A AMEAÇA DE DEPOSIÇÃO DO PAPA PASCOAL II PELOS SANTOS BISPOS DE SEU TEMPO

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira
1970
(sob supervisão de Dom Antônio de Castro Mayer)

Durante o Pontificado de Pascoal II (1099-1118), a questão das investiduras abalou uma vez mais a Cristandade. O Imperador Henrique V, tendo aprisionado o Papa, dele extorquiu concessões e promessas inconciliáveis com a doutrina católica. Recuperando a liberdade, Pascoal II hesitou por muito tempo em desfazer os atos que praticara mediante coação. Embora advertido repetidas vezes por Santos, Cardeais e Bispos, sua retratação e a esperada excomunhão do Imperador eram sempre por ele postergadas. Começou então a erguer-se em toda a Igreja um murmúrio contra o Papa, qualificando-o de suspeito de heresia e conjurando-o a voltar atrás sob pena de perder o Pontificado.

Citamos aqui alguns fatos e documentos da luta que Santos, Cardeais e Bispos moveram contra Pascoal II. Ver-se-á, assim, que a teologia da época admitia a hipótese de um Papa herege e julgava que este, em razão de tal delito, perderia o Pontificado ([3] Neste caso, como no do Papa Honório, não é nosso objetivo tomar posição, quanto à questão histórica. Queremos apenas mostrar que teólogos de peso admitiram a possibilidade de heresia na pessoa do Sumo Pontífice.).

* * *

São Bruno, Bispo de Segni e Abade de Monte Cassino, estava à testa do movimento contrário a Pascoal II na Itália. Não se possui nenhum documento em que ele tenha declarado de modo insofismável que julgava o Papa suspeito de heresia. No entanto, é essa a acusação que suas cartas e seus atos insinuam inequivocamente. 

A Pascoal II, ele escreveu:

“(…) Eu vos estimo como a meu Pai e senhor (…). Devo amar-vos; porém devo amar mais ainda Àquele que criou a vós e a mim. (…) Eu não louvo o pacto (assinado pelo Papa), tão horrendo, tão violento, feito com tanta traição, e tão contrário a toda piedade e religião. (…) Temos os Cânones; temos as constituições dos Santos Padres, desde os tempos dos Apóstolos até vós. (…) Os Apóstolos condenam e expulsam da comunhão dos fiéis todos aqueles que obtêm [11/12] cargos na Igreja através do poder secular. (…) Esta determinação dos Apóstolos (…) é santa, é católica, e quem quer que a ela contradiga, não é católico. Pois somente são católicos os que não se opõem à fé e à doutrina da Igreja Católica. E, pelo contrário, são hereges os que se opõem obstinadamente à fé e à doutrina da Igreja Católica. (…)”
([1] Carta de SÃO BRUNO DE SEGNI a Pascoal II, escrita em 1111 – P.L., tom. 163, col. 463. Ver também: BARONIUS, Annales, ad ann. 1111, n.º 30, p. 228; HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, p. 530).

Em outra carta, São Bruno frisa que só considera hereges os que negam os princípios católicos sobre a questão das investiduras, e não os que na ordem concreta, pressionados pelas circunstâncias, agem em desacordo com a doutrina verdadeira ([2] Carta aos Bispos e Cardeais: P.L., tom. 165, col. 1139. – Ver ainda a carta de SÃO BRUNO ao Bispo de Oporto: P.L., tom. 165, col. 1139, citada também por BARONIUS, Annales, ad ann. 1111, n.º 31, p. 228). – A ressalva não é entretanto suficiente para eximir Pascoal II da suspeição de heresia, uma vez que este, mesmo cessada a coação, se recusava a reparar o mal praticado.

O Papa deu-se bem conta de que São Bruno não afastava a hipótese de declará-lo destituído, pois resolveu depor o santo do influente cargo de Abade de Montecassino, sob a seguinte alegação: 

“A não ser que eu o afaste da direção do Mosteiro, ele com os seus argumentos tirará de mim o governo da Igreja”
([3] Citado por BARONIUS, Annales, ad ann. 1111, n.º 32, p. 228. Ver também: HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, p. 530; ROHRBACHER, Hist. Univ. de l’Égl. Cath., tome XV, p. 130).

E quando, afinal, o Papa se retratou, diante de um Sínodo reunido em Roma para examinar a questão, São Bruno de Segni exclamou:

“Deus seja louvado! Pois eis que o próprio Papa condena esse pretenso privilégio (sobre as investiduras pelo poder temporal), que é herético”
([4] Citado por HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, p. 555).

Com essa frase, São Bruno pela primeira vez dava a entender publicamente o quanto suspeitava da ortodoxia de Pascoal II. Diante disso seus inimigos protestaram energicamente; entre eles sobressaía o Abade de Cluny, Jean de Gaete, “o qual – lemos em Hefele-Leclercq – não queria permitir que se acusasse o Papa de heresia” ([5] HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, p. 555).

* * *

São Bruno de Segni não foi o único Santo da época que admitiu a possibilidade de heresia em Pascoal II. Em 1112, o Arcebispo Guido de Vienne, futuro Papa Calisto II, convocou um Sínodo provincial, a que compareceram, entre outros Bispos, Santo Hugo de Grenoble e São Godofredo de Amiens. Com a aprovação desses dois Santos, o Sínodo revogou os decretos arrancados pelo Imperador ao Papa e enviou a este último uma carta onde lemos:

“Se, como absolutamente não cremos, escolherdes outra via, e vos negardes a confirmar as decisões de nossa paternidade, valha-nos Deus, pois assim nos estareis afastando de vossa obediência”
([6] Citado por BOUIX, Tract. de Papa, tom. II, p. 650 – Ver também: HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, p. 536; ROHRBACHER, Hist. Univ. de l’Égl. Cath., tome XV, p. 61).

Essas palavras contêm uma ameaça de ruptura com [12/13] Pascoal II, só explicável pelo fato de que no espírito dos Bispos reunidos em Vienne se conjugavam três noções: em primeiro lugar, estavam eles convencidos de que constituía heresia negar a doutrina da Igreja sobre as investiduras; em segundo lugar, suspeitavam que o Papa houvesse abraçado essa heresia; e, em terceiro lugar, consideravam que um Papa eventualmente herege perderia o cargo, não mais devendo, portanto, ser obedecido ([1] No mesmo sentido, pronunciou-se GEOFFROI, Abade-Cardeal de Vendôme: ver ROHRBACHER, Hist. Univ. de l’Égl. Cath., tome XV, pp. 63-64). Essa interpretação é confirmada, de modo a eliminar qualquer dúvida, pelas cartas escritas na ocasião por SANTO IVO DE CHARTRES, às quais a seguir aludiremos ([2] Cartas citadas nesta mesma página.).

Depois de narrar os acontecimentos do Sínodo de Vienne, Hefele-Leclercq escreve:

“O resultado foi que, a 20 de outubro desse mesmo ano, o Papa confirmou, numa carta breve e em termos vagos, as decisões tomadas em Vienne, e elogiou o zêlo de Guido. Foi o receio de um cisma que levou o Papa a tomar essa atitude”
([3] HEFELE-LECLERCQ, tom. V, part. I, pp. 536-537).

* * *

Em desabono desse Sínodo provincial de Vienne, poder-se-ia argumentar que um outro Santo, o Bispo IVO DE CHARTRES, recusou-se a dele participar alegando que a ninguém cabia julgar o Papa ([4] Ver: BOUIX, Tract. de Papa, tom. II, pp. 650-651; ROHRBACHER, Hist. Univ. de l’Égl. Cath., tome XV, pp. 61-63. SANTO IVO DE CHARTRES, que tomou tal decisão juntamente com outros Bispos, explica sua atitude em carta endereçada ao Arcebispo de Lion (P.L., 162, 238 ss.).)

