SOBRE A OBEDIÊNCIA CEGA E SEM EXAME

Refutação à Proposição XII
dos Sete teólogos de Veneza

Cardeal São Roberto Belarmino, S.J.
1606

PROPOSIÇÃO XII. O cristão não deve prestar obediência à ordem que lhe for feita (ainda que feita pelo Sumo Pontífice) se primeiro não houver examinado se a ordem, na medida em que o exige a matéria, é conveniente e legítima e obrigatória; e aquele que sem exame algum da ordem a executa, obedecendo às cegas, comete pecado.

RESPOSTA. Essa proposição se poderia esperar de qualquer um, menos de pessoas religiosas; mas, deixando de lado a sua origem, que a nós pouco importa, digo que essa proposição é diretamente contrária aos Santos Padres; que não se encontra em nenhum bom autor; que enerva a disciplina de toda congregação bem ordenada, seja espiritual ou temporal; e é em tudo conforme à doutrina dos luteranos e outros hereges de nosso tempo.

Não chego a dizer que seja pecado por vezes examinar o preceito do superior, mas digo que não é pecado não o examinar, bem como que a obediência é mais perfeita e mais agrada a Deus quando se obedece simplesmente, sem examinar a ordem, não cuidando de saber por que o superior ordena, bastando-lhe saber que ordena; sempre, porém, excetuando quando a ordem contenha pecado manifesto, pois aí não há ocasião de examinar, devendo-se obedecer antes a Deus do que aos homens; e, se me fosse dito que quando é duvidoso se a ordem contém ou não pecado dever-se-ia então examiná-la para não se pôr em perigo de pecar, eu responderei com São Bernardo que quando não há nela pecado manifesto, não se há de examiná-la, nem há aí perigo de pecar, porque na dúvida o súdito deve remeter-se ao superior e tem de pressupor que este ordene bem; e eis as palavras dele, no livro De precepto, et dispensatione [Sobre o preceito e a dispensa]:

“Dir-me-eis, talvez, que os homens podem enganar-se sobre a vontade de Deus nas coisas duvidosas, e ordenar errado. Que vos importa? Não tendes culpa nenhuma nesse caso.” [Sed homines (inquisfacile falli in Dei voluntate de rebus dubiis percipienda, et praecipienda fallere possunt; sed enim quid hoc refert tua, qui conscius non es?]

E, pouco adiante:

“Aquele, pois, que está no lugar de Deus perante nós, devemos ouvi-lo como se ouvíssemos a Deus mesmo, em tudo aquilo que não é abertamente contra Deus.” [Ipsum proinde, quem pro Deo habemus, tamquam Deum in his, quae aperte non sunt contra Deum, audire debemus.]

Mas passemos aos testemunhos dos Santos Padres.

São Basílio, no livro das Constituições Monásticas, ao cap. 22:

“Assim como as ovelhas obedecem ao seu pastor, e marcham no caminho pelo qual ele as conduz, assim também os cultores da piedade para com Deus devem obedecer ao seu superior, sem examinar de maneira alguma os motivos das ordens que lhes são dadas, se elas estão livres de pecado” [Quemadmodum pastori suae oves obtemperant, et viam quamcumque ille vult, ingrediuntur: sic qui ex Deo pietatis cultores sunt, moderatoribus suis obsequi debent, nihil omnino ipsorum jussa curiosius perscrutantes, quando libera sunt a peccato].

Notem-se estas palavras: Nihil omnino perscrutantes, de nenhum modo examinando o preceito do superior. Não importa que São Basílio não fale do Papa, mas dos superiores imediatos, pois os religiosos são mais obrigados a obedecer ao Papa, que é o superior principal, do que aos outros inferiores; o mesmo Santo, no mesmo lugar, prova por aquele passo do Evangelho: Luc.10, Qui vos audit, me audit [Quem vos ouve, a Mim ouve], que essa doutrina de não examinar o preceito do superior está fundada na Escritura divina, e que aquilo que disse então Cristo aos discípulos deve-se entender ser dito a todos os prelados que viriam depois deles na Santa Igreja.

