EPIQUEIA

John S. Daly
2012

Se já ouviram falar da epiqueia, sem tê-la estudado seriamente, vocês têm provavelmente a impressão um pouco vaga de que é um princípio que autoriza, em certos casos excepcionais, a contornar a letra da lei: por exemplo, atravessar o sinal vermelho para levar um doente ao pronto-socorro. Isso não é inexato, mas é certamente bem incompleto.

Existem numerosos tipos diferentes de lei. Uma lei é uma ordenação da razão em vista do bem comum promulgada por quem tem o encargo de uma comunidade ou de uma sociedade. Sto. Tomás distingue três grandes categorias de leis: 1. a lei natural e eterna, estabelecida por Deus na natureza mesma das coisas que Ele criou, tal como a lei que proíbe em toda e qualquer circunstância a mentira; 2. a lei divina positiva, estabelecida pela livre vontade de Deus e podendo ter sido diferente, tais como as leis que governavam o ritual do Templo sob o Antigo Testamento, a escolha do sábado e depois do domingo como dia de culto e de repouso, a lei que exige sob o Novo Testamento a confissão integral de todos os pecados como condição de perdão; 3. a lei humana, estabelecida, com pouquíssimas exceções, pela Igreja ou pelo Estado.

Já aí a questão se põe: é permitido, por uma causa excepcional, contornar a lei natural, a lei divina positiva, ou somente a lei humana?

E depois, quando consideramos a lei humana, outras subdivisões se apresentam. Uma lei pode ordenar um ato, tal como a assistência à Missa, ou pode proibir um ato, tal como comer carne sexta-feira. Uma lei pode precisar as condições para que um ato seja válido, por exemplo as condições para tornar-se presidente ou para casar-se. Uma lei pode declarar a punição devida à infração de uma outra lei, e uma lei eclesiástica pode até mesmo impor diretamente certas punições espirituais sem processo, o que não é o caso da lei civil. Uma lei pode declarar uma pessoa capaz ou incapaz de determinado ato: por exemplo, a idade para se casar, a qualificação para participar de um conclave, a jurisdição para confessar. E, é claro, quando a legislação não é nem de Deus nem protegida por Deus, uma “lei” pode ser nula em razão de incompetência da autoridade promulgante ou por ser injusta em si mesma.

Mais uma vez, temos de perguntar se em todos esses casos é permitido contemplar o direito de afastar-se da letra da lei.

Depois, admitido que seja permitido afastar-se da letra da lei, quais são as condições que o permitem? Impossibilidade, dificuldade mais ou menos ampla? Quem é competente para saber se as condições são preenchidas? E até onde leva o princípio de exceção: ele escusa do pecado diante de Deus? da punição perante os tribunais? Ele concede um direito positivo que se possa fazer valer? (“Senhor açougueiro, eu exijo, em virtude da epiqueia, que o senhor me venda carne para comer esta sexta-feira, pois estou com anemia…”)

Em seguida, é preciso ter em mente que há diversos títulos que podem ser invocados, com ou sem razão, para não respeitar a letra de uma lei. Conflito com uma lei superior ou igual, dispensa expressa ou presumida da autoridade, cessação da lei por diferentes causas, suplência de jurisdição para exercer uma autoridade que não se possui habitualmente, impossibilidade física ou moral, diversos inconvenientes, dúvidas, erros. A epiqueia cobre quantos desses casos?

Aí estão, grosso modo, as questões às quais espero responder agora. E, com efeito, não vou me limitar estritamente ao tema da epiqueia propriamente dita, pois meu objetivo é um pouco mais geral: é o de estabelecer em quais casos, por quais causas, tem-se o direito de não fazer o que diz a letra de uma lei aparentemente obrigatória.

Mas é a epiqueia que vai predominar, e devo começar por uma definição, o que não é tão fácil, pois é uma palavra que tem várias acepções conexas mas distintas. Ela vem do grego e ficaria em latim “superjustitia”: aquilo que está acima da justiça. É, com efeito, segundo Sto. Tomás (seguindo Aristóteles), antes de tudo uma virtude que faz parte da virtude cardeal da justiça. Mais particularmente, é uma parte subjetiva da justiça legal, que respeita a intenção do legislador antes que a letra da lei e que é, assim, de certo modo a parte mais nobre da justiça legal. Ou ainda, com relação ao respeito à lei escrita, é a virtude que modera o respeito que lhe é devido em consciência. Ela se chama “suprajustiça” não porque ela ultrapasse toda a justiça mas porque ela ultrapassa a justiça que consiste em simplesmente obedecer à lei escrita.

Sto. Tomás acrescenta que a epiqueia é “como uma regra superior dos atos humanos” – superior à lei escrita. E, desse ponto de vista, a epiqueia aproxima-se de outra virtude cardeal: a prudência, que é a guia das virtudes. Pois por sua natureza a epiqueia faz parte da justiça e reside, portanto, na vontade. A epiqueia é, pois, uma virtude. Mas a mesma palavra se emprega, por extensão, para o princípio que permite ou exige, em certos casos, não fazer o que diz uma lei escrita. Dizemos fazer uso da epiqueia ou invocar a epiqueia para desobedecer, por uma causa suficiente, à letra de uma lei. Sto. Tomás fala inclusive do “epieikes”: o homem que faz um ato de epiqueia. E enquanto princípio segundo o qual se julga da conveniência de afastar-se da letra de uma lei para ser mais fiel à verdadeira justiça legal, ela habita na inteligência e depende estreitamente da gnome, uma das partes da prudência.

Ora, a epiqueia é uma virtude, e com certeza, é preciso ser virtuoso! Poder-se-ia então pensar que não há nada de mais louvável do que se esquivar da obrigação de obedecer à lei escrita e que se deveria fazer isso o mais frequentemente possível. Contudo, isso não seria virtuoso de jeito nenhum e seria pouco conforme à doutrina de Sto. Tomás. Sto. Tomás ensina muito claramente que somos obrigados em consciência, ou seja sob pena de pecado, a obedecer à lei, mesmo a lei humana, eclesiástica ou civil. As circunstâncias que permitem contornar a esta, na sua formulação concreta, nunca serão mais do que excepcionais.

E é a Sto. Tomás que pedirei que nos explique a razão por que é em certos casos permitido e bom fazer aquilo que parece ser, com relação à lei escrita, um ato de desobediência. E é igualmente Sto. Tomás quem nos dirá as circunstâncias que permitem fazer uso da epiqueia.