Não pretendemos aqui estudar a História do Sínodo de Vienne. Citamo-lo apenas a fim de mostrar que, na época, dois Santos e um futuro Papa tomaram em relação a Pascoal II uma atitude fundada nos princípios de que pode haver um Papa herege, e de que em tal caso o Pontífice perde o cargo. Portanto, será unicamente sob este ponto de vista que nos ocuparemos em analisar a posição de Santo Ivo de Chartres.

Também ele era contrário às concessões feitas por Pascoal II ao Imperador. Dizia que o Papa deveria ser advertido e exortado pelos Bispos, a fim de que reparasse o mal praticado. Divergia porém do Sínodo de Vienne, porque não considerava que a atitude do Papa na questão das investiduras envolvesse heresia. 

([5] Segundo parece, essa disputa que dividia até mesmo os Santos que se opunham a Pascoal II, originava-se de certa confusão que pairava em torno do conceito de herege. Uns diziam que, como o Papa não afirmara a heresia, não era herege. Outros sustentavam que, tendo agido de modo contrário a um dogma definido, ele era herege.

A teologia posterior esclareceu melhor o princípio de que é possível incidir em heresia não só negando explicitamente um dogma, mas também praticando atos que revelem de modo inequívoco um espírito herético (desenvolvemos esse tema no artigo “Atos, gestos, atitudes e omissões podem caracterizar o herege”, em Catolicismo, n.º 204, dezembro de 1967).

Portanto, Santo Ivo tinha razão ao sustentar que pelo mero fato de agir de forma oposta a um dogma, Pascoal II não se tornava herege. Mas, por seus escritos, não se vê que ele tenha considerado o outro aspecto da questão: o agir continuamente num sentido contrário a um dogma pode ser suficiente para caracterizar o herege.

E, por seu lado, os Bispos reunidos em Vienne estavam com a razão ao dizerem que é possível cair em heresia não apenas por palavras, mas também por atos; mas não consta que eles tenham tido em vista que semelhantes atos só caracterizam o herege quando, considerados em todas as suas circunstâncias, revelam de modo inequívoco um espírito herético. A simples pusilanimidade, por exemplo, ainda que continuada, não constitui heresia. Tal teria sido, segundo os historiadores em geral admitem, o caso de Pascoal II.)

Afirmava [Santo Ivo], em consequência, que Pascoal II não poderia ser submetido ao juízo dos homens, por mais graves que houvessem sido suas fraquezas. No entanto, Santo Ivo reconhecia explicitamente em sua carta – o que constitui para nós mais um testemunho importante sobre a possibilidade de defecção do Papa na fé – que o Pontífice eventualmente herege perderia o cargo. Eis suas palavras:

“(…) não queremos privar as chaves principais da Igreja (isto é, o Papa) de seu poder, qualquer que seja a pessoa colocada na Sé de Pedro, a menos que se afaste manifestamente da verdade evangélica”
([6] P.L., tom. 162, col. 240).

Portanto, a atitude tomada por Santo Ivo de Chartres não se opõe, sob o ponto de vista que no momento nos ocupa, à de São Godofredo de Amiens e Santo Hugo de Grenoble; mas, pelo contrário, a corrobora ([7] O “Decretum” atribuído a SANTO IVO DE CHARTRES contém também uma referência à possibilidade de um Papa herege, como indicamos à p. 14. Não lhe damos especial destaque porque sua autoria é hoje posta em dúvida. É entretanto inegável que a esse “Decretum” se reconhece não pequeno valor como expressão do pensamento medieval.).

Excerto de: Dr. ARNALDO VIDIGAL XAVIER DA SILVEIRA, A Hipótese Teológica de um Papa Herege, parte I de suas: Considerações sobre o “Ordo Missae” de Paulo VI, São Paulo, Junho de 1970, xx+169 pp., mimeografado para o autor, pp. 11-13; que correspondem às pp. 232-236 da tradução francesa publicada: La Nouvelle Messe de Paul VI : Qu’en penser ?, trad. fr. Cerbelaud Salagnac, Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, 1975.

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