por fim, reconhecem-no como tal (é, creio eu, uma minoria).

De minha parte, sustento que João XXIII foi Papa legítimo da Santa Igreja Católica, e não vejo como escapar à assertiva sem ferir a fé católica exercida.

Se me detenho nele aqui, não é de maneira alguma para fazer a apologia de João XXIII, nem para vilipendiar aqueles que tomam outra via. É simplesmente porque o reconhecimento de João XXIII como Papa me parece ser uma questão de verdade e de credibilidade. De verdade, porque a fé me obriga a isso. De credibilidade, porque recusar João XXIII por razões sentimentais, fantasiosas, mal fundadas ou de nível inferior à fé daria a pensar que a recusa de Paulo VI et sequentes fosse do mesmo jaez. Ora, bem evidentemente não é assim.

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João XXIII foi eleito validamente Papa, com toda a evidência e sem contestação possível (em razão da aceitação incontestada da Igreja universal). Ora, como a fé católica não impede de reconhecer nele a Autoridade soberana de Jesus Cristo, essa mesma fé obriga a isso. Não se trata aí de um fato deixado à livre apreciação de cada um, mas de um fato dogmático, ou seja, de um fato contingente que, embora não seja revelado, pertence mesmo assim à luz da fé, pois constitui a regra próxima dessa fé.

A Igreja Católica é o Corpo Místico de Jesus Cristo; ela é, pois, principalmente uma sociedade sobrenatural. Todos os seus elementos essenciais pertencem à ordem sobrenatural: dentre eles, em primeiro plano, a autoridade.

Nossa relação com a autoridade (reconhecimento, submissão) é da alçada da ordem teologal, fundamentalmente da ordem da fé. À margem dela, nenhum ponto de vista pode ser adequado, nem legítimo caso faça abstração dela. Nossa consideração da autoridade e nossa atitude para com ela não devem ser nem ideológicas (segundo reflexos naturais ou juízos humanos) nem sentimentais (segundo a inclinação do coração ou segundo intuições, revelações ou outras aparições), mas, sim, teologais: elas são parte necessária do exercício da virtude da fé, conforme a caridade que faz a unidade da Igreja.

Para voltar a João XXIII, é inegável que ele foi pacificamente assente no trono de São Pedro: logo, é a fé que me obriga a reconhecer a autoridade pontifícia de João XXIII e a sujeitar-me a ela. Uma vez constatado o fato da presença sobre a Sé Pontifícia, a fé obriga a reconhecer a autoridade…

…salvo se ela o impede: mas ela não pode realmente e legitimamente impedir a não ser que esse impedimento seja conhecido e estabelecido no interior da própria fé, que esse impedimento seja o exercício mesmo da virtude de fé, exercício que recebe seu objeto do ensinamento da Igreja Católica e é guiado por seu espírito.

Se, pois, alguém quisesse demonstrar que João XXIII não foi Papa, seria preciso que provasse que a fé mesma impede o reconhecimento dele. Não somente isso nunca foi feito, como as tentativas de justificação da recusa de reconhecê-lo não se situam em boa luz.

Com efeito, nem as inquietudes que se poderia ter com a sua figura e seus antecedentes, nem eventuais simpatias e complacências modernistas, nem a constatação de imprudências graves, nem a afirmação de uma pertença maçônica (que seria preciso provar seriamente, para não ser juízo temerário) nem outras considerações dessa ordem podem ser contrapostas a um fato dogmático.

Nos atos pontifícios de João XXIII, nenhum é contrário à fé. Deve-se afirmá-lo a priori (pois há sempre presunção favorável à autoridade e à continuidade) e posso afirmá-lo por haver consultado todos os atos de João XXIII. Dentre eles, encontra-se sem dúvida um certo número que são desagradáveis, lamentáveis e mesmo inquietantes. Mas não há nenhum que impeça a adesão de fé, logo todos permanecem obrigados a essa adesão de fé.

Objeta-se Pacem in terris, que afirma (entre outras coisas) que todos têm o direito de seguir sua religião. Não é Dignitatis Humanæ personæ antecipada? Não, pois é a tradução francesa que contém: sua religião. O latim diz: a religião, o que, para um ouvido pio, não pode ser entendido senão da religião católica, em conformidade com a maneira tradicional de se exprimir. Ademais, Pacem in terris não conecta essa afirmação à Revelação, e, portanto, não impera um ato de fé.

Afirma-se, além disso, que foi João XXIII quem convocou o concílio Vaticano II. E daí? Não há nada de repreensível nisso.