São João Crisóstomo, na Homilia 16 sobre o Gênesis, considera quanto dano fez ao mundo aquela serpente que ensinou a examinar os preceitos dos superiores, dizendo a Eva: Cur praecepit vobis Deus? [Por que vos preceituou Deus? (cf. Gên. 3,1)] E pouco importa que fosse este um preceito divino, pois Deus mesmo ordenou que se obedeça aos Seus ministros, como a Ele: Qui vos audit me audit, Luc. 10 [Quem vos escuta, a Mim escuta], como pouco antes disse São Basílio.

São Jerônimo, em Epístola que escreve a Rústico, diz assim:

“Teme o superior como Senhor, ama-o como Pai, crê salutar seja lá o que ele te ordenar; não julgues as sentenças dos maiores, pois teu ofício é obedecer e cumprir aquilo que te é dito.” [Praepositum timeas ut Dominum, diligas ut parentem, credas salutare quidquid ille praeceperit: nec de majorum sententia judices, cujus officii est obedire et implere, quae jussa sunt].

São Gregório Magno, escrevendo sobre o primeiro livro dos Reis, diz assim:

“A verdadeira obediência não tem a pretensão de penetrar a intenção dos superiores, nem de fazer um discernimento entre os preceitos que lhe são impostos; pois aquele que abandona a sua inteira conduta a quem está encarregado de dirigi-la, põe o seu contentamento somente em fazer bem o que lhe é prescrito: quem sabe obedecer perfeitamente proíbe a si mesmo todo juízo, pois considera como o único bem a obediência às ordens.” [Vera obedientia nec praepositorum intentionem discutit, nec praecepta discernit; quia qui omne vitae suae judicium majori subdit, in hoc solo gaudet, si quod sibi praecipitur, operatur: nescit enim judicare quisquis perfecte didicerit obedire, quia hoc totum bonum putat, si praeceptis obediat.]

Dos monges do Egito instituídos e instruídos por Santo Antão e São Macário e semelhantes Santos Padres, refere João Cassiano, no 4.º livro De institutis renunciantium [Sobre as instituições dos renunciadores, i.e. os monges], cap. 10, que este era o uso deles:

“E é assim que eles se apressavam em fazer, sem examinar, tudo o que lhes fosse ordenado por seu superior, como se fosse Deus mesmo quem lhes impusesse o dever” [Sic universa complere, quaecumque fuerint a praeposito suo praecepta, tamquam si a Deo sint caelitus edita sine ulla discussione festinant].

E, no cap. 41, refere o mesmo autor as palavras de um santíssimo Abade deste modo:

“Verdadeiramente, antes de tudo cultiva isto: faz-te de tolo neste mundo, segundo a sentença do Apóstolo, para seres sábio, nada examina nem julga no que te for imperado.” [Verum et hoc prae omnibus excole, ut stultum te, secundum Apostoli sententiam, facias in hoc mundo, ut sis sapiens,nihil scilicet discernens nihil dijudicans ex his quae tibi fuerint imperata].

São Bento, na sua Regra, a qual segundo o testemunho de São Gregório no 2.º diálogo, cap. 36, é repleta de discernimento e de sabedoria, descreve no quinto capítulo quais são os verdadeiros obedientes, dizendo:

“Tão logo algo é ordenado pelo superior, é como se fora ordenado por Deus, e não suportam demora alguma em fazê-lo.” [Mox ut imperatum a majore fuerit, ac si divinitus imperetur: moram pati nesciunt in faciendo].

Por onde, não dê tempo de examinar o que se quer, mas imediatamente e sem mais delongas se obedeça, como se Deus mesmo houvesse ordenado.

São João Clímaco, aquele que à perfeita obediência chamou cega, em seu livro intitulado Escada, no quarto degrau, escreve:

“Quando te ocorrer o pensamento de julgar ou condenar teu superior, afasta-o com a mesma presteza com que afastas pensamentos impuros” [Cum tibi cogitatio suggesserit, ut prelatum, aut dijudices aut damnes, ab ea non secus quam a fornicatione discede].

E, pouco adiante:

“Diz assim à serpente: ‘Ó maligno sedutor, não tenho o direito de julgar meu superior, mas ele tem autoridade de me julgar; não sou eu quem o julga, é ele quem julga a mim’.” [Loquere ad hujusmodi serpentem, o seductor maligno, non ego Ducem meum judicandum suscepi, sed ille me; non ego illius, sed ille mei Dux est].

São Cesário de Arles, na Homilia oitava daquelas que escreve para os monges do mosteiro lirinense, diz:

“O que quer que te seja ordenado, aceita como se fora ordem do Céu, saída da boca de Deus; nada repreende nem discute, jamais presume murmurar, mas julga tudo justo, tudo santo, e útil, o que ao superior aprouver ordenar.” [Quicquid a senioribus fuerit imperatum accipe tamquam de coelo sicut de ore Dei prolatum, nihil reprehendas, nihil discutias, in nullo penitus murmurare praesumas totum justum, totum sanctum, et utile judica quidquid a prelato videris imperari].

São Bernardo, que escreve depois de todos esses, no livro De praecepto, et dispensatione, diz assim:

“É sinal de um coração imperfeito e de uma vontade enferma examinar minuciosamente as injunções de nossos superiores, hesitar a cada ordem recebida, exigir saber a razão de tudo, e suspeitar o pior de toda ordem” [Imperfecti cordis, et infirmae prorsus voluntatis iudicium est, statuta seniorum studiosius discutere, haesitare ad singula, quae injunguntur, exigere de quibuscumque; rationem, et male suspicari de praecepto].

E no Sermão, ou melhor dizendo, Tratado De vita solitaria ad fratres de monte Dei [Sobre a vida solitária, aos irmãos do Monte Deus], diz:

“A obediência perfeita, sobretudo no incipiente, é indiscreta, ou seja, não discerne nem o que, nem por que se ordena” [Perfecta obedientia maxime in incipiente, est indiscreta, hoc est, non discernit quid, vel quare praecipiatur].

Certamente que, se à obediência pôde-se chamar indiscreta, pode-se ainda chamá-la cega, ainda que isso não agrade aos sete doutores.

Santo Tomás, Doutor Angélico, I-II q. 13 art. 3 ad tertium, tendo feito contra si mesmo uma objeção tomada da Regra de São Bento, onde está dito que é preciso obedecer inclusive nas coisas impossíveis, responde:

“Quanto ao terceiro, deve-se dizer que isso se afirma porque o súdito não deve definir com seu juízo se uma coisa é possível, mas em tudo deve ater-se ao juízo do superior.” [Ad tertium dicendum, quod hoc ideo dicitur, quia an aliquid sit possibile, subditus non debet suo judicio definire, sed in unoquoque judicio superioris stare].

O que tem para examinar quem não tem de examinar nem mesmo se aquilo que se ordena é possível ou impossível?

São BoaventuraIn speculo disciplinae [Espelho da disciplina], primeira parte, cap. 4, escreve:

“Chamo de excelente o grau de obediência em que a ordem dada é recebida com o mesmo sentimento que a ditou; em que a intenção de quem executa a ordem está inteiramente em sintonia com a vontade que comanda: que não julguem, pois, as razões dos superiores jamais, aqueles cujo ofício é obedecer e realizar aquilo que lhes é ordenado.” [Illum optimum dixerim obedientiae gradum, cum eo animo opus injunctum recipitur, quo et praecipitur: cum ex voluntate jubentis pendet intentio exequentis, numquam de majorum sententia judicent quorum officii est obedire et implere quae jussa sunt.]

O mesmo Santo Doutor, In opusculo octo collationum [Opúsculo das oito conferências] cap. 3, declara as condições da perfeita obediência enumeradas como diz ele por Santo Agostinho, e são estas as suas palavras:

“Para que a obediência seja aceita por Deus, deve ser imediata sem dilação, devota sem desdenhação, voluntária sem contradição, simples sem discussão.” [Ut obedientia sit acceptabilis Deo, debet esse prompta sine dilatione, devota sine dedignatione, voluntaria sine contradictione, simplex sine discussione.]

Todos esses onze doutores Santos teriam errado, e haveria que corrigi-los, se os sete doutores de Veneza dizem a verdade. Mas, que eles não tenham errado, disso dá testemunho Deus onipotente, que com milagres estupendos confirmou a obediência simples e pronta sem examinar a ordem do superior.

Escreve Severo Sulpício, no primeiro diálogo dos milagres dos eremitas do Oriente, que um simples monge ao qual se mandou levar todo dia água, a cinco quilômetros de distância, para regar um bastão seco fincado na terra seca e estéril pelo Abade, a fim de que florescesse, fez isso prontamente por obediência, e Deus fez o bastão seco dar flor e se tornar árvore, chamada por esse fato de a árvore da obediência. 

O mesmo autor, no mesmo lugar, relata um outro que, mandado pelo superior entrar numa fornalha ardente, sem examinar a ordem, a qual simplesmente não fora dada para ser executada mas como prova de obediência, movido – como se deve crer piamente – por particular instinto divino, pulou na fornalha e ali ficou o quanto foi preciso, e saiu sem dano às vestes não mais que à sua pessoa, tendo cedido as chamas do fogo ao ardor da perfeita obediência; e isso que escreve Sulpício do fogo, São Gregório escreve da água no 2.º Diálogo, cap. 7, onde diz que São Mauro por obediência caminhou sobre as águas, como se andasse sobre a terra.

Muitos outros milagres contam, tanto Sulpício em seus diálogos, quanto Cassiano nos seus livros De institutis renunciantium, que omito por brevidade.

Peço agora aos sete doutores que me deem um autor santo, ou ao menos católico, que afirme aquela sua proposição. Considerei todas as palavras que gastam para provar essa proposição décima-segunda, e não encontrei que aleguem em favor dela outro além do Cardeal Toleto, dizendo:

“Essa proposição é doutrina do Cardeal Toleto, o qual, em seu livro Instructio Sacerdotum [Instrução aos sacerdotes], tomo 5, cap. 4, assim escreve, falando da residência episcopal: Quando o Papa encarrega um bispo de algum negócio que exige a ausência deste por um tempo, este pode se ausentar; mas não basta obedecer, há que ser uma obediência devida; pois, na ausência de causa razoável, um preceito não devemos obedecer. [Cum enim Papa imponit aliquod negotium episcopo, quod requirit ad tempus absentiam, abesse potest: sed allende, quodnon sufficit obedientia tantum, sed debita, quia cum absque caussa rationabili aliquid praecipitur, non debemus obedire].”

Aí estão todos os autores que eles citam em prol de sua sentença.

Ao que, nós respondemos: primeiro, que o Cardeal Toleto não trata da obediência em geral, nem põe in terminis a proposição deles de que o súdito seja obrigado a examinar o mandamento do superior e peque se não o fizer. E nós, pelo contrário, alegamos muitos santos que louvam a obediência daqueles que não examinam o mandamento do superior.

Segundo, respondemos que o Cardeal Toleto fala de um caso em que ocorrem duas ordens que parecem contrárias, pois o bispo tem um mandamento do sacro concílio, e por consequência do Sumo Pontífice que aprovou o concílio, de residir na sua diocese; por onde, quando o Papa manda-o sair para longe da diocese, pode merecidamente duvidar de qual dos dois mandamentos deve obedecer, máxime que a obediência de ficar fora da diocese carrega em si a dispensa para não residir, e as dispensas não valem in foro conscientiae quando não há causa legítima; e assim entendo as palavras do Cardeal Toleto, Cum absque caussa rationabili aliquid praecipitur non debemus obedire, ou seja, que não devemos obedecer em detrimento de outro mandamento mais importante; pois, quando não há tal detrimento, deve-se simplesmente obedecer ainda que o mandamento seja sem causa razoável, dado que não contenha pecado expresso.

Assim, dado que os sete doutores não têm autor onde apoiar-se, e nós temo-los aos montes, permaneceremos em nossa sentença, sobretudo porque, como se disse no princípio, esse ensinamento de examinar os preceitos não é outro que o de tornar os súditos juízes de seus superiores e abrir a porta à rebelião e à contumácia.

Certamente que, se no exército devessem os soldados examinar as ordens do General, máxime quando são mandados a invadir alguma cidade, poucas vitórias seriam contadas; e por isso os antigos romanos eram tão rígidos cobradores da simples obediência nos soldados, que não admitiam desculpa nem interpretação alguma. Daí que Torquato puniu com a pena capital o próprio filho, porque sem obediência havia combatido, embora tivesse vencido. 

Nos governos políticos, se toda a vez que o Príncipe emite um edito de que não se faça isto ou aquilo, fosse lícito, ou melhor dizendo, conforme os sete doutores, fosse obrigatório sob pena de pecado não admitir essas ordens sem examiná-las diligentemente, e em seguida não as executar se não lhes parecessem convenientes, vão seria o poder público, nem se poderiam governar as cidades ou as províncias. 

Igualmente, quando o Bispo prega ao povo, e manda aquilo que devem crer, e obrar, para salvar-se, se os ouvintes fossem obrigados a examinar esses preceitos do Prelado, que confusão não nasceria na Igreja? Aquela, por certo, que hoje vemos nas congregações dos luteranos, onde cada qual se faz juiz, segundo a sua consciência, das decisões acerca da fé ou costumes dadas pelos ministros, nem se podem lamentar dessa insolência os seus líderes, pois foram eles que os ensinaram a fazer-se censores e juízes de seus superiores, dando a essa desobediência o nome de liberdade de consciência.

Mas vejamos agora como provam os sete doutores a sua proposição:

Primeiramente dizem que não se há de obedecer ao Papa quando ele ordena coisas de pecado; e por isso é necessário examinar a ordem se porventura contenha pecado.

A isso já se respondeu com São Bernardo, que se o pecado é manifesto, não se deve obedecer nem é preciso exame nas coisas manifestas; se o pecado é duvidoso, deve-se obedecer remetendo-se ao juízo do superior: nem por isso põe-se o súdito em perigo de pecar, pois Deus lhe ordena que obedeça ao superior, e não que examine ou julgue as ações do superior, de modo que, se naquela obediência houver pecado, a culpa será do superior, e o mérito, do súdito.

Em segundo lugar dizem que pode ser que a ordem do Papa traga consigo escândalo ou perturbação da república, ou destruição da Igreja, e por isso importa examiná-la.

Responde-se que se o escândalo, e outros males, são manifestos, é sem exame que já não se deve obedecer, pois estes são pecados; mas, se houver dúvida, ao Papa incumbe examiná-la, não ao súdito, pois a prudência é virtude necessária aos superiores; a obediência, aos súditos.

Em terceiro lugar dizem que o Papa Alexandre III, no cap. Si quando de rescript, quer que, quando ele ordena alguma coisa, ou ela seja obedecida pelos súditos, ou se apresentem causas razoáveis pelas quais não possam obedecê-la. Logo, o Papa quer que se examine o seu mandamento.

Respondo que o Papa Alexandre fala de um caso particular, isto é, o de quando o próprio superior duvida se é bom fazer aquilo que ele ordena, pois talvez não esteja bem informado, e nesse caso é necessário examinar o mandamento, pois o superior ordena que se o examine: e isso se colhe das palavras subsequentes, em que o Papa dá a razão dizendo: pois Nós pacientemente suportaremos não ser obedecidos, quando conheçamos ter sido falsamente informados.

Em quarto lugar dizem que foram louvados, nos Atos dos Apóstolos, cap. 17, os de Bereia que, escutando as palavras de São Paulo com muita avidez, escrutavam todo o dia as divinas Escrituras para ver se era assim como São Paulo pregava: não seria menos louvável escrutar as Escrituras e outras doutrinas católicas, para ver se se deve fazer assim como o Papa ordena.