Ele trata disso em dois lugares principalmente, na Suma Teológica: primeiro na I-II à questão 96 artigo 6, onde ele se pergunta Utrum ei qui subditur legi liceat praeter verba legis agere?, e em seguida na II-II à questão 120, que compreende duas questões sobre a epiqueia: se ela é uma virtude e se ela faz parte da justiça.

Na primeira passagem, ele diz que toda lei é necessariamente ordenada ao bem comum e não tem seu poder de obrigar senão na medida em que seja este o caso. Mas que o legislador, não podendo contemplar cada caso em particular, passa uma lei conforme o que ocorre habitualmente. Mas que, se surgir uma situação em que a observância da lei seria nociva ao bem comum, não se deve observá-la – non est observanda. Pois acontece frequentemente de aquilo que promove geralmente o bem comum, num caso excepcional se verificar nocivo. E nesse caso cumpre obedecer não às palavras da lei – verba legis – mas à intenção do legislador. Pois o legislador humano não pode prever todos os casos eventuais e, ainda que pudesse, não conviria fazê-lo, pois a lei ficaria confusa demais.

E Sto. Tomás cita o exemplo de uma cidade sitiada onde a autoridade faz a lei de não abrir os portões, para proteger os cidadãos contra os inimigos exteriores. Então ele considera o caso excepcional em que um grupo de cidadãos, importante para a guarda da cidade, encontra-se fora e se dirige para os portões, perseguido de longe pelo inimigo. Nesse caso, ele diz que é preciso abrir os portões, pois mantê-los fechados seria “damnosissimum civitati” – injuriosíssimo para o bem comum querido pelo legislador.

Ao explicar esse princípio de agir “praeter verba legis”, a principal dificuldade à qual Sto. Tomás responde é a objeção de que não cabe ao súdito, ao inferior, erigir-se em juiz ou intérprete da lei, mas somente obedecer a ela. Ele faz absolutamente questão de salvaguardar esse princípio, pois é verdadeiro, e sem ele vira anarquia. Dizer que uma lei deve realmente visar e promover o bem comum não implica de modo algum para Sto. Tomás que o indivíduo possa julgar a conveniência da lei em si, ou interpretá-la, coisa reservada aos superiores. Somente quem pode fazer uma lei pode fazer a interpretação dela, falando propriamente. Mas, no caso da epiqueia, trata-se não de faltar à submissão para com o legislador, mas de submeter-se antes à sua intenção evidente que às suas palavras num caso excepcional. Assim Sto. Tomás diz que quem usa a epiqueia não julga a lei inteira, mas um caso particular e excepcional; e que ele não faz isso a não ser em caso de urgência, sendo-lhe impossível recorrer ao legislador para apresentar a este o caso especial; e que ele não o faz senão quando é manifesto que o legislador não queria uma obediência servil às palavras da sua lei, pois havendo dúvida são as palavras que prevalecem, sim, ao menos no aguardo de esclarecimento por parte da autoridade.

Seja dito de passagem que uma interpretação oficial de uma lei num sentido mais suave que sua estrita letra, mas feita pela autoridade competente, chama-se em geral equidade: aequitas.

Passemos ao segundo texto de Sto. Tomás, a Q 120 da II-II, consagrada especialmente à epiqueia. Sto. Tomás dá aí as definições e explicações que já resumi e, em seguida, ele apresenta uma ilustração diferente. Ele diz ainda que, em certos casos, seria oposto à igualdade da justiça e ao bem comum querido pela lei (“quod lex intendit”) observar-lhe a letra, por exemplo: a lei estipula que se deve restituir os depósitos, os objetos confiados, pois em geral isso é justo, mas ocorre às vezes de uma pessoa que tem crises de alienação mental (“furiosus”) confiar uma espada e depois pedi-la de volta quando está em delírio, ou que alguém peça de volta um depósito para atacar a sua pátria. Nesses casos e em casos similares, está bem contornar as palavras da lei para seguir o que é exigido pela justiça mesma, “justitiae ratio”, e a utilidade comum.

É interessante de observar que os dois exemplos de exercício da epiqueia dados por Sto. Tomás bastam já para responder a certas questões, mas não todas. Um desses exemplos refere-se a uma lei positiva: a de restituir os depósitos, ao passo que o outro refere-se a uma lei negativa: a que proíbe abrir os portões da cidade. Em ambos os casos, trata-se de lei humana, mas o segundo caso – a lei de restituir os depósitos – funda-se estritamente numa obrigação de direito natural.

E quanto à natureza da necessidade que permite a epiqueia? Em cada caso, vê-se que seria positivamente nocivo obedecer à letra da lei. E, no entanto, isso não é limitativo. Com efeito, Sto. Afonso de Ligório, que desfruta de autoridade particular em teologia moral, fala também de uma circunstância especial que tornaria a observância da lei dura demais (“nimis onerosa”). Vou ler-vos o texto de Sto. Afonso sobre a epiqueia:

“A epiqueia é a exceção de um caso por causa de circunstâncias que permitam julgar no mínimo provável que o legislador não queria que esse caso fosse abrangido pela lei.
(…)
Para que a epiqueia seja pertinente… a lei deve cessar contrariamente, tornando-se nociva ou demasiado árdua. É por isso que é permitido recusar-se a devolver uma espada para o seu proprietário se ele vai abusar dela. Mas é suficiente que a lei seja tornada dura demais…”
(Theologia Moralis, l.1, n. 201)

Estamos agora, então, em condições de afirmar que a epiqueia se aplica quando uma circunstância excepcional torna uma lei humana nociva ou ao menos árdua em demasia.

Poder-se-ia pensar que, em alguns desses casos, impor o respeito da letra da lei excederia o poder do legislador, e no entanto é praticamente certo que não é esse o pensamento de nossos teólogos. Sto. Tomás e todos os teólogos que falam da epiqueia no mesmo sentido afirmam que a epiqueia implica obedecer à intenção do legislador antes que ao texto geral que ele promulgou para os casos típicos. Mas isso parece indicar que o legislador teria tido o poder de exigir a obediência, mas que ele não quis fazê-lo. Não se fala, em se tratando de epiqueia, de conflito de leis ou de estrita impossibilidade física ou moral. Fala-se de julgar com prudência que o legislador não tinha a intenção de que a sua lei se estendesse a este ou aquele caso excepcional. E, com efeito, a autoridade civil poderia julgar tão necessário manter os portões da cidade fechados, a ponto de exigi-lo mesmo que isso fizesse perder um certo número de cidadãos. Mesmo o caso da espada do “furiosus” seria discutível.

É uma questão de vocabulário e de distinção. Não há dúvida de que cumpre desobedecer à letra de uma lei para respeitar uma lei superior: cuidando de um doente antes que indo à missa domingo, por exemplo. Nenhum escrúpulo caso uma lei se torne excepcionalmente impossível: fisicamente, por exemplo uma pessoa doente demais para ir à missa, ou moralmente, por exemplo ter de comer carne sexta-feira por uma grave razão médica. Esses casos são claros. Mas não está aí verdadeiramente o que se entende por epiqueia. Entende-se o juízo prudente de que o legislador não quis impor uma obrigação que ele teria eventualmente podido impor. Talvez seja o momento de citar o único passo no Código de Direito Canônico em que há menção indireta à epiqueia. Não se fala muito dela, porque a epiqueia pertence antes à teologia moral que ao direito canônico, mas o Cânon 2205/2, falando da imputabilidade moral dos delitos a ser estimada pelos juízes, declara que toda culpabilidade na infração de uma lei puramente eclesiástica é normalmente subtraída por temor grave, pela necessidade e por um grave inconveniente – “grave incommodum”. Segundo o uso que ficou mais ou menos estabelecido e que parece o mais conforme às definições de Sto. Tomás, a necessidade absoluta seria coisa diferente da epiqueia. É sobretudo o “grave incommodum” ou uma necessidade relativa o que é chamado de epiqueia.

Assim Sto. Afonso declara que é permitido invocar a epiqueia para trabalhar sem estrita necessidade em dia de festa, para ganhar uma soma muito importante de dinheiro. Não excede o poder do legislador proibir o trabalho servil nesse caso, mas concretamente não está claro que ele tenha querido que a lei se aplique num tal caso excepcional.

A grande dificuldade da epiqueia deve-se à necessidade de interpretar a vontade do legislador. Perante um caso no qual iria além da autoridade do legislador fazer obedecer à lei, tudo é simples. Pesar a gravidade de uma obrigação é bem mais difícil. Isso é feito considerando a finalidade da lei, a facilidade com que o legislador dispensa dela, a prática das pessoas conscienciosas, etc. É por isso que estão errados alguns moralistas que dizem que a epiqueia é uma interpretação benigna da intenção do legislador. Não. A intenção do legislador é por vezes rigorosa e severa, por boas razões, e ninguém tem o direito de lhe atribuir uma intenção que não é a dele. A epiqueia é o juízo prudente de que num caso específico a intenção do legislador é mais benigna do que as palavras pelas quais ele exprimiu sua lei geral.

Mas quem é esse legislador? Certamente pode tratar-se do chefe de estado ou do chefe da Igreja – os legisladores humanos, mas pode-se tratar de Deus mesmo, seja na lei natural da qual Ele é o autor enquanto Criador? ou ao menos da lei divina positiva? Vimos que a epiqueia existe porque uma lei é exprimida para os casos ordinários e não leva em conta as exceções. Diz-se com frequência que o legislador não pôde prever esta ou aquela circunstância especial. E, a esse título, com toda a evidência cumpre distinguir o legislador divino do legislador humano, pois Deus prevê tudo. Mas Sto. Tomás diz não somente que o legislador não pode prever, mas que ainda que ele pudesse, nem sempre conviria promulgar uma lei extremamente complicada, levando em conta explicitamente todos os casos excepcionais. E isso a priori pode muito bem se aplicar ao legislador divino também.

Não é, pois, absurdo de se perguntar se a epiqueia pode aplicar-se à lei divina, e numerosos teólogos puseram essa questão, nem sempre chegando à mesma resposta.

Começaremos pela lei natural. Que é ela? Deus governa sua criação segundo um plano eterno movendo cada criatura para seu próprio fim. Esse plano ou lei eterna é para Sto. Tomás “ratio gubernativa totius universi in mente divina existens” (ST I-II 91: 1, 2). As criaturas racionais percebem, pela luz da inteligência que Deus dá a elas, se um ato específico é conforme ou não ao fim para o qual Deus as criou. Assim a lei natural, tal como ela se impõe à nossa consciência, é constituída proximamente pela natureza humana e sua finalidade, e ultimamente pela essência divina, raiz de toda a lei natural, da qual participam as criaturas mediante o respeito à lei natural. A lei natural nos diz: faz o bem e evita o mal, e julga um ato bom ou mau conforme ele seja ou não seja conforme à natureza humana em suas relações com Deus.

Notar-se-á de imediato, pois, que de fato a lei natural não é promulgada por Deus em forma escrita ou oral, mas através da luz da razão.

Ora, um certo número de teólogos diz que a epiqueia pode aplicar-se à lei natural: Caetano, Navarro, Lessius, mesmo Sto. Afonso. Mas, lendo as explicações deles, constata-se de imediato que eles distinguem. Todos reconhecem que numerosos preceitos da lei natural – por exemplo a interdição da mentira, da impureza, da blasfêmia – nunca admitem exceção, por mais excepcionais que sejam as circunstâncias. Eles dizem também que, quanto ao preceito natural que proíbe matar, roubar, enganar, revelar os segredos, podem existir circunstâncias excepcionais que permitam esses atos – aliás, isso é certo.

Na realidade, porém, vê-se que para falar de epiqueia nesses casos, eles concebem a lei natural segundo sua expressão verbal nesta ou naquela fórmula universal (“tu não matarás”) e não tal como ela é vista pela razão. E é assim que cumpre entendê-los. Pois a vasta maioria dos autores são formais que não pode haver epiqueia para a lei natural em si mesma. Essa lei se estende a tudo e não falha jamais por sua universalidade. Somente a expressão de alguns de seus preceitos pode falhar. Mas esses preceitos não são a própria lei natural, não são divinos, e portanto não se trata de corrigir a lei natural, mas trata-se somente de uma formulação humana dela.

Suarez é o teólogo que mais aprofundou essa questão. Ele mostra que não pode haver nem dispensa nem epiqueia para a lei natural, e pela mesma razão de que essa lei não é globalmente enunciada mas se molda às circunstâncias de cada caso conforme princípios universais que nunca admitem exceção e que determinam que um ato é intrinsecamente bom ou mau. Suarez discute detalhadamente à sua maneira os casos difíceis, como o direito de esposar as suas irmãs exercido pelos filhos de Noé, mostrando que a lei natural não admite exceção, mas que é necessária prudência ao exprimir seus preceitos, para não cair no absurdo de admitir exceções a uma lei fundada diretamente na própria natureza das coisas e na lei eterna de Deus. Billuart acrescenta que a lei natural nos é promulgada por nossa razão que jamais está ausente e, portanto, que nunca se tem necessidade de prever uma vontade do legislador para além dos termos de sua lei.

