BENTO XVI CONTRA O RELATIVISMO?

Padre Peter R. Scott, F.S.S.X.
2008

Existem dois tipos diferentes de laicidade?
E dois tipos diferentes de pluralismo?

1. Existem dois tipos diferentes de laicidade?

A ideia de que possa haver dois tipos diferentes de laicidade é uma ideia promovida pelo próprio Papa [sic] Bento XVI. Foi, de fato, no avião a caminho dos EUA, em 15 de abril de 2008, que ele apresentou a consolidada prática da laicidade pelos EUA como “um conceito positivo” e um grande aprimoramento em relação à prática europeia de união entre Igreja e Estado, a ser contrastado com “uma nova e completamente diferente laicidade”, ou laicismo (ou ainda, secularismo), que solapa os direitos da pessoa humana, e em particular a liberdade religiosa.

O Papa teve isto a dizer sobre a experiência americana:

“O que eu considero fascinante nos Estados Unidos é que começaram com um conceito positivo de laicidade, porque este povo novo era composto por comunidades e pessoas que tinham fugido das Igrejas de Estado e queriam ter um Estado laico, secular, que abrisse as portas a todas as confissões, a todas as formas de prática religiosa. Nasceu assim um Estado propositadamente laico, mas laico precisamente por amor à religião na sua autenticidade, que só pode ser vivida livremente. E assim encontramos este conjunto de um Estado propositada e decididamente laico, mas por vontade religiosa, para dar autenticidade à religião. …Isto parece-me um modelo fundamental e positivo, a ser considerado também na Europa… Agora também nos Estados Unidos existe o ataque de uma nova laicidade, totalmente diversa, e portanto novos problemas.”

Para ver se uma tal distinção é ou não é justificável, precisamos ter uma ideia precisa do que a laicidade realmente é. Isso é dado claramente na encíclica de 1925 do Papa Pio XI instituindo a Festa de Cristo Rei como “remédio excelente para a peste que no presente infesta a sociedade” (Quas Primas). Esta “peste”, que ele também chama de “espírito maligno”, é precisamente a laicidade. “Referimo-nos à peste da laicidade, com seus erros e atividades ímpias.” O Papa então prossegue explicando em que consiste ela:

“Ela há muito se incuba sob a superfície. O império de Cristo sobre todas as nações foi rejeitado. O direito que a Igreja tem do próprio Cristo, de ensinar o gênero humano, de fazer leis, de governar os povos em tudo o que diz respeito à sua salvação eterna, esse direito foi negado. Então, gradualmente a religião de Cristo foi assemelhada às religiões falsas, e foi rebaixada ignominiosamente ao mesmo patamar destas. Foi então posta sob o poder do Estado e tolerada em maior ou menor grau segundo o arbítrio de príncipes e governantes. …Não faltaram algumas nações que pensaram poder passar sem Deus e fizeram sua religião consistir na impiedade e no desprezo de Deus.”

Segue-se deste texto que o elemento essencial em toda laicidade é a recusa do Estado em reconhecer os direitos de Cristo e Sua Igreja de ensinar e governar em questões morais e religiosas. Também indica que há graus na aplicação desse mesmo erro. Um primeiro grau é a separação de Igreja e Estado, a recusa do Estado em reconhecer Cristo e a autoridade da Igreja em tudo o que concerne à salvação eterna. Um segundo grau é a igualdade de todas as religiões perante o Estado (= Liberdade Religiosa tal como promovida pelo Vaticano II e pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA). Um terceiro grau é o regime radicalmente anti-religioso do comunismo ateu, ou do liberalismo moderno radical que reduz a religião a uma experiência psicológica interior e, consequentemente, nega toda a moralidade, todos os deveres perante Deus Onipotente e, assim, todos os direitos.

Contudo, qualquer que seja o grau de laicidade, o erro é o mesmo, e cai sob a mesma condenação do Papa Pio XI:

“A rebelião dos indivíduos e das nações contra a autoridade de Cristo produziu efeitos deploráveis. Nós os lamentamos em nossa encíclica Ubi Arcano. Nós voltamos a lamentá-los hoje: os germes da discórdia semeados por toda a parte; aquelas inimizades e rivalidades amargas entre os povos, que ainda estorvam tanto a causa da paz; aquela cobiça insaciável…um egoísmo cego e sem peias… a sociedade, numa palavra, sacudida até em seus fundamentos e a caminho da ruína.”