Respondo que esse é o argumento próprio dos luteranos, como se pode ver em nosso livro III, De verbo Dei, cap. 10, e daí não somente deduzem eles que se possa duvidar dos preceitos particulares do Papa em matéria de censura, mas também das decisões de fide e da doutrina das boas obras em geral, nas quais, porém, os sete doutores dizem que o Papa não pode errar, sem embargo espalham sementes de doutrina que atingem os fundamentos da fé. E, por isso, rogo com todo o afeto à sereníssima república que abra bem os olhos e veja aonde querem levá-la esses seus doutores. 

Esse lugar da Escritura não tem nada a ver com a controvérsia presente, pois São Paulo não ordenava nada aos de Bereia, mas anunciava-lhes a vinda do Salvador predita pelos profetas: para que efeito, então, se alega agora essa Escritura, pela qual os luteranos se esforçam de provar que não se deve crer nem no Papa, nem nos Concílios, se antes não se examina a decisão do Papa e dos Concílios com a Sagrada Escritura? 

Nem, tampouco, é boa consequência que, se são louvados os de Bereia porque examinavam a pregação de São Paulo com as Escrituras, devam-se louvar aqueles que examinam as ordens do Papa com as Escrituras e outras doutrinas católicas: pois os de Bereia não eram ainda cristãos, nem tinham certeza de que São Paulo tivesse o Espírito Santo e não pudesse errar, e por isso faziam bem em estudar as Escrituras dos profetas que São Paulo citava, pois por esse meio Deus dispunha-os a receber a fé. Mas os cristãos, que já têm a luz da fé e têm a certeza de que o Papa e os Concílios legítimos são guiados pelo Espírito Santo, não merecem louvor, mas censura, se duvidando das suas decisões quiserem esclarecer-se com o estudo da Escritura santa; e, semelhantemente, aquele que sabe que o Papa é verdadeiro Vigário de Cristo, e que detém o lugar d’Ele na terra, não merece louvor algum em examinar as suas ordens, mas todavia o merece em obedecer sem tal exame quando não vê pecado manifesto, sendo esta a perfeita obediência, como acima foi demonstrado.

Em quinto lugar alegam a repreensão feita por São Paulo a São Pedro, da qual se fala em Gál. 2; e que São Pedro deu aos fiéis as razões do que fizera, quando eles murmuravam sobre ele por ter pregado a Cornélio, que era gentio, Act. 11; e que o mesmo São Pedro disse: Prontos para dar as razões, a todo aquele que as pedir, da fé que temos em nós [Parati reddere rationem unicuique poscenti de ea, quae est in nobis fide (cf. I Pdr. 15)].

Respondo que esses lugares não vêm ao caso, pois a repreensão de São Paulo não foi porque São Pedro tivesse ordenado mal, mas porque retirando-se da conversação dos gentios, para não escandalizar os judeus recém-convertidos à fé, vinha a escandalizar os gentios recém-convertidos à fé, e, quando São Pedro prestou contas aos fiéis por ter pregado a Cornélio, não o fez por obrigação, mas por bondade sua, e para consolar os fiéis com a novidade da Revelação que havia acontecido e dos milagres ocorridos na conversão de Cornélio: São Gregório, no livro 9, epist. 39, tratando desse fato, diz que São Pedro teria podido repreender os fiéis e adverti-los que não tivessem ardis de julgar o seu superior, mas que lhe apeteceu ensinar a mansidão, com o seu exemplo, a todo o mundo; aquelas outras palavras, Parati semper reddere rationem, são alegadas totalmente fora de propósito, pois não falava aí São Pedro de dar as razões das ordens, mas da fé e esperança que temos como cristãos, sendo bem instruídos para defender a nossa santa Religião católica, das calúnias dos infiéis.

Em sexto lugar dizem: que o Papa pode errar nos juízos particulares, e por isso devem os fiéis se precaver acerca de se nos preceitos haja erro.

Respondo que não se nega que se possa considerar se nos preceitos particulares haja erro, por má informação ou outra causa semelhante; mas dizemos não existir essa obrigação, sendo melhor obedecer simplesmente.

Em sétimo lugar dizem ser regra geral dos doutores que quem se expõe a perigo de pecar, peca, dizendo a Escritura: Qui amat periculum peribit in illo [Quem ama o perigo, nele perece], Ecles. 3; logo, todos estão obrigados a examinar se no preceito do superior há pecado; senão, se expõem a perigo de pecar e, consequentemente, pecam.

Já se respondeu, com São Bernardo, que não se expõe a perigo algum quem obedece ao superior simplesmente, pois ver se há pecado toca ao superior, não ao súdito, e por isso, o pecado cometido incientemente, não há culpa nele, embora a haja no superior.

E quando replicam que a ignorância não escusa se não for invencível, e invencível não se pode dizer quando a pessoa não faz aquilo que sabe e pode para encontrar a verdade, e por isso devem todos examinar o preceito, para poder assegurar-se de ter feito quanto sabem e podem para encontrar a verdade.

Respondo que o súdito não é obrigado a procurar nem a saber se no preceito do superior encontra-se algum pecado, como muitas vezes já foi dito; assim, deve crer, como dizem os santos supracitados, ser tudo justo e bom quanto lhe ordena o superior, e não é ignorância culpável quando a pessoa não procura e não sabe aquilo que ela não está obrigada a procurar e saber.

E quando respondem de novo que se deve pressupor que o superior sempre ordene bem, quanto a não fazer mau conceito dele; mas não se deve pressupor que sempre ordene bem, quanto a executar a sua ordem.

Respondo que nessa matéria não tem lugar essa distinção entre pressupor o bem, para ter bom conceito de alguém, e não para executar a sua ordem; pois devendo o perfeito obediente com grande sinceridade crer que a ordem do superior é justa e boa, deve crê-lo tanto para ter o superior em bom conceito, quanto para executar a sua ordem; aquela distinção tem lugar quando duvido se alguém quer me ferir, pois aí então devo, não fazer mau juízo dele, mas todavia resguardar-me como se fosse certo que ele procura me ferir.

Em oitavo lugar alegam que o Papa é homem que pode pecar e falhar, e que por vezes os sucessores revogam os preceitos de seus predecessores, e nas decretais dizem estar preparados a revogar as suas sentenças, se for mostrado que teriam cometido injustiça, e citam para tanto o cap. Ad Apostolicae, de sent. et re jud. in 6.

Respondo que tudo isso é verdadeiro, mas não prova que o súdito seja obrigado a examinar o preceito de seu superior: que era a proposição que se tinha a provar.

Finalmente dizem que, embora seja doutrina comum que nas coisas dúbias o súdito deve remeter-se ao juízo do superior, não obstante, isso se deve entender de quando o súdito tiver examinado bem o preceito e não tiver conseguido se esclarecer sobre a verdade; e não quando não tiver querido pensar nisso nem tiver querido examinar o preceito, como estava obrigado a fazer.

Respondo que o súdito não é obrigado a pôr-se dúvidas, mas pode, como já se disse, sem nenhum exame obedecer; mas, quando lhe advém a dúvida de que talvez no preceito se contenha pecado, e ele crê que investigando saberá esclarecer-se sobre a verdade, nesse caso cremos também nós que ele deva procurar esclarecer-se; mas, se ele não crê poder se esclarecer, ele pode e deve depor a dúvida e obedecer ao seu superior.

E esta é a doutrina comum de Santo Agostinho e de Santo Tomás e dos sagrados cânones, referidos por Silvestro, verbo, Obedientia, num. 2.

Trad. por Felipe Coelho, de: Risposta al trattato dei sette teologi di Venezia sopra l’interdetto della Santità di nostro Signore Papa Paolo V, in: Roberti Cardinali Bellarmini Opera Omnia, Tomi Quarti pars II, Ad Controversias Additamenta, et opuscula varia polemica, Nápoles, 1856, pp. 453-473, (o trecho traduzido se encontra nas págs. 464-467.) Cf. tb. Responsio Cardinalis Bellarmini ad tractatum septem theologorum Venetorum, 1607).

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