[NOTA: geralmente uso “BELARMINO”, com um “L” só. Mas será respeitada a grafia usada pelo tradutor.]
Padre Anthony Cekada
1994
Em debates entre católicos tradicionais sobre a legitimidade dos papas pós-conciliares, a seguinte citação de São Roberto Bellarmino foi repetidamente reciclada:
“Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior.” (De Romano Pontifice, II, 29.)
Alguns usam essa citação, tirada do longo tratado de Bellarmino que defende o poder do Papa, para condenar o “sedevacantismo”, a tese que mantém que a hierarquia pós-conciliar, incluindo os papas pós-conciliares, perdeu o seu ofício ipso facto por heresia. Eu a vi ser empregada não menos de três vezes nos últimos quatro meses: uma vez no Remnant (Edwin Faust, “Signa Temporum”, 15 de abril de 1994, p. 8), uma em The Catholic (Michael Farrell, Carta ao Editor, “Simple Answer to the Sede-Vacancists” [Resposta Simples aos Sede-Vacancistas], abril de 1994, p. 8), e uma por um padre da Fraternidade São Pio X.
Os católicos tradicionais que rejeitam a Missa Nova e as mudanças pós-Vaticano II, mas sustentam ainda que os papas pós-conciliares detêm legitimamente o ofício deles – grupo este que inclui a Fraternidade, Michael Davies e muitos outros –, enxergam também nessa passagem alguma espécie de justificativa para reconhecer alguém como Papa mas rejeitar suas ordens.
A citação foi aduzida incansavelmente para apoiar essas posições, sem dúvida de completa boa fé. Lamentavelmente, ela foi tirada do contexto e completamente mal aplicada. Em seu contexto original, a afirmação de Bellarmino não condena o princípio subjacente à posição sedevacantista nem justifica resistir a leis promulgadas por um Papa validamente eleito.
Mais ainda: no capítulo que se segue imediatamente à afirmação citada, Bellarmino defende a tese de que um papa herético perde automaticamente o ofício dele.
De passagem, convém notar primeiro como é uma calúnia estúpida citar essa passagem e sugerir que os sedevacantistas “julgam”, “punem” ou “depõem” o papa. Eles não fazem nada disso. Eles tão-somente aplicam às palavras e atos dos papas pós-conciliares um princípio enunciado por muitos grandes canonistas e teólogos, incluindo (como veremos) São Roberto Bellarmino: um papa herético “depõe” a si mesmo.
I. O SIGNIFICADO DA PASSAGEM FOI DISTORCIDO
POR SUA SUBTRAÇÃO DE SEU VERDADEIRO CONTEXTO.
A passagem citada é de um capítulo extenso que Bellarmino dedica a refutar nove argumentos, os quais defendem a posição de que o Papa está sujeito ao poder secular (imperador, rei, etc.) e a um concílio ecumênico (a heresia do conciliarismo).
O contexto geral, portanto, é uma discussão do poder do Estado com relação ao Papa. Obviamente, isso não tem absolutamente nada a ver com as questões que os sedevacantistas levantaram.
No seu contexto particular, o excerto tão frequentemente citado é parte da refutação, por Bellarmino, do seguinte argumento:
“Argumento 7. A qualquer pessoa, é permitido matar o papa se ela for injustamente atacada por ele. Logo, a fortiori é permitido aos reis ou a um concílio depor o papa se ele perturba o estado, ou se ele tenta matar almas com o mau exemplo dele.”
Bellarmino responde:
“Eu respondo negando a segunda parte do argumento. Pois, para resistir a um agressor e defender a si próprio, nenhuma autoridade é necessária, nem é necessário que quem é agredido seja o juiz e o superior do agressor. Autoridade é exigida, porém, para julgar e punir.”
É somente aí que Bellarmino afirma:
“Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior.” (De Romano Pontifice, II, 29.)
A citação, então, não é uma condenação do “sedevacantismo”. O que Bellarmino está discutindo é que linha de ação pode ser tomada legitimamente contra um papa que perturba a ordem política ou “mata almas pelo mau exemplo dele”. Um rei ou um concílio não podem depor um tal papa, argumenta Bellarmino, pois eles não são superiores a ele; mas eles podem resistir a ele.
Nem tampouco essa citação respalda aqueles católicos tradicionais que pretendem reconhecer João Paulo II como papa, mas rejeitar a missa dele e ignorar as leis dele.
Primeiro, a passagem justifica resistência por Reis e Concílios. Ela não diz que bispos individuais, padres e leigos individuais, por sua própria conta, possuem esse direito de resistir ao Papa e ignorar as ordens dele; menos ainda que eles podem erigir centros de culto em oposição aos Bispos diocesanos que um Papa tenha legalmente nomeado.
Em segundo lugar, há que notar as causas precisas para a resistência no caso que Bellarmino está discutindo: perturbar o Estado ou dar mau exemplo. Isso, obviamente, não é a mesma coisa que legislação litúrgica papal, leis disciplinares papais ou pronunciamentos doutrinais papais que um indivíduo possa, de algum modo, considerar prejudiciais. Bellarmino dificilmente aprovaria desconsiderar, carte blanche, durante décadas, as diretivas dos homens que se alega reconhecer como legítimos ocupantes do ofício papal e Vigários de Cristo na terra.
Em suma, a passagem nem condena o sedevacantismo nem respalda tradicionalistas que “reconhecem mas resistem” aos “papas conciliares”.
II. BELLARMINO ENSINA QUE UM PAPA HERÉTICO
AUTOMATICAMENTE PERDE O SEU OFÍCIO.
No capítulo que se segue imediatamente à passagem citada, São Roberto Bellarmino trata da seguinte questão: “Se um papa herege pode ser deposto”. Note-se, em primeiro lugar, que essa questão pressupõe que um papa possa realmente tornar-se herege.
Após uma extensa discussão das várias opiniões que os teólogos já deram sobre essa questão, Bellarmino diz:
“A quinta opinião, portanto, é a verdadeira. Um papa que é um herege manifesto deixa automaticamente (per se) de ser papa e cabeça, assim como ele automaticamente deixa de ser um cristão e um membro da Igreja. Donde se segue que ele pode ser julgado e punido pela Igreja. Esse é o ensinamento de todos os antigos Padres, os quais ensinam que os hereges manifestos perdem imediatamente toda jurisdição.” (De Romano Pontifice, II, 30. Grifo meu.)
Destarte, os escritos de Bellarmino, longe de condenarem a posição sedevacantista, fornecem o princípio central sobre o qual ela está baseada: que um papa que se torna herege manifesto perde automaticamente o seu ofício e jurisdição.
O ensinamento de Bellarmino tampouco é uma opinião isolada. É o ensinamento de todos os Santos Padres, assegura-nos ele. E o princípio que ele enunciou foi reiterado por teólogos e canonistas até o século XX, incluindo comentadores do código de direito canônico de 1983, promulgado pelo próprio João Paulo II.
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QUEM PRETENDE reconhecer João Paulo II como papa, ao mesmo tempo que desconsiderando todas as ordens dele, não pode, portanto, tirar absolutamente nenhum consolo da citação de Bellarmino.
É a posição sedevacantista, em contrapartida, que é respaldada pelo ensinamento do grande Roberto Bellarmino: um Papa legítimo deve ser obedecido; um papa herege perde o seu ofício.
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APÊNDICE
(adicionado pelo tradutor)
[N. do T. – Voltando ao assunto dez anos mais tarde, o Autor acrescenta as seguintes precisões interessantíssimas, sobre o uso daquela citação de São Roberto Bellarmino, dita “da resistência”, pelos tradicionalistas.]
“1. Ordens Más, não Leis Más. Os tradicionalistas realmente ‘resistem’ às doutrinas falsas (por ex., sobre o ecumenismo) e leis más (por ex., a Missa Nova) promulgadas pelos papas pós-conciliares.
Mas, na famosa citação, Bellarmino trata de um caso completamente diferente: ele foi questionado sobre um papa que ataca alguém injustamente, perturba a ordem pública, ou ‘tenta matar as almas por seu mau exemplo’ (animas malo suo exemplo nitatur occidere). Em sua resposta, ele diz: ‘é lícito resistir a ele não fazendo o que ele ordena’ (…licet, inquam, ei resistere, non faciendo quod jubet).
Essa linguagem descreve um papa que dá maus exemplos ou ordens, ao invés de – como seria o caso com Paulo VI ou seus sucessores – um papa que ensina erro doutrinário ou impõe leis más. Isso fica claro a partir do capítulo 27 do livro do Cardeal Caetano De Comparatione Auctoritatis Papae et Concilii, que Bellarmino imediatamente cita como apoio à sua posição.
Primeiro, em seu título para o capítulo 27, Caetano diz que ele vai discutir um tipo de ofensa papal ‘diferente da heresia’ (ex alio crimine quam haeresis). A heresia, diz ele, altera completamente o status de um papa como cristão (mutavit christianitatis statum). É o ‘crime máximo’ (majus crimen). Os outros são ‘crimes menores’ (criminibus minoribus) que ‘não são equivalentes’ (cetera non sunt paria [ed. Roma: Angelicum 1936] 409).
Nem Bellarmino nem Caetano, portanto, referem-se a ‘resistir’ aos erros doutrinários de um papa ao mesmo tempo que continuando a considerá-lo verdadeiro papa.
Segundo, durante o De Comparatione, Caetano fornece exemplos específicos dos maus atos papais que justificam essa resistência da parte dos súditos: ‘promover os maus, oprimir os bons, comportar-se como um tirano, encorajar vícios, blasfêmias, avarezas, etc.’ (356), ‘se ele oprime a Igreja, se ele assassina as almas [pelo mau exemplo]’ (357), ‘dissipar os bens [da Igreja]’ (359), ‘se ele age manifestamente contra o bem comum da caridade para com a Igreja Militante’ (360), tirania, opressão, agressão injusta (411), ‘destruir publicamente a Igreja’ pela venda de benefícios eclesiásticos e barganha de ofícios (412).
Tudo isso envolve ordens (praecepta) más, só que ordens más não são a mesma coisa que leis (leges) más. Uma ordem é particular e transitória; lei é geral e é estável. (Para uma explicação, ver R. NAZ, ‘Précepte’, Dictionnaire de Droit Canonique, [Paris: Letouzey 1935-65] 7:116–17).
O argumento de Bellarmino e Caetano justifica somente resistir às ordens más de um papa (digamos, vender o cargo de pastor de uma paróquia a quem oferecer o melhor lance). Não dá apoio à noção de que um papa, enquanto ele ainda retém a autoridade de Jesus Cristo, pode (por exemplo) impor uma Missa sacrílega e protestantizada à Igreja inteira, cujos membros podem então ‘resistir’ a ele, ao mesmo tempo que continuando a reconhecê-lo como verdadeiro Papa.”
Trad. por Felipe Coelho, de: “Did Bellarmine Condemn Sedevacantism?”, Sacerdotium, n.º 12, verão de 1994.
Apêndice: ID., “The Bellarmine ‘Resistance’ Quote: Another Traditionalist Myth” [A citação de Bellarmino da ‘resistência’: mais um mito tradicionalista], St. Gertrude the Great Newsletter [Circular de notícias da igreja de Santa Gertrude, a Grande], out. 2004.
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