Insiste-se dizendo que um concílio, sendo por natureza infalível, se de fato não o foi, só pode ser por falta de autoridade pontifícia. O argumento é verdadeiro em seu conteúdo, mas neste caso ignora duas coisas. A primeira é que um concílio ecumênico é infalível nos seus atos promulgados, e não em sua convocação, em seus debates nem em seus regulamentos. Ora, João XXIII não promulgou nenhum dos atos do Vaticano II, todos posteriores a ele. A segunda coisa que se esquece é que o concílio convocado por João XXIII cessou de ser quando da morte deste, e que, quando Paulo VI decidiu continuá-lo, é na realidade um outro concílio que toma o mesmo nome, que dá continuidade aos mesmos debates, mas que depende da autoridade de um outro. É o que estipula o Direito canônico (cânon 229), conformemente à natureza das coisas:

“Se acontecer de o Papa vir a falecer durante a celebração do concílio, este é interrompido de pleno direito, até que o novo Soberano Pontífice ordene retomá-lo e continuá-lo.”

Obrigado a reconhecer na fé a autoridade de João XXIII, sou obrigado a me submeter a ela, tanto mais que devo, então, crer que tudo aquilo que ele ligou na terra está ligado nos céus. Devo, pois, seguir a sua reforma litúrgica, é uma exigência de origem teologal.

Mas, justamente, eis que se tira argumento de sua reforma litúrgica. Ora, esta última, ainda que não se goste dela ou se a lamente, nada tem contra a fé. De resto, contrariamente a uma forma difundida de se exprimir, não existe “liturgia de João XXIII” como existe uma liturgia de Paulo VI. João XXIII realmente fez uma reforma do calendário e uma reforma do breviário, mas isso não constitui uma liturgia à parte, tanto mais que na matéria João XXIII se inscreve na linha das reformas inauguradas por Pio XII (23 de março de 1955 para a simplificação do calendário) e estende ao ano inteiro os princípios empregados por Pio XII para a Semana Santa (João XXIII inclusive “voltou atrás” sobre certos pontos). As reformas de João XXIII, é um simples fato histórico, estão ligadas às de Pio XII, das quais são o remate, e não à revolução de Paulo VI-Vaticano II, da qual seria o prelúdio. Isso não quer dizer que seja interdito considerá-las lamentáveis, embaralhantes, empobrecedoras; isso não quer dizer que seja interdito desejar que elas um dia sejam abolidas.

Caso se insista, estimando que a ação de João XXIII esteve no princípio de um movimento que, na sequência, saiu dos limites da fé católica, forçoso é reconhecer que ele nunca chegou a conhecê-lo e, portanto, jamais aceitou visivelmente suas consequências.

Instância: João XXIII tocou no intocável Cânon da Missa, acrescentando-lhe o nome de São José; logo, violou a bula Quo primum tempore de São Pio V, que ameaça com a indignação dos Apóstolos São Pedro e São Paulo a quem quer que ouse atentar contra a sua bula ad perpetuam rei memoriam. Ademais, João XXIII conformou-se a certos elementos daquilo que Dom Guéranger chamava de a heresia antilitúrgica… Não seria isso contrário à autoridade pontifícia?

Não. O Cânon da Missa é uma oração infinitamente venerável, mas não está fora da autoridade do Soberano Pontífice: nos primeiros séculos, certos Papas fizeram-lhe adições. A bula de São Pio V não teria como ligar e anatematizar seus sucessores: São Pio X de fato reformou em profundidade o breviário que São Pio V promulgara pela bula Quod a nobis, a qual tem a mesma solenidade e contém as mesmas ameaças que a bula Quo primum. Essa reforma de São Pio X, além disso, comporta, também ela, certos elementos enumerados por Dom Guéranger creditados à heresia antilitúrgica… mas, para Dom Guéranger como para todo católico, o fundamento e o essencial da heresia antilitúrgica são querer constituir ou reformar a liturgia à margem da autoridade do Soberano Pontífice ou contra ela. Retorna-se sempre ao problema da autoridade, a um problema que não tem sua solução senão na ordem teologal.

Certamente que é bem doloroso de ver, na reforma de João XXIII, um empobrecimento, constatar que os modernistas estilo Daniélou triunfavam, etc. Mas o lamento, a dor, a inquietude não legitimam a desobediência à autoridade soberana, nem sua rejeição.

Não é por gosto, não é por escolha, não é por facilidade que me conformo à reforma litúrgica de João XXIII. No início da minha vida sacerdotal, quando ainda influenciado pelas falsas doutrinas aprendidas no seminário – malgrado minhas hesitações – eu descuidava do que precede e acreditei poder fazer uma escolha, foi a liturgia anterior que adotei. Também aí, a reflexão fez-me abandoná-la ao cabo de alguns meses, não sem tormento, aliás.

Há quarenta anos que frequento muito padre que recusa seguir as reformas de João XXIII, invocando argumentos mais ou menos pertinentes, mais ou menos gratuitos: ele não é papaele é mau papaele é duvidosamente papasua reforma é provisória etc. Mas os mesmos – e não conheço nem uma única exceção – recusam igualmente adotar certas reformas de Pio XII: sejam as de 23 de março de 1955, sejam as da Semana Santa, sejam ambas. E, no entanto, todos reconhecem Pio XII e não lhe atribuem nenhum dos qualificativos com que são generosos em se tratando de João XXIII. Tiro daí a conclusão de que, tendo como pano de fundo o amor à tradição e o apego à santa liturgia da Igreja, o motivo real de sua recusa das reformas não consiste naquilo que atribuem a João XXIII, mas antes em seu espírito próprio, nesse espírito de anarquia que gangrena o mundo inteiro e, no topo da lista, o mundo “tradi”.

Para concluir, portanto, a fé católica obriga a reconhecer em João XXIII o vigário de Jesus Cristo, o detentor da sucessão e da Autoridade de São Pedro; ela obriga, por conseguinte, a confessar em palavras e em atos que tudo aquilo que ele ligou na terra está ligado nos céus. Não vemos como se possa sair disso sem pôr em perigo toda a doutrina da Igreja que se refere à Autoridade suprema.

O que escrevo aqui é para mim convicção firme, que me guia para a minha vida pessoal e para aquilo que está dentro de minha responsabilidade. Mas não tenho nem sombra de poder para impô-lo a quem quer que seja e não obrigo ninguém a me seguir.

Posso mesmo assim (e, sendo o caso, me sinto no dever de) recordar a necessidade para todos e cada um de se embasar verdadeiramente na doutrina da Igreja, e portanto a obrigação de conhecer essa doutrina como um todo – e não se limitando àquilo que apraz, àquilo que convém ou que não incomoda. Nós temos uma tal obrigação para com a verdade, e é também uma prudência elementar: se professarmos princípios falsos ou aproximativos, eles darão, mais dia menos dia, frutos amargos. Pode ser que, por ora, nossas disposições, nossas virtudes ou nossos hábitos impeçam a eles de produzir suas consequências desastrosas: mas, quando de um acontecimento grave, quando de uma decisão a tomar, ou então naqueles em quem houvermos inculcado esses princípios, esses frutos amargos aparecerão. A experiência mostra que os falsos princípios são mais tenazes que as boas disposições, e é preciso precaver-se contra nossa fraqueza. Mais concretamente, a situação da Igreja pode reservar-nos muitas surpresas (num sentido como no outro), e somente uma visão teologal pode fazer discernir a verdade e o que é exigido pela pertença à Igreja.

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*     *

O fato de que tal pessoa, legitimamente situada na cabeça da diocese de Roma, e, portanto, na cabeça da Igreja Católica, é o Soberano Pontífice Vigário de Jesus Cristo possuidor da plenitude do poder na Igreja, esse fato é um fato dogmático que, como tal, depende da luz da fé. Aí está o princípio no qual me apoiei para discernir a situação de João XXIII.

Não é um princípio inventado: sempre foi empregado pela Igreja Católica e estudado e professado pelos teólogos, de uma forma ou de outra. Assim Billuart, douto comentador de Santo Tomás de Aquino no século XVIII, se coloca a questão: “É de fé que Clemente XIV é Sumo Pontífice?” e responde afirmativamente: “Probabilius videtur esse de fide — parece mais provável que seja de fé”. Em seguida, ele dá a razão constitutiva disso: “Omnis homo acceptatus ab universa Ecclesia in Petri successorem est summus Pontifex — todo homem recebido pela Igreja universal como Sucessor de São Pedro é o Sumo Pontífice”; em seguida, ele precisa a razão determinante, que explica por que esse fato contingente entra no âmbito da luz da fé: “De fide est quod Ecclesia errare non possit in acceptanda fidei regula — a fé nos assegura de que a Igreja não tem como errar na aceitação da regra da fé”. Cf. Charles-René Billuart, o. p., Cursus Theologiæ, tomo V, Tractatus de Regulus Fidei, dissertação IV, De Summo Pontifice, artigo IX. Lyon 1839, pp. 225 et sqq.

Notemos de passagem que o reconhecimento do Soberano Pontífice não é uma formalidade semi-administrativa: é o verdadeiro reconhecimento da regra viva e próxima da fé católica, é uma adesão que se atua e se formaliza na fé exercida.

Surge então, logicamente, a dificuldade seguinte: esse princípio certo deveria ser aplicado de igual maneira a Paulo VI a partir do instante de sua eleição, o que acarreta que a fé obriga a reconhecê-lo como Papa. Ademais, caso se diga que ele deixou de ser Papa a partir de 7 de dezembro de 1965 (data da afirmação solene de um pretenso direito à liberdade religiosa), resta explicar como lhe seria possível perder o pontificado, de encontro à promessa de Jesus Cristo: “Simão, Simão, […] eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos” (Lc. XXII, 31-32); e isso não subtrairia da necessidade de submeter-se a todos os atos doutrinais e disciplinares que ele promulgou até então.

Essa dificuldade se embasa em princípios incontestáveis, mas nem por isso é insolúvel.

Para começar, faço notar que não digo que Paulo VI tenha perdido o pontificado em 1965; afirmo que ele nunca foi verdadeiramente Papa, desde a origem. E, para afirmá-lo, retorquo o argumento: é certo que seria impossível ele ser verdadeiro Papa em 7 de dezembro de 1965; pode-se deduzir a partir daí, em razão da promessa de Nosso Senhor, que ele jamais foi verdadeiramente Papa.

Essa precisão não permite escapar à dificuldade, mas nos conduz ao coração do problema. O fato de que tal homem seja o Soberano Pontífice é um fato dogmático, bem entendido; mas por natureza é também, e antes de tudo, um fato contingente: carece, pois, de ser consolidado, de ser reconhecido, de ser determinado com verdadeira credibilidade.

Toda a história da Igreja dá testemunho desse fato, e a teologia registra-o para analisar-lhe as consequências.

A história, primeiro. Foram numerosas, ao longo de toda a vida da Igreja, as querelas e incertezas acerca do reconhecimento desta ou daquela pessoa como Papa. Houve mesmo verdadeiras impossibilidades de determinar categoricamente quem fosse o real Sucessor de São Pedro. Pensa-se, é claro, no Grande Cisma do Ocidente, mas há vários outros exemplos.

Assim, em 1130, a eleição do sucessor de Honório II foi dupla: estava-se diante de uma situação insolúvel com Inocêncio II e Anacleto II disputando entre si a Sé Apostólica. O caso foi longo, difícil, bélico. Enquanto que Roma e a península italiana eram por Anacleto II, a intervenção de São Bernardo, que percorreu a Cristandade para aderir os príncipes a Inocêncio II, foi decisiva; mas levou diversos anos para fazer reconhecer aquele que São Bernardo julgava o mais virtuoso (pois os critérios canônicos eram impotentes para dirimir). O cisma não se extinguiu senão com a morte de Anacleto II (1138).

O fato dogmático não podia ser dogmático, primeiro, porque não era um fato; e a Igreja permaneceu em suspenso, sem regra próxima da fé conhecida com certeza suficiente para estar verdadeiramente consolidada.

A teologia registra o fato e trata do problema, como o faz longamente João de S. Tomás no seu Cursus Theologicus (in Secundam Secundæ, Tratado da Fé).

Como se disse mais acima, o fato dogmático é, primeiro que tudo, contingente. Pode ser que haja necessidade de tempo e de discernimento para determiná-lo; que seja preciso observar os primeiros atos, para saber se estamos diante de um verdadeiro Papa, que ensina a fé e que procura o bem da Igreja.

É o que sobressai implicitamente da bula de Paulo IV Cum ex Apostolatus (15 de fevereiro de 1559). Se esse Papa admite que se possa tardar em perceber que um eleito é herege e, portanto, incapaz de ser Soberano Pontífice, é que desde a origem o fato da legítima sucessão não era nem consolidado nem credível, e isso de modo visível aos olhos da fé, ainda que não fosse de saltar aos olhos.

É aí que jaz toda a diferença entre João XXIII e Paulo VI.