No meu parecer o ponto essencial é que Deus estabelece a lei natural pelo fato mesmo de dar a cada criatura sua natureza e sua finalidade, e que essas coisas sendo absolutamente imutáveis a lei natural não pode falhar por generalidade excessiva. Concluo que se um autor fala de epiqueia com relação à lei natural, ou ele entende “a lei natural” numa acepção larga, estendendo-se a suas formulações insuficientes, ou ele entende a palavra epiqueia de maneira bem larga, para todos os casos excepcionais, mesmo se a exceção já está contida na lei. Sto. Tomás não fala de epiqueia com relação à lei natural, mas ele põe a questão utrum lex naturae mutari possit à I-II, 94, 5 e responde a ela negativamente. Ele admite mesmo assim que a lei natural tem suas conclusões próximas que se chamam por vezes de lei natural e que estas podem excepcionalmente admitir mudança.

Passemos à lei divina positiva. Essa lei nos é conhecida pela Revelação, não pela razão, pois ela não depende estritamente de nossa natureza. Ela decorre da livre vontade de Deus posterior à Criação. E ela mudou. O Antigo Testamento continha numerosos, numerosíssimos preceitos positivos – de natureza moral, cerimonial e judiciária. Essas leis em sua maioria não estão mais em vigor. Nós temos a lei do Evangelho, que contém a obrigação universal de crer em Cristo, de se fazer batizar, de se alimentar da Santa Eucaristia, de confessar todos os seus pecados mortais antes de comungar, etc. Notai que a lei divina não exige confessar-se e comungar uma vez por ano, mas exige a confissão para poder comungar.

A lei divina positiva é uma lei promulgada em forma verbal. Nisso ela difere da lei natural. Deus teria podido perfeitamente querer agir à maneira dos legisladores humanos empregando fórmulas gerais e deixando a cargo da prudência verificar se em certos casos excepcionais não haveria que contornar a letra para respeitar sua intenção. Mas a posse ad esse non valet illatio. Ele teria também podido perfeitamente promulgar suas leis positivas sem possibilidade de exceção, preferindo utilizar sua autoridade plena, para as suas leis terem aquela maior estabilidade e dignidade que advém do fato de jamais admitirem exceção. Qual dessas duas opções Ele escolheu?

Impossível de responder a essa pergunta sem fazer alusão a alguns textos bíblicos. Os israelitas tinham a lei da circuncisão, mas durante os quarenta anos no deserto eles não circuncidavam – eles não se criam obrigados a isso – mesmo os mais piedosos. Depois os Macabeus se acreditaram com direito de tomar armas no sábado para defender-se. Depois há o caso do santo rei David, que comeu os pães da proposição, citado por Nosso Senhor mesmo. Há a defesa apresentada por Nosso Senhor de seus apóstolos que colhiam trigo no sábado para comer. E há o fato de os teólogos em geral admitirem que é-se escusado da integridade da confissão caso não se possa confessar-se sem difamar-se publicamente, ou de confessar-se antes da comunhão se durante um período prolongado se estará obrigado a ficar sem a eucaristia por falta de confessor…

São tantos exemplos, nos quais a lei divina positiva parece ceder a exceções e que levaram uma porção de teólogos a falar de aplicação da epiqueia a essa lei, quantas são, porém, as provas que não colhem!

As mais graves razões tendem em sentido contrário. Para começar, há o imenso problema de saber onde e como deter-se, uma vez que sejam admitidas exceções à lei divina. Vai-se acabar contornando os Dez Mandamentos a título de que se os considera por alguma razão excepcionalmente onerosos?

Além disso, há a consideração de que, se Sto. Tomás não fala diretamente da epiqueia com respeito à lei divina, ele tem um artigo interessantíssimo sobre a questão: utrum praecepta decalogi sint dispensabilia (I-II 100 8). Ora, nesse artigo Sto. Tomás diz que as dispensas têm lugar quando ocorre algum caso particular no qual, observando a letra da lei (“verbum legis”), se iria contra a intenção do legislador. E é exatamente o mesmo motivo que autoriza a epiqueia, salvo que a epiqueia é usada quando a autoridade dispensadora não está acessível ou quando as circunstâncias são tão claras a ponto de tornar supérflua uma dispensa. Mas o motivo é idêntico. E para Sto. Tomás não pode haver dispensa quanto ao Decálogo, pois as exigências deste representam a intenção mesma do divino legislador, a qual nunca pode admitir exceção. E ele menciona expressamente o caso dos Macabeus e as palavras de Nosso Senhor. E para ele não se trata de dispensa, nem da epiqueia que é a interpretação da intenção do legislador contrária à lei. Trata-se de interpretação da lei mesma, pois certas leis divinas do Antigo Testamento são exprimidas simplesmente mas para serem entendidas segundo seu contexto, suas relações com outras leis divinas, etc.

A distinção pode parecer sutil entre uma interpretação da lei e uma interpretação de que o legislador não queria que algum caso fosse enquadrado pela lei. Mas ela é real e, do contrário, chega-se a conclusões como a de um teólogo do Ami du Clergé: “De fato a epiqueia in jure naturali et divino é de uso difícil, muito perigoso e raríssimo.” (XXV, 166)

Suarez fornece refutação detalhada da ideia de epiqueia com relação à lei divina. Ele sublinha que a interpretação da lei divina para excluir algum caso vem, seja da evidência do sentido querido por Deus, seja da necessidade de evitar conflito com uma lei superior. Há que reter isso. Pode ocorrer conflito entre duas leis. Nenhum legislador pode exigir o impossível. Obedecer à lei superior e, portanto, esquivar-se da letra da outra lei não é epiqueia, precisamente porque o legislador não podia exigir que fossem feitas duas coisas simultaneamente impossíveis. Um exemplo é dado por Nosso Senhor que, para justificar curar no sábado, observa (Jo 7, 23) que os judeus praticavam a circuncisão no sábado, visto que a lei de circuncidar no oitavo dia prevalecia sobre a lei que proíbe o trabalho servil.

Concretamente a impossibilidade, o conflito de preceitos, dão origem ao direito de não respeitar a letra de uma lei, mesmo divina, mas não há epiqueia, não há questão de o legislador divino não ter querido impor a sua lei em tal caso por causa de uma dificuldade excepcional, o que abre a porta inevitavelmente às ideias mais escandalosas. Pois, aliás, a lei divina não é senão a face moral da Revelação divina, imutável como a própria doutrina revelada.

Sto. Tomás admite duas razões pelas quais a epiqueia pode ser necessária. 1. Porque o legislador não pode prever todos os casos. 2. Porque, ainda que o legislador pudesse prever todos os casos, não conviria sempre legislar em detalhe para todas as circunstâncias excepcionais. Essa segunda razão levou alguns autores a crer que Sto. Tomás quisesse admitir a epiqueia para a lei divina. Mas não. Ele diz por hipótese contrária à realidade “ainda que o legislador pudesse prever…” É evidente que, todas as vezes que Sto. Tomás fala de epiqueia nomeadamente ou de interpretar a intenção do legislador de que o súdito não deve obedecer a uma lei X num caso Y, ele contempla um legislador humano.

Em II-II 97 3 ad 2, fazendo alusão a seu artigo sobre a epiqueia, Sto. Tomás diz “sicut supra dictum est leges humanae in aliquibus casibus deficiunt. Unde possibile est quandoque praeter legem agere…et tamen actus non erit malus.” Vê-se, assim, que para Sto. Tomás a epiqueia implica agir praeter legem, ao passo que, em se tratando da lei divina, não pode haver questão senão de bem compreender e interpretar esta lei, particularmente nos casos de conflito entre diversas obrigações. Agir segundo a lei corretamente compreendida no texto e contexto, levando em conta o estilo do legislador, a analogia com outras leis, etc., não é agir praeter legem – além da lei.

Se desejarem estudar mais profundamente a relação da epiqueia com a lei divina e os casos de exceção aparente à lei divina, vos daremos a conhecer a distinção entre um preceito positivo que obriga sempre mas não a todo instante, por exemplo a lei de rezar a Deus, e os preceitos negativos que obrigam, como se diz, semper et pro semper – por exemplo o preceito de não mentir nem odiar Deus. E se farão distinções entre a formulação dos preceitos divinos do Antigo Testamento e do Novo, mas por hoje vou poupá-los de tudo isso. Pois, havendo limitado a epiqueia à lei humana, eu gostaria agora de considerar alguns outros casos em que pode ser correto não obedecer à letra de uma lei humana.

Até onde eu sei, o súdito de uma lei em si válida pode agir contrariamente às suas estipulações nas seguintes circunstâncias:

1. Impossibilidade física.

2. Impossibilidade moral – conflito com uma lei superior – a obediência seria pecado. Caetano utiliza o termo epiqueia especificamente para esse caso, mas esse emprego é inexato.

3. Epiqueia propriamente dita – quando uma lei geral seria irrazoavelmente pesada num caso particular e excepcional.

4. Dispensa – Cânon 80 “dispensatio seu legis in casu speciali relaxatio concedi potest a Conditore legis ab eius successore vel Superiore, nec non ab illo cui iidem facultatem dispensandi concesserint.”

5. Costume – Cânon 25 “consuetudo in Ecclesia vim legis a consensu competentis superioris ecclesiastici unice obtinet.” Cânon 28 “consuetudo praeter legem”.

6. Cessação automática. Prümmer, n. 124: “Cessatio finis totalis seu causae motivae adequatae ob quam lex lata est producit cessationem legis. Sic e.g. quando episcopus praescripsit orationem pro recuperanda papae sanitate, mortuo papa, oratio cessat.” Censura de livros.

7. Permissão presumida. cf. Cânon 1176.

8. Lei não-coercitiva – Quando a lei exprime não um preceito mas um desejo ou preferência “optandum est…”

Até aqui tratamos da questão de obedecer a uma lei ou desobedecer a ela. Mas nem toda lei é coercitiva, ainda que seja peremptória. Existem leis que determinam as condições de validade de determinado ato ou que declaram inválido tal ato posto por tal pessoa ou que privam tal pessoa de tal poder que ela, de resto, possui. Chamaremo-las em pseudo-vernáculo, na sequela dos moralistas, de leis irritantes. Latim: irritantes et inhabilitantes.

As leis desse gênero também podem ser excepcionalmente molestas em certas circunstâncias especiais, eventualmente não previstas pelo legislador. Tivesse Pio XII previsto nossas circunstâncias, ele poderia talvez ter dito que, em caso de grande urgência para o bem da Igreja, um homem pode ser eleito papa por sua mamãe, seu papai, sua amiga e seus dois melhores amigos. Mas ele não disse isso. São Pio X haveria quem sabe permitido, se ele tivesse pensado nisso, que uma fraternidade ostentando seu nome pudesse em caso de necessidade estabelecer uma comissão com poder de declarar autenticamente a nulidade de matrimônios. Mas ele não fez isso.

Ora, a epiqueia nada pode nesses casos, e isso por várias razões. Cito-as conforme o Pe. Riley (p. 387 et seq), que cita por extenso as autoridades:

1. Quando a lei estabelece uma forma substancial para um ato, esse ato não pode em caso algum existir sem sua forma substancial. Preterir essa forma acarreta necessariamente a invalidade do ato. Assim como não pode haver sacramento sem a forma designada por Nosso Senhor, por mais grave que seja o apuro, a necessidade, cumpre dizer o mesmo de todo ato ao qual falta a forma substancial designada pela lei.

2. Toda lei irritante ou torna a pessoa inteiramente incapaz de realizar o ato em questão ou então torna-a incapaz de fazer um contrato salvo segundo a forma designada pela lei. Ora, no máximo a epiqueia pode escusar o indivíduo do preceito, mas ela nunca pode lhe conceder o poder de agir. Ela não pode conferir a ele o poder que ele não possui ou que a lei subtraiu dele. Uma tal concessão ou restabelecimento de poder necessita um ato positivo. É por isso, diz Suarez, que os teólogos afirmam comumente que uma pessoa que não tenha a capacidade jurídica de entrar em matrimônio (por exemplo por falta de idade) não pode em caso algum, nem mesmo para evitar algum perigo, casar-se validamente. O próprio Sto. Afonso recusa, junto com quase todos os autores, a ideia de que um matrimônio clandestino possa ser válido a título de necessidade.

3. É preciso também reter que a epiqueia age no foro interno: ou seja, que não diz respeito senão à consciência do particular. A epiqueia escusa-o do pecado em fazer o que a lei proíbe se ele julgou prudentemente que o legislador excluía o seu caso excepcionalíssimo. Mas a epiqueia não adverte os seus próximos. Não se tem uma dispensa a apresentar à polícia. Concretamente, um padre tradicionalista pode raciocinar que, por epiqueia, ele não peca ao conservar o Santíssimo Sacramento fora da Igreja paroquial e sem indulto, pois não se trata aí de validade, mas no máximo de um pecado de desobediência ou de irreverência. Em contrapartida, dispensar de um voto, admitir numa confraria, conceder uma bênção reservada sob pena de invalidade, por exemplo a da medalha de São Bento – a epiqueia não ajuda. Pois mesmo se ao pretender fazer essas coisas ele estivesse escusado do pecado, permanece todo o problema de que falta uma parte essencial para a validade do ato.

Todo o mundo sabe que, em caso de urgência, quando de incêndio, pode-se entrar na casa do vizinho para apagar o fogo ou para salvar as crianças, mas que não se pode vender a casa do vizinho, por maior que seja a necessidade – pois não se é proprietário. Em caso de guerra civil, pode-se conservar armas de defesa em casa para proteger a família contra um ataque, mesmo que a lei civil não o permita. Mas não se pode proferir sentença de morte para os delinquentes e executá-los na ausência de um ato de defesa legítimo. Nem mesmo um juiz aposentado pode abrir um tribunal para a condenação de terroristas se o governo legítimo falta às suas obrigações – seus julgamentos serão nulos.

Sob esse aspecto, é necessário talvez falar de dois outros princípios, diferentes da epiqueia, mas capazes de desempenhar uma função em alguns (não todos) desses casos. Trata-se da jurisdição de suplência, por um lado, e depois, da cessação de determinadas leis em caso de conflitos excepcionais com um direito.

Começo pelo segundo caso, que é mais simples e breve. Já vimos que uma lei pode cessar de existir por decorrência de uma mudança total nas circunstâncias que foram ocasião de promulgá-la. Uma lei pode também cessar para uma pessoa ou para um certo número de pessoas por decorrência de uma mudança radical de circunstâncias que faça com que essa lei esteja em conflito com um direito superior. Um exemplo aconteceu com referência à lei da Igreja que declara inválido o matrimônio entre um católico e uma pessoa não batizada (Cânon 1070/1). Ora, toda pessoa tem o direito natural de se casar. A Igreja não pode privar alguém de seu direito natural, mas ela pode com certeza limitar esse direito para assegurar o bem comum e é o que fez o cânon 1070. Todavia, chegou-se a uma situação na China sob o regime comunista em que católicos chineses encontravam-se em certas regiões tão pouco numerosos que o matrimônio com outra pessoa católica não lhes era de modo algum possível. Normalmente se teria pedido uma dispensa pelo bispo… mas a partir dos anos cinquenta ele estava na prisão. O contato epistolar diretamente com Roma teria podido bastar mas esse caminho estava igualmente bloqueado. Diante dessas circunstâncias,

1. Consultou-se a Santa Sé e o Santo Ofício respondeu (a 27 de janeiro de 1949) que, dadas aquelas circunstâncias, um matrimônio sem a forma canônica e com impedimento não dispensado era, sem embargo, válido para todo impedimento de direito eclesiástico do qual a Igreja tenha o hábito de dispensar. Essa resposta foi aprovada pelo Papa. Ela é, portanto, autêntica, embora particular (nunca foi publicada nas Acta Apostolicae Sedis). Ela abrange outros detalhes, concernentes às precauções [cautiones] a serem tomadas quando de um matrimônio misto, que não nos interessam aqui.

2. Quando da transmissão dessa resposta ao delegado apostólico, o Cardeal Secretário fez acrescentar a ela uma nota explicativa. Essa nota emana igualmente do Santo Ofício, mas ela tem menor autoridade, não sendo resposta direta e não sendo aprovada pelo Santo Padre. A explicação diz: “Os fiéis [nas circunstâncias expostas] ficam liberados não somente dos impedimentos de idade e de disparidade de culto mas de todos os impedimentos de direito eclesiástico bem como de toda forma canônica (ordinária e extraordinária). Mas o impedimento da ordem sagrada do presbiterado e o impedimento da afinidade em linha direta, estando consumado o matrimônio, não são suspensos mas permanecem em pleno vigor mesmo nas circunstâncias expostas.”

3. A resposta de 27 de janeiro tendo sido impressa em diversas revistas, levantou-se a questão de saber se as respostas constituíam uma disposição positiva de direito para a China, ou uma interpretação jurídica de valor geral em qualquer outro lugar e tempo em que as mesmas circunstâncias se apliquem. Perguntou-se a Roma e eis que, em 22 de dezembro de 1949, o Santo Ofício esclareceu, dentre outros elementos, que o decreto de 27 de janeiro era um documento misto; que ele era uma interpretação declarativa, válida alhures, na medida em que dizia respeito a estipulações positivas do direito que fossem impossíveis de observar em determinadas circunstâncias extraordinárias de algum território. Esse documento foi igualmente aprovado pelo Papa. Ele se aplica somente à resposta de 27 de janeiro e não à explicação que o acompanhava.

Ochoa: Leges Ecclesiasticae post Codicem Juris Canonici Editae, Vol. 2, coll. 2020, 2093)

Encontramo-nos, portanto, perante uma clara declaração romana de que a lei que tornava inválido um matrimônio com pessoa não-batizada, por exemplo, ou com outros impedimentos, sofria não epiqueia mas cessação automática nos lugares onde estivesse em conflito com o direito ao matrimônio.

É, pois, um caso em que, embora não haja epiqueia, pode acontecer de um ato inválido segundo a letra de uma lei ser, com efeito, válido por causa de uma circunstância excepcional. Mas isso se deve ao fato de que a lei positiva torna inválido um ato em si válido e de que um direito natural prevalece sobre esta lei restabelecendo o estado natural das coisas, pois mesmo a Igreja com sua plenitude de autoridade sobre os batizados não tem o direito de privar alguém de seu direito natural. Notar-se-á de imediato que esse gênero de caso será necessariamente raríssimo e que o princípio não pode ter pertinência nenhuma quando se trata de um ato que exige essencialmente a autoridade para ser válido – por exemplo, o de passar uma lei.

Aqui chegamos ao problema da jurisdição. É o poder de governar mas que se entende de maneira bem larga – o exemplo mais evidente sendo o de que é um poder de jurisdição que deve somar-se ao poder de ordem para um padre poder ouvir confissão. Tem-se necessidade de jurisdição, ou então de uma autorização estreitamente análoga a ela, para passar leis, para confessar, para dispensar de uma lei ou de um voto, para representar a Igreja em um matrimônio, para pronunciar sentença judiciária declarando por exemplo que tal indivíduo incorreu em tal pena canônica ou que tal matrimônio aparente é nulo e inexistente. E em cada caso, se fazemos um desses atos, ou mais exatamente a matéria do ato, sem ter jurisdição, ou seja o direito, a autoridade, de fazê-lo, o ato é nulo. A lei, a absolvição, o matrimônio, a sentença, não passam de aparências sem realidade. E, como vimos, a epiqueia nada pode contra isso. Não se trata de justificar em consciência algum ato normalmente ilegal; trata-se de exercer uma autoridade ausente até prova de sua presença e que deve ser publicamente constatável.

