INDIFERENTES À MISSA NOVA?

Padre Álvaro Calderón, F.S.S.P.X.
2008

«Quantas maldades cometeu o inimigo no Santuário! E os que Te aborreciam, gloriaram-se no meio da Tua Solenidade.» (Sal. 73, 4)

Muitos problemas seriam resolvidos se nós fôssemos ao menos indiferentes à Missa Nova. De Roma não nos pedem outra coisa.

De tantos católicos perplexos pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, muitos acharam que o mal do novo rito vinha unicamente da maneira de celebrá-lo e peregrinam de paróquia em paróquia à procura de padres, sempre escassos, que celebrem com piedade e não dêem a comunhão na mão. Outros, melhor informados, sabem que a diferença não está nos modos do sacerdote mas no próprio rito e pedem a Missa tradicional argumentando, com algo de hipocrisia, o enriquecimento que implica a pluralidade de ritos: o novo é bom, mas o antigo também: o melhor então é ter os dois!

Apesar de em Roma não serem bobos, deixaram correr essa desculpa para os grupos tradicionalistas que se ampararam na comissão Ecclesia Dei. Ainda mais: aos Padres tradicionalistas da diocese de Campos, Brasil, foi permitido ficar com o rito tradicional mesmo dizendo que a Missa Nova é “menos boa”.

Mas em Roma incomoda a nossa Fraternidade, porque não só não diz que [a Missa Nova] é boa, mas a combate como perversa, inquietando a perplexidade que, depois de quarenta anos de Concílio, tantos católicos não deixaram de sofrer. Se ao menos guardássemos indiferença – que os outros rezem como queiram! –, da parte de Roma nos deixariam em paz. A pergunta é, então: Podemos ser indiferentes à Missa Nova?

Na véspera de sua Paixão, tendo chegado a hora de oferecer ao Seu Pai o sacrifício redentor, Nosso Senhor fez um pacto com a Sua Igreja: Haec quotiescumque feceritis, in mei memoriam facietis; como quem diz: “Lembrai-vos de que morri por vossos pecados, que Eu me lembrarei de vós na presença do Pai”. E, como Deus que é, deixou-nos o imenso mistério da Missa, pela qual o Seu Sacrifício permanece sempre vivo, sempre novo, permitindo-nos assistir a ele como ladrões arrependidos: Memento, Domino, famulorum famularumque tuarum.

A memória viva da Paixão que se renova pela dupla consagração graças ao poder do Sacerdócio, a união misteriosa com a Vítima divina que se realiza pela comunhão, é a única via que tem o duro coração do homem para voltar ao amor de Deus, porque nada chama tanto ao amor como o saber-se muito amado, e a Paixão de Nosso Senhor foi a máxima demonstração de amor: ninguém ama mais do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Por isso a obra da Redenção, que Cristo levou a bom termo na Cruz, não se faz efetiva para nós a não ser graças ao Sacrifício da Missa.

Ora, assim como não pode haver indiferença diante da Cruz de Cristo, assim também não a pode haver diante do rito que renova o Seu Sacrifício.“Quem não está comigo está contra mim”, disse Nosso Senhor, e esta lei impôs-se pela Paixão. Posso passar reto por um vendedor se penso que o que ele oferece não me é necessário; mas não posso passar à margem de um homem ferido e fazer o mesmo, porque ele precisa de mim.

Não é tão evidente o pecado de indiferença diante do Bom Jesus dos Milagres, pois poderíamos dizer com São Pedro: “Afastai-vos de mim, Senhor, que sou um homem pecador”, mas é uma horrível traição dizer: “Não conheço este homem” diante de Jesus Crucificado. É a Cruz de Nosso Senhor que nos urge a tomar partido. Não me é lícito deixar de lado Aquele que morre pelos meus pecados!

O novo rito, criado sob o pontificado de Paulo VI para substituir o bimilenar rito romano da Santa Missa, suprimiu o escândalo da Cruz: evacuatum est scandalum crucis! A intenção imediata que guiou a reforma da missa foi o ecumenismo: criar um rito suficientemente ambíguo para ser aceito pelos protestantes mais “próximos” ao catolicismo; mas a intenção última foi suprimir a espiritualidade “dolorista” da Cruz, porque a sua negatividade supostamente repugna ao homem moderno. É assombroso, mas se tiramos o escândalo da Cruz de nossa Religião, cessa a perseguição…

Já São Paulo apontava esse mistério aos Gálatas, tentados pela judaização, crendo necessário circuncidar-se: “Se eu ainda prego a circuncisão, por que sou ainda perseguido? Acabou-se já o escândalo da Cruz!” Como mostra o livrinho sobre O Problema da Reforma Litúrgica da Fraternidade São Pio X, a teologia subjacente à missa de Paulo VI escamoteia a Paixão de Nosso Senhor para ficar solenemente com as alegrias da Ressurreição: supera o Mistério da Cruz com a nova estratégia do “Mistério Pascal”. Repetiu-se o mesmo que quando Jesus anunciou pela primeira vez a Sua Paixão: “Pedro, tomando-o a parte, começou a admoestá-Lo dizendo: Queira Deus, Senhor, que isto não aconteça” (Mt. 16, 22).

Vendo com olhos humanos, com Cristo Ressuscitado a Igreja pode entrar no mercado deste mundo, que morre por todos os lados, com um produto de luxo: a esperança da ressurreição. Mas, com o Crucificado, todos os sermões têm de começar como o primeiro de São Pedro, repreendendo perigosamente os poderosos deste mundo: “Vós o matastes” (Atos 2, 23). Mas qual foi a reação de Nosso Senhor diante da mudança de estratégia publicitária que lhe propunha o seu primeiro Vigário? “Afasta-te de mim, Satanás, pois és para mim pedra de escândalo, porque não sentes as coisas de Deus, mas as dos homens”.

Em todos estes anos de resistência às transformações litúrgicas, de entre as fileiras dos perplexos saíram muitos grandes homens – bem ou mal intencionados, só Deus o sabe – que, apoiando-se na verdadeira teologia, defenderam que a reforma não é tão má como nós a pintamos. Até chegamos a ver publicada uma piedosa explicação da Missa Nova em que se conta a história dos ritos como se nada tivesse acontecido entre Paulo VI e São Gregório Magno. Para que, então, fazer tanto barulho?!

O novo rito, por outro lado, tirou todas as expressões propiciatórias, considerando que os fiéis, depois de pedir o perdão inicial, já ficam santificados, podendo fazer sua a oração do fariseu: “Ó Deus, dou-vos graças porque não sou como os outros homens!” Quem olhar para o novo rito com medo de encontrar nele algo mau pode facilmente negar essa intenção, porque a liturgia não prega a sua doutrina em linguagem científica, mas sim encarnada em gestos e imagens; mas vá aos livros dos teólogos que a fizeram e poderá comprovar com quanta advertência eles dirigiram todas essas mudanças!

Como a Paixão e morte de Cristo perdem sentido se o pecado não exige reparação, esconderam-nas sob o conceito de Páscoa ou “passagem”, quer dizer, a morte não seria mais que a passagem à Ressurreição. A consequência litúrgica é que a Missa não é mais um rito sacrificial que renova o Calvário, mas um duplo banquete que antecipa a felicidade dos ressuscitados.

Às vezes temos dificuldade em aceitar que haja sacerdotes que não reconheçam a enorme diferença que há entre o antigo rito sacrificial e o novo banquete. O rito tradicional tem uma parte preparatória ou “ante-Missa”, que termina com o Credo, e tem três partes integrais: o oferecimento ou ofertório, a imolação pela dupla consagração e a comunhão com a Vítima. O novo rito, pelo contrário, desenvolve algo completamente diferente: consta de duas partes paralelas, a liturgia ou “mesa” da Palavra, e a mesa da Eucaristia, das quais a primeira não é a menos importante. Já isso é uma novidade absoluta; como pode ser que uma simples preparação substitua em importância o que era propriamente a Missa? E as três partes da liturgia da Eucaristia já não são as de um sacrifício, mas sim as de uma refeição: apresentação dos alimentos, ação de graças e comida propriamente dita. O que há de semelhante ao Santo Sacrifício da Missa no novo rito? Somente os materiais da demolição. As “palavras da consagração” já não são consideradas tais, mas sim como a recordação dos gestos e palavras de Cristo, por cuja memória se faria objetivamente presente o Kyrios, o Senhor da glória com os seus mistérios.

Aos que foram formados na doutrina clássica, parece-lhes muito difícil entender esta nova linguagem – sabemos por experiência – e custa-lhes crer que se pense o rito de maneira tão diferente. É assim que entre nós se discutiu o fato de que tirar as palavras “Mysterium fidei” da fórmula da consagração ou o “tom narrativo” invalidaria ou não a transubstanciação, mas para o novo rito essa discussão não tem sentido, pois para ele a presença de Cristo se faz efetiva por outro mecanismo: o poder evocatório do memorial. Difícil de acreditar? Pois, para evidência disso: em Roma se pôde considerar válida uma anáfora (texto da consagração), a de Addai e Mari, sem as palavras da consagração. Evidentemente, sob o nome de Missa nova ou antiga, entende-se  coisas muito, mas muito diversas.

A nova teologia, que não é mais do que um novo disfarce do camaleônico modernismo condenado por São Pio X, toma como instrumento o pensamento moderno, anti-realista e anti-metafísico, para reinterpretar a Revelação ao gosto do “homem de hoje”, criatura mitológica inventada pelos meios de comunicação. É assim que pretenderam substituir a profunda teologia sacramental, levada tão alto por Santo Tomás de Aquino e canonizada em muitos pontos pelo Magistério da Igreja, por um confuso simbolismo dos pensadores modernos, que esvazia de realidade todos os mistérios e os deixa flutuando numa esfera imaginária de puros conceitos. Para ela não há somente sete sinais sacramentais, mas tudo é “símbolo”: Cristo é sacramento, a Igreja é sacramento, a Escritura, a realidade, tudo o que percebemos transforma-se em puro sinal de um mistério indefinível.

A realidade da transubstanciação, da união hipostática, do caráter sacerdotal, da graça santificante, tudo se desvanece diante dessa maneira de pensar. E esse é o pensamento que move a Missa Nova. Cristo está presente na assembleia dos fiéis, na Sagrada Escritura, no ministro que preside, no Pão Eucarístico; mas todas essas presenças se confundem numa mesma presença que acaba sendo tão confusa e indefinível, que se desvanece: Se Cristo está no meio dos fiéis, no livro, no Padre, na Hóstia, se está em todo lugar, acaba por não estar em lugar nenhum! E os fiéis não encontram mais a presença de Cristo nas igrejas do que o encontrarão na rua.

A alma da Missa Nova é uma alma perversa. Os católicos que se esforçam em ver nela só os materiais de demolição, tentando recompor nas suas cabeças a figura do rito tradicional, podem não percebê-la tal como é e atenuar os danos que produz a sua presença. Não se trata, certamente, de uma substância viva, pelo que, é necessário dar-lhe vida por uma certa compreensão do que os ritos significam. Mas as formas sensíveis têm a sua força e o homem não pode resistir-lhes durante muito tempo sem perigo de se deixar contaminar. Do mesmo modo que não se pode frequentar as discotecas sem uma erosão da honestidade, assim também, não se pode frequentar um rito modernista sem o desgaste da fé. Isso é assim, ao menos para o comum dos mortais.

E estamos vendo apenas um lado da moeda, porque é preciso ter em conta que os ritos tradicionais são “sacramentais”, ou seja, são formas sensíveis com uma alma santa, que transmitem graças atuais quando são recebidas com fé. Qualquer fiel católico pode se unir à Missa, mesmo à distância; mas se a Igreja mandou, sob pena de pecado, que cada domingo se assista ao Santo Sacrifício, é justamente pela eficácia santificadora dos seus ritos, que predispõem a alma para que se una mais eficazmente ao Santo Sacrifício.

Por se ter suprimido o rito tradicional, a fé dos católicos esmorece; por se ter instalado um rito modernista, propaga-se eficazmente – um gesto educa mais do que um silogismo – um espírito carismático profundamente contrário ao autêntico catolicismo.

Não podemos ser indiferentes à Missa Nova, não podemos permitir que se suprima a Cruz de Cristo como se nunca ninguém tivesse dado morte a Nosso Senhor.

Diz Ratzinger que o “homem de hoje” não é capaz de entender o sacrifício, e que é portanto necessário falar-lhe com outra linguagem. Isso é completamente falso. Um simples filme sobre a Paixão atrai as pessoas que já não vão à igreja, porque o único motivo que pode comover-nos é o Sangue de Nosso Senhor.

Quando pensamos em tantos cristãos a festejar diante do Calvário, parece que ouvimos a queixa de Nosso Senhor: “Cheguei a ser um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos da minha Mãe; riem-se de mim os que se sentam às portas, e cantam-me versos os que bebem vinho” (Sl. 68). Sim, não sabem o que estão fazendo, como também não o sabia muito bem o povo manipulado na Sexta-feira Santa. Mas não é muito diferente o tratamento que sofreu Jesus na sua Via dolorosa do que o que sofre com a comunhão na mão atual.

Católicos, assistir ao drama da Paixão sem reação é pecado! Não se pode assistir calado a uma Missa que pretende ignorar o Crucificado, que canta alegremente diante da Sua dor, que põe as mãos não consagradas em tudo o que há de mais sagrado: sacerdote, altar, missal, sacrário e até o divino Corpo: tudo é manuseado por todos.

Quantas maldades cometeu o inimigo nos nossos altares! Mas nós não deixaremos de lutar até que cesse a abominação desoladora nos lugares santos.

Trascrição de: Guarde a Fé! (Boletim do Priorado Padre Anchieta, da FSSPX, em São Paulo), n.º 43, de abril de 2009, pp. 7-13.

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