Quando Angelo Roncalli é eleito em 1958, embora diversos rangidos sinistros se façam ouvir no corpo da Igreja, a Santa Sé não é afetada por isso: até o fim, Pio XII conduziu com segurança a barca de São Pedro, e João XXIII lhe sucede “com toda a naturalidade”; de início, ele traz inclusive maior firmeza (isso se vê muito claramente nos atos das congregações romanas). O fato de João XXIII ser sucessor de São Pedro e, portanto, verdadeiro Papa não experimenta nem dificuldade nem expectativa.

Quando João Batista Montini é eleito em 1963, a situação é inteiramente outra. Falando humanamente, a Igreja entrou em estado de revolução.

O Concílio Vaticano II inaugurou-se com uma perspectiva inquietante: não condenar mais. É inquietante, porque a condenação do erro é um meio insubstituível de ensinar a verdade. Não é simplesmente uma necessidade “pedagógica”, mas uma exigência que pertence à natureza das coisas. Com efeito, o ensinamento da verdade padece sempre de uma inadequação das ideias e das palavras humanas, ao passo que o erro é humano e se exprime, pois, adequadamente: sua condenação traz uma precisão indispensável.

Em seguida, esse concílio escapa totalmente à autoridade de João XXIII, que deixa instalar-se uma imensa sociedade ideológica [société de pensée], uma espécie de colossal escaldador de bispos, em que os teólogos loucos (de fato, não tão loucos assim) que haviam sido destituídos ou suspeitados sob Pio XII andam no galarim e encetam a conquista dos espíritos para os erros deles tornarem-se ensinamento oficial. A conquista que empreendem não é uma conquista doutrinal, mas uma conquista sociológica (é o próprio das sociedades ideológicas), insidiosa, contrária à natureza e eficaz.

Por fim, a publicação de Pacem in terris, que faz pouco de roçar as fronteiras da ortodoxia (principalmente a respeito da liberdade religiosa) e dá uma impressão de conjunto mais do que inquietante, retine como um sinal de alarme.

Está-se, pois, então no direito, e mesmo no dever, de ficar na expectativa e de observar durante algum tempo: é bronquite passageira ou esboço de tuberculose mortal?

Paulo VI dá bem depressa a resposta, a partir de 1963: o concílio é reconduzido sem restauração da ordem natural; com o decreto Inter mirifica sobre os “meios de comunicação sociais”, ele soçobra no vazio intelectual; pela constituição Sacrosanctum concilium, ele decreta a revolução litúrgica universal.

Outro fato de extrema gravidade deve ser também levado em conta: é a instalação de uma comissão pontifical sobre os meios artificiais de subtrair ao fim primário do matrimônio. Enquanto Pio XII se pronunciara muito claramente, condenando a ofensiva contra a santidade do matrimônio antes mesmo de ela ser comercializada, durante quatro anos a existência mesma dessa comissão vai semear a dúvida, destruir a firmeza moral, arrastar milhões de católicos bem longe da lei de Deus e da ordem natural. Quando a encíclica Humanæ vitæ for publicada, será tarde demais, eles não voltarão atrás; e, de resto, Paulo VI deixará os episcopados dizerem o contrário, para aniquilar todo efeito constringente.

Essa comissão começou sob João XXIII pela reunião de um grupo de especialistas “para efetuar a exame do problema demográfico” [carta da Secretaria de Estado de 27 de abril de 1963]. A sequência é diabólica. Em outubro de 1963, entre “conservadores”, começa-se alterando o objeto da comissão, que será sobretudo o campo moral. Em abril de 1964, introduz-se confidencialmente teólogos revolucionários para dinamitar o negócio. A comissão transformou-se em oficina de semeadura de dúvida e de desmoralização.

Não há, portanto, necessidade de esperar o 7 de dezembro de 1965, nem de imaginar algum efeito retroativo. Desde o primeiro dia é o “partido da revolução” que reina e triunfa. Desde o primeiro dia, não se pode conceder nenhuma credibilidade real a Paulo VI: ele assume a grande baderna que, com ele, torna-se deliberada e oficial.

Eis por que não se pode aplicar a Paulo VI o “benefício do fato dogmático” reconhecido a João XXIII.

Não se pode, dir-se-á então, aplicar a João XXIII o que acaba de ser dito de Paulo VI?

Estimo verdadeiramente que não, pois não existe nem ato nem continuidade a impossibilitar o exercício da fé. Nem por isso desprezo aqueles que o aplicam, pois há aspectos bem inquietantes no “Papa de transição”. Creio, porém, que essa aplicação é ilegítima.

Trad. por Felipe Coelho.

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