Embora o Papa Bento XVI corretamente deplore e tema o ataque da nova laicidade, o terceiro grau de laicidade, é, não obstante, um grande erro considerar o primeiro e o segundo graus como sendo de algum modo positivos. O princípio de remover Deus da vida pública é o mesmo, e é o princípio mesmo que, afinal, produz o terceiro grau de laicidade. Não existem duas laicidades. Existe uma só laicidade, que é má e destrutiva, que é anti-Deus porque oposta ao ensinamento católico, e ela procede avançando em diferentes graus. Mesmo se a Igreja é mais livre com os dois primeiros graus de laicidade do que com o terceiro, eles manifestamente não podem ser tratados como coisa boa. Há somente uma resposta, e é o “remédio para este grande mal” que São Pio X deu em sua encíclica inaugural, definindo tão bem o objetivo de seu Pontificado: “Restaurar todas as coisas em Cristo” (§4). Estas são as palavras dele:

“Quem pode ignorar que a sociedade humana na hora presente, mais do que em qualquer outra época passada, padece de uma enfermidade terrível e profundamente arraigada que, agravando-se dia após dia e corrompendo-a até à medula, leva-a à ruína? Vós compreendeis, Veneráveis Irmãos, qual seja esta doença: a apostasia e o abandono de Deus”.

2. Existem dois tipos diferentes de pluralismo?

Pluralismo é a aceitação dos ensinamentos, doutrinas e opiniões dos outros, ainda que possam estar em contradição com os nossos. É uma característica da sociedade moderna ser pluralista, no sentido de que, adotando o princípio da liberdade de expressão e religião, ela permite a expressão de todas as crenças, convicções, filosofias e ideias num mesmo patamar, desde que não prejudiquem o bem comum. O pluralismo entrou na Igreja Católica como consequência da adoção do princípio do Diálogo entre as diferentes religiões. É a expressão prática da Liberdade Religiosa tal como ensinada pela Dignitatis Humanae e do Ecumenismo tal como ensinado pela Unitatis Redintegratio (documentos do Vaticano II). Esse novo tipo de diálogo é especificamente exigido que seja pluralista, isto é, aceitador de todas as opiniões e ideias. Na realidade, já foi declarado em 1968 que não é considerado permitido refutar os erros ou converter seu interlocutor em tal diálogo (“Instrução para o Diálogo” do Secretariado para os Não-Crentes, citada em: Romano Amerio, Iota Unum, p. 352 [cap. XVI, § 154 – N.d.T.]).

O perigo de subjetivismo e relativismo não deixa de ser percebido por ninguém. Se as ideias de todos têm direitos de expressão iguais, então devem ser igualmente verdadeiras. Isso significa que a verdade está puramente no olho do observador, e não fundada na realidade objetiva. Isso é subjetivismo. A outra consequência é que todo o mundo pode ter suas próprias convicções, e considerar que são verdadeiras para si, não importa o que pensem os outros. A verdade é, então, por natureza, relativa ao indivíduo, e não a mesma para diferentes pessoas. Isso é relativismo. Isso, por sua vez, leva ao agnosticismo, a crença de que não podemos realmente conhecer se Deus existe fora de nós mesmos. Tudo o que podemos conhecer é o nosso sentimento interior sobre ele. Essas ideias são todas características centrais do modernismo, tal como condenado por São Pio X em sua Encíclica Pascendi, de 1907.

Em sua encíclica de 1998 sobre a Fé e a Razão, o Papa João Paulo II admitiu esse perigo, ao falar da filosofia moderna, que abandona “a investigação do ser” (§5). Ele explica a consequência:

“Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum ceticismo generalizado.”

Esperar-se-ia que o Papa concluísse que temos o dever de evitar todo o tipo de diálogo com falsas filosofias e falsas religiões. Nada disso. A conclusão dele foi fazer uma distinção entre dois tipos de pluralismo, um que é legítimo, supostamente evitando o relativismo, e um que não é legítimo, que ele chamou de “indiferenciado”, no sentido de que tratava todas as opiniões como iguais:

“Uma legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indiferenciado, fundado no pressuposto de que todas as posições são igualmente válidas: trata-se de um dos sintomas mais difundidos, no contexto atual, da falta de confiança na verdade …partindo do pressuposto de que a verdade se manifesta em doutrinas diversas, ainda que sejam contraditórias entre si.”