Claro que existe uma jurisdição civil (poder dos guardas de registrar boletins de ocorrência), mas não vou tomar como exemplo senão a jurisdição eclesiástica, que tem muito interesse sobretudo no estado atual da Igreja. A jurisdição eclesiástica vem, ou de um ofício (por exemplo, um pároco tem o direito de confessar e de casar em sua paróquia), ou por delegação dada pela autoridade superior para um caso X (por exemplo, a autoridade de um legado do Papa para representá-lo para negociar uma concordata). Em cada caso possui-se a prova, normalmente escrita, de que se detém a jurisdição de que se trata. Pois quem pretende legislar deve poder dar prova a seus súditos de seu direito de ligá-los.

Existe ainda uma terceira fonte de jurisdição. É a jurisdição de suplência. Nesse caso o beneficiário não tem um ofício que lhe dê a autoridade e ninguém lha delegou diretamente. Muito simplesmente a Igreja declarou conceder tal jurisdição a toda pessoa que se encontrasse em tal circunstância. O cânon 882 dá a todo padre a jurisdição para confessar um moribundo de todos os pecados e de todas as censuras. O cânon 207 concede jurisdição de suplência em favor de um confessor que não tenha notado que sua concessão temporária prescrevera.

Mas, sobretudo, há o cânon 209. Ele diz o seguinte: “em erro comum ou em dúvida positiva e provável, de direito ou de fato, a Igreja provê a jurisdição tanto para o foro externo quanto para o interno.”

Só esse cânon foi objeto de uma bela dissertação doutoral pelo Pe. Miaskiewicz em 1940 e já esse autor grave e prudente se queixa de que o cânon está em vias de tornar-se, nas mãos de uma certa escola de intérpretes liberais, eu cito, “uma lei onipresente galopando através do Código inteiro para anular as estipulações de toda legislação irritante e inabilitante.”

As leis que fazem exceção a uma lei geral são de interpretação estrita. O cânon 209 dá a jurisdição em erro comum – por exemplo, se toda uma comunidade crê que o Pe. Lisieux é validamente nomeado novo cura da paróquia, sendo que ele só está de passagem. O cânon dá a jurisdição em dúvida de fato caso se tenha sólidas razões para crer que tal jurisdição se estende a tal ato mas não se tenha certeza, caso não se tenha certeza se tal penitente incorreu em tal censura ou não; e por fim em dúvida de direito: será que a jurisdição dada para as viagens de avião vale igualmente em foguete para a Lua… Sim, o Cânon 209 e os outros cânones de suplência desempenham função importante e têm um papel particular em nossos dias. Mas a função que eles desempenham é aquela que está expressa no Código, não uma vaga suplência universal todas as vezes que isso resolveria as coisas. Pelo contrário, pelo fato mesmo de o legislador mencionar alguns casos limitados em que ele supre a uma necessidade de jurisdição que do contrário estaria faltando, o legislador anuncia seu desejo de que fora dessas exceções não sejam inventadas outras. Se eu dou procuração ao meu vizinho para ele assinar em meu lugar um ato de venda do meu carro, ele não pode valer-se dela para vender a casa também e para fazer um testamento em seu favor…

Por mais que possa parecer desejável que a jurisdição de suplência seja mais abundante em nosso tempo no qual resta pouca autoridade in actu na Igreja, não há vantagem alguma em tomar seus desejos por realidades. Em particular, cumpre, pois, rejeitar totalmente a ideia que quereria que a suplência de jurisdição tenha lugar quase que sob pedido. A jurisdição de suplência existe porque a Santa Sé concedeu-a mediante um ato que permanece em vigor e do qual podem beneficiar-se todos aqueles que se encontrem nos casos precisados. Mas não outras pessoas.

E é preciso rejeitar a ideia, um pouco mais sutil, de que por “erro comum” pode-se entender toda a vez que um ou dois leigos, ignorando a necessidade de jurisdição para determinado ato, supõem que o padre deles age normalmente anulando os votos deles – mesmo votos de castidade. A ignorância em matéria jurídica sempre foi bastante comum, sobretudo entre leigos, mas ignorância não é erro. Um juízo falso é coisa diferente da simples ausência de um saber, seja esse saber devido ou não.

É preciso admitir que Cappello admite uma concessão de jurisdição de suplência tácita pela Santa Sé em certos casos: confissões nos cismáticos orientais, bênção do oleum infirmorum por um simples padre em caso de urgência geral. Cumpre admitir que o princípio da confissão in articulo mortis mesmo a um padre sem jurisdição parece remontar, nos teólogos, antes que toda lei positiva que conceda essa jurisdição de suplência. Mas trata-se de um terreno difícil, insuficientemente explorado. O sentido normal da expressão jurisdição de suplência é uma concessão de jurisdição por parte da Igreja em virtude de uma lei geral e escrita. Poder-se-ia igualmente aplicar a expressão a uma concessão direta de autoridade por parte de Deus, sobretudo o poder de pregar, ou seja de falar em seu Nome como os profetas do Antigo Testamento e os Apóstolos e bispos do Novo. O Papa Bento XIV (privadamente) diz que Deus não concede missão sob o NT senão pela Igreja ou, caso contrário, que é preciso que toda outra missão seja confirmada por milagres manifestos: creio que foi o caso da pregação de Santa Rosa de Lima.

Posso resumir? A epiqueia permite desobedecer à letra de uma lei humana se, num caso especial, a lei seria irrazoavelmente árdua, sem proporção com sua gravidade, e em que se está suficientemente seguro de que o legislador não tinha a intenção de abranger casos tais. Ela é aplicada com grande prudência, se não se pode consultar o próprio legislador. Ela opera caso a caso e age somente no foro interno, o que significa que ela escusa do pecado, mas não dá um direito que alguém possa fazer valer publicamente. A ela se somam os princípios de interpretação da lei mesma no texto e contexto, para estabelecer o seu real sentido, o que só pode dar uma aparência de faltar à letra da lei divina positiva ou natural. Uma lei humana pode também cessar de obrigar de maneira mais geral se a sua causa final não pode mais ser esperada. Toda lei positiva pode ceder a uma lei superior ou mais urgente em caso de conflito. Certos autores, sem muita exatidão, alargam a palavra “epiqueia” para aplicar-se igualmente a esses casos – uma questão de vocabulário. Nem a epiqueia nem qualquer outro princípio que seja dão uma autoridade que falte ou tornam válido um ato naturalmente inválido segundo a letra da lei. A única exceção vem da suplência de jurisdição, que não se aplica a não ser em alguns casos bem delimitados e exprimidos na lei.

Depois de falar tanto das exceções, talvez seja oportuno nos lembrarmos de que, para além das exceções, existe sempre a regra. Ou seja, normalmente o súdito deve obedecer à lei sob pena de pecado – quero dizer à lei coercitiva, que dá uma ordem.

Em nossos dias, que são inegavelmente dias em que as exceções são abundantes, rapidamente aconteceu de ser esquecida a regra. Na guerra como na guerra. Os padres se habituam, a justo título, a fiar-se na epiqueia para dizer a Missa em edifícios privados, para fazer as cerimônias da Semana Santa fora da igreja paroquial, para dizer duas ou três Missas no domingo, e um certo número dentre eles acaba se habituando em encontrar a epiqueia sempre ao alcance para que possam se esquivar de tudo quanto é lei, por mais débil ou mesmo inexistente que seja o pretexto. Nomeia-se Dom Lefebvre no Cânon da Missa. Diz-se a Missa não importa a que horas. Prescinde-se de acólito para dizer a Missa num aposento. Lêem-se ou circulam-se livros postos no Índex – ou então revelações privadas interditas. Observa-se o ponto de evolução litúrgica que se julga preferível em si. Reassegura-se uma piedosa dama que provou a sopa por erro pouco antes da Missa de que é claro que ela pode comungar. Permite-se a todos os acólitos tocar nos vasos sagrados. Não se cobre a cabeça para usar o barrete. Omite-se facilmente o Breviário para poder fazer apostolado não-obrigatório. Não se renovam com frequência as santas espécies no tabernáculo – tabernáculo que já tem grande necessidade de epiqueia, ele próprio.

Depois, perdem-se em questões onde o direito divino toca a lei eclesiástica – autorizam-se matrimônios mistos sem obter as garantias. Admite-se um não-católico ou não-batizado como padrinho para não o ofender. Vai-se um pouco mais longe. Dispensa-se de um voto, quiçá de um voto de castidade – onde a validade está em jogo. Não se inquietam com impedimentos ao matrimônio. Autoriza-se a recasar-se uma pessoa já casada mas cujo primeiro matrimônio teria sido em tempos normais – está-se persuadido disso – anulável. Daqui a pouco pode-se aplicar a não raros padres da tradição aquilo que diz São Paulo acerca dos pagãos: “não tendo mais a lei, eles se fazem de lei para si mesmos”.

Há os que quereriam até mesmo mesclar a ideia de epiqueia a três questões bem graves que atualmente dividem os católicos que querem guardar a fé nesta crise: o estatuto dos “papas” do Vaticano II, a validade dos novos ritos sacramentais, e os padres e bispos que dispensam os sacramentos sem terem nem sombra de missão, nem sombra de um título vindo de Cristo pela Igreja para o fazerem.

Não temos tempo de considerar tudo isso, mas eu gostaria de fazer uma breve menção a esse último ponto que se concretiza nas sagrações tradicionalistas nas diferentes linhagens. Por que essas sagrações e os padres que delas provêm suscitaram dificuldades? Será mesmo que uma lei puramente humana limita a liberdade natural dos bispos de reproduzir-se impondo-lhes um dever eclesiástico de esperar o mandato do Papa? Se não houvesse nada além disso, é uma evidência que, em nossas circunstâncias de grave necessidade, a epiqueia resolveria o problema: nenhum legislador teria querido deixar os fiéis sem clero, sem sacramentos; contornar-se-ia.

Mas ninguém que tenha um Q.I. que ultrapasse dois dígitos jamais objetou uma lei puramente humana. O problema é a lei divina. Os sacramentos pertencem a Cristo e unicamente Cristo dá, através da Sua Igreja, o direito de administrá-los. E esse direito não é idêntico ao poder de ordem, nem inseparável dele. O problema está em separar voluntariamente a matéria da sucessão apostólica (o poder episcopal) de sua forma essencial que é a jurisdição ou missão de governar a Igreja enquanto Sucessor dos Apóstolos por causa da qual ele existe. Face a esta dificuldade, pode-se conceber que alguém invente uma prova que pretenda encontrar uma fonte de jurisdição de suplência para essas sagrações e para o clero que delas depende. Poder-se-ia conceber que alguém argumentasse que a necessidade de missão para tornar-se ministro dos sacramentos ensinada pelo Concílio de Trento deve ser compreendida por esta ou aquela razão de maneira contrária ao sentido natural das palavras. Eu não estaria de acordo, mas haveria sobre o que discutir. Quando, porém, ouve-se alguém buscar justificar “as sagrações” por um apelo à epiqueia… não resta senão assinalar-lhe que ele nem sequer começou a compreender a dificuldade à qual ele quereria responder, que ele próprio nem começou a compreender o que faz a epiqueia, e que tudo leva a crer que ele carece de competência teológica para tomar parte seriamente no debate que nossa situação extraordinária deve suscitar.

Para concluir esta conferência, eu gostaria de voltar à aplicação prática da epiqueia que consiste em formar um juízo prudente de que o caso especial não cai sob a intenção do legislador porque a aplicação estrita da lei seria nociva ou onerosa demais, dura demais. 

Ora, é perfeitamente possível que, num caso específico, o respeito estrito da lei seja duro, excepcionalmente duro, e que no entanto o legislador queira absolutamente que a lei seja respeitada. Consulta-se frequentemente a Santa Sé para perguntar se em certos casos excepcionais é lícito agir preterindo a letra de alguma lei – e muito frequentemente a resposta é negative ou mesmo abusus corrigendus est. Para avaliar, é preciso conhecer a gravidade da lei. Mencionei sinais disso: gravidade do pecado contra ela, motivo, frequência e facilidade de dispensa, punição pela infração, etc. Importa também habituar-se ao espírito do legislador, sobretudo quando é a Igreja.

Para dominar a arte de reconhecer prudentemente quando é que a epiqueia pode com segurança ser aplicada, nada melhor que estudar os moralistas e casuístas aprovados pela Igreja, as respostas oficiais das Congregações Romanas e o modo como os santos agiram quando se encontraram em situações extraordinárias.

Trad. por Felipe Coelho.

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