Em 14 de dezembro de 2007, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou uma Nota Doutrinal Sobre Alguns Aspectos da Evangelização, tentando reconciliar as novidades da liberdade religiosa, do ecumenismo e do diálogo com a missão da Igreja de ensinar todas as nações. Cita ela o texto supramencionado do Papa João Paulo II, aplicando-o a todas as formas de diálogo, e alegando encontrar aí a chave para a resolução da contradição entre o diálogo e a missão de ensinar. Diz-se que a contradição existe somente quando o pluralismo é “indiferenciado”, isto é, quando ele admite que todas as religiões são igualmente verdadeiras. Tirando isso, o princípio do pluralismo na sociedade e o pluralismo em contatos com outras religiões deve ainda ser preservado. Noutras palavras, há uma forma mitigada de pluralismo, e há um diálogo real que não é subjetivista, e ambos podem ser, consequentemente, chamados de católicos.

Na verdade, porém, a diferença entre esses dois tipos de pluralismo está somente na mente do católico, não na realidade. Na forma mitigada ou “legítima” de pluralismo e diálogo, o católico não admite pessoalmente, subjetivamente, que todas as posições são igualmente válidas. Todavia, ele deve agir como se admitisse isso, para haver verdadeiro diálogo e pluralismo real. Na forma “indiferenciada”, de fato pessoalmente se crê em conformidade com as próprias palavras e ações exteriores, a saber, que todas as religiões são iguais. Há isto em favor da forma “indiferenciada” de diálogo e pluralismo: que ela não é uma mentira, e que, portanto, nela um homem age exteriormente como ele crê interiormente. O homem que entra em diálogo e permite iguais expressão e direitos a opiniões que ele crê serem errôneas (como é essencial ao diálogo) está dissimulando o que ele realmente pensa. Isso é jeito de o diálogo se tornar “católico”? Dificilmente.

Se se me perdoa a extensão desta passagem, eu gostaria de citar um trecho da conclusão de Romano Amerio sobre se o diálogo pode ou não pode ser católico, em Iota Unum (p. 356 [cap. XVI, § 156 – N.d.T.]):

Podemos concluir dizendo que o novo tipo de diálogo (i.e. não para a conversão do interlocutor) não é católico.

Em primeiro lugar, porque tem função puramente heurística (= cada pessoa no diálogo buscando a verdade por sua própria tentativa e erro), como se a Igreja em diálogo não possuísse a verdade e estivesse à procura dela…

Em segundo lugar, porque não reconhece a autoridade superior da verdade revelada…

Em terceiro lugar, porque imagina que as partes do diálogo estão num mesmo patamar, mesmo que seja uma igualdade meramente metodológica, como se não fosse pecado renunciar às vantagens que advêm da verdade divina, ainda que como estratagema dialético.

Em quarto lugar, porque postula que todas as posições filosóficas humanas são interminavelmente discutíveis, como se não houvesse pontos de contradição fundamentais que são suficientes para parar um diálogo e deixar espaço somente para a refutação.

Em quinto lugar, porque supõe que o diálogo é sempre frutuoso e que “ninguém tem de sacrificar nada”, como se o diálogo nunca pudesse ser corruptor e levar ao desenraizamento da verdade e à implantação do erro.

Essas objeções aplicam-se a todo o diálogo, seja mitigado seja indiferenciado, quer a pessoa acredite pessoalmente na igualdade de opiniões exprimida por sua discussão, quer não. Você pode se perguntar por que uma pessoa quereria entrar em diálogo no qual ela dissimula o fato de que não acredita que todas as religiões e todas as opiniões são igualmente válidas (diálogo mal chamado de “legítimo”). Há um princípio teológico muito simples, e está contido nos textos do Vaticano II. Ei-lo: “A verdade pode se impor à mente do homem somente por força de sua própria verdade” (Dignitatis Humanae, §1). É a palavra “somente” que é o problema nesta afirmação, pois nega que a verdade religiosa é conhecida por revelação divina, ensinada a nós sob a autoridade da Igreja. É a Igreja que nos obriga a crer a verdade revelada, e não a própria verdade. A Fé é aderir aos ensinamentos da Igreja sob a autoridade de Deus, que não pode enganar nem se enganar. A Fé, consequentemente, exclui o diálogo em todas as coisas concernentes à Fé, que são divinamente reveladas; isso a não ser que se tenha uma noção modernista e subjetivista da fé. O próprio conceito de um diálogo “legítimo”, mitigado, é consequentemente parte do Modernismo.

Trad. por Felipe Coelho; de: “Are there two different kinds of Secularism? Are there two different kinds of Pluralism?”, The Angelus, Q&A [Perguntas e Respostas] da edição de agosto de 2008.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Blog no WordPress.com.

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: