O bispo Tissier de Mallerais e o axioma “A Igreja Supre”
John S. Daly
2006
“A Igreja supre” – em latim, “Ecclesia supplet” – é um conhecido axioma do Direito Canônico, consagrado no Cânon 209 do Código de 1917. Não é incomum o clero tradicional invocar esse axioma para justificar alguns aspectos de seu ministério. É um segredo de polichinelo que o axioma é por vezes mal empregado – já em 1940 um canonista reclamava que esse cânon era erroneamente considerado como “galopando pelo Código anulando os efeitos de toda legislação invalidante”. Todavia, no pensamento do bispo Tissier de Mallerais, da Fraternidade de São Pio X, o axioma parece ter adquirido uma condição única, digna de análise mais detida.
O Padre
Foi como seminarista que o jovem Monsieur Tissier primeiro encontrou o axioma. Como todos os padres estudantes da FSSPX, ele aprendeu em Ecône que a jurisdição é necessária, além das ordens válidas, para um padre dar absolvição válida, mas que essa jurisdição é suprida pela Igreja em casos de necessidade. Mais tarde ele viu esse princípio ser ampliado para cobrir não somente absolvições, mas muitos outros atos que normalmente exigem faculdades especiais para terem validade, incluindo, por exemplo, a imposição de escapulários. E, como outros padres da Fraternidade, ele recebeu do Arcebispo Dom Lefebvre em 1980 uma série de poderes especiais, incluindo o poder de conferir confirmação, comutar votos, conceder indulgências e dispensar de impedimentos ao matrimônio. Esses poderes, normalmente exigindo indulto papal para terem validade, também foram justificados pelo selo “Ecclesia supplet” no sumário oficial de poderes extraordinários da Fraternidade (Ordonnances concernant les Pouvoirs et Facultés, 1.º de maio de 1980).
O Bispo
Em 1988, o axioma adquiriu especial significância para o Pe. Tissier, juntamente com Richard Williamson, Alfonso de Galaretta e Bernard Fellay, pois eles foram selecionados para ser consagrados bispos.
“Tendes o mandato apostólico?” é a pergunta feita no início do rito de consagração episcopal. Noutras palavras, a Santa Sé designou esse candidato para tornar-se Bispo?
Antes de consagrar seus quatro homens seletos, o Arcebispo Dom Lefebvre respeitou o texto do Pontifical, indagando: “Habetis mandatum apostolicum?” Se o “assistente sênior” tivesse contado a verdade franca, a resposta teria sido algo como: “Não. Não temos mandato da Sé Apostólica para consagrar esses homens. Na realidade, o homem que reconhecemos como papa proibiu-nos de fazer qualquer coisa desse tipo. Se o fizermos à revelia dele, ele pronunciará sentença declaratória de excomunhão contra nós e, ao fazê-lo, estará aplicando a clara lei da Igreja. Todavia, nós julgamos que não temos de prestar nenhuma atenção a ele e devemos consagrá-los mesmo assim, pois uma grave necessidade existe e a recusa dele em dar-nos o mandato apostólico é prejudicial à Igreja.”
Porém, a resposta proferida foi, de fato, bem diferente: um triunfantemente mendaz “Nós o temos!” E, ante à instrução de ler o mandato, a réplica dada não foi o texto de qualquer mandato (real ou imaginário) de qualquer papa (real ou imaginário) mas, ao invés disso, um vago argumento teológico alegando que a ordem da Igreja de transmitir a fé para todos os homens continha uma ordem implícita de consagrar os candidatos, haja vista que “as autoridades da Igreja Romana estão animadas pelo ‘espírito do modernismo’” (alegação que não costuma ser encontrada em textos litúrgicos católicos aprovados, embora coisa semelhante se afirme no Book of Common Prayer [Livro da Oração Comum] anglicano). Alguns anos depois, uma longa tentativa de justificar essas consagrações foi publicada no periódico italiano Si Si No No, que resumia o argumento como segue: “Se, num caso como a consagração desses quatro bispos, o governante terreno recusa-se a autorizar um ato exigido pela necessidade pública e geral e totalmente de acordo com a Igreja de Sempre, é lícito sustentar que a Igreja supre jurisdição.”
“A Igreja supre” tinha agora suprido a Bernard Tissier de Mallerais um bocado. O poder de confessar, de testemunhar matrimônios, de confirmar, de dispensar, de absolver de censuras reservadas, de conceder indulgências, de impor, de abençoar… e agora um “mandato apostólico” para operar como bispo. Porém, mais estava por vir, peculiar a ele próprio.
O Juiz
Em 1991, poucos meses antes de sua morte, o Arcebispo Dom Lefebvre consultou o Superior da Fraternidade Pe. Schmidberger sobre estabelecer no coração da FSSPX uma “comissão canônica” para lidar com casos matrimoniais difíceis. Além de turbinar o até então caótico processo pelo qual a Fraternidade autoriza a si mesma a dispensar de impedimentos e absolver de censuras, a nova comissão passaria a ter o poder de emitir decretos de nulidade, permitindo que os católicos tradicionais que apelassem a ela se recasassem após seu aparente matrimônio anterior. Novamente, o poder em questão pertence propriamente à Santa Sé e àqueles a quem ela delegou, e ninguém mais poderia exercer validamente um tal poder. Claro que João Paulo II não deu nenhuma autoridade dessas à comissão da FSSPX, pois ele já possuía suas próprias usinas de anulação, cujo alto índice de rotatividade mostrava não terem necessidade alguma de auxílio ou concorrência. Mas o Arcebispo Dom Lefebvre declarou que “autoridades de suplência” deviam ser estabelecidas (carta ao Pe. Schmidberger, de 15 de janeiro de 1991) e ninguém menos que o bispo Bernard Tissier de Mallerais foi nomeado presidente da comissão.
Nessa função, ele por vezes foi, compreensivelmente, requisitado a explicar a fonte da autoridade pela qual ele pretendia exercer todos os poderes delegados pelo Papa aos Bispos diocesanos, e outros que nem mesmo os Ordinários recebem. Ele não fez esforço algum de negar a natureza da substituição que estava ocorrendo: “É verdade que as nossas sentenças…substituem as sentenças da Rota Romana, que julga em nome do papa.” Porém, “a Igreja dá a elas jurisdição por suplência, caso a caso… Nossa jurisdição nesses casos…é jurisdição suprida.” (Conferência proferida pelo bispo Bernard Tissier de Mallerais em Ecône, 24 de agosto de 1998)
O Docente Infalível
Não se deveria pensar que o bispo Tissier de Mallerais não ponderou seriamente essas questões. Dos quatro bispos selecionados pelo Arcebispo Dom Lefebvre, ele é certamente o teólogo mais competente. (O finado Bill Morgan dizia que o Arcebispo Dom Lefebvre havia sagrado um filósofo, um místico, um teólogo e um tesoureiro: Tissier era o teólogo, e o tesoureiro, previsivelmente, é o atual capitão do navio.) A posição de Tissier como cabeça da Comissão Canônica da FSSPX tornou-o, em certo sentido, o mais ricamente agraciado beneficiário de jurisdição suprida no mundo, e era inevitável que um teólogo inteligente e sincero quisesse justificar, para si próprio e para os outros, a situação em que ele se viu. A visão dele de que a Igreja dava jurisdição na medida em que esta fosse exigida por qualquer necessidade séria já estava bem consolidada, mas o que exatamente determinava o fato de este ou aquele poder ser suprido para este ou aquele padre ou bispo da Fraternidade? Numa conferência pública em Paris, a 10 de março de 1991 (duas semanas antes da morte do Arcebispo Dom Lefebvre), ele informou aos fiéis reunidos que eram eles mesmos, quando requisitavam à Fraternidade fornecer a eles atos que normalmente exigem autoridade, que causavam a suplência da jurisdição. E assim ele foi capaz de efetuar o salto para jurisdição que, embora suprida, era permanente, e alcançava até mesmo a esfera doutrinal, alegando que os bispos da Fraternidade constituíam uma verdadeira hierarquia com poder não somente de administrar os sacramentos, mas também de ensinar com autoridade (Juridiction de Suppléance et Sens Hiérarchique, alocução de Mons. Tissier de Mallerais). Dançando conforme a música do bispo Tissier, o Pe. Arnaud Sélégny logo julgou possível alegar que a indefectibilidade da Igreja docente era agora preservada exclusivamente pelos bispos consagrados pelo Arcebispo Dom Lefebvre em 1988, que, destarte, constituíam aquilo que nunca pode faltar à Igreja: “um magistério que prega infalivelmente” (Le Sel de la Terre, n.º 1).
O Problema com o Bispo Lazo
É sempre tentador carregar novos fardos no lombo de uma mula forte. “Ecclesia supplet” tendo se mostrado tão útil e confiável em tantos casos, talvez não seja surpreendente ver que, na mente do bispo Tissier de Mallerais, a elasticidade do axioma ainda estava bem longe de ser esticada em demasia. Dez anos depois de sua consagração, o bispo Tissier recorreria a ele, como a um velho amigo, para a solução de um problema de consciência.
Em 1998, o Pe. Pierre-Marie dos dominicanos tradicionais de Avrillé enviou ao bispo Tissier de Mallerais cópia da obra do finado Dr. Rama Coomaraswamy questionando a validade do novo (1968) rito de consagração de bispos. O bispo Tissier respondeu: “Tendo-o lido rapidamente, concluo que há dúvida sobre a validade da consagração episcopal conferida conforme o rito de Paulo VI. O ‘spiritum principalem’ da forma introduzida por Paulo VI não é suficientemente claro em si mesmo e os ritos acessórios não determinam a significação num sentido católico.” (A carta era confidencial mas foi, desde então, tornada pública.)
Até aqui tudo bem. Mas a conclusão suscitava uma dificuldade evidente, porque a FSSPX estava, na ocasião, usando um bispo filipino, Salvador Lazo (recentemente reconvertido à tradição e depois falecido), para conferir confirmações, e o bispo Lazo fora consagrado no duvidoso rito novo. O bispo Tissier abordou esse problema sem rodeios: “Sobre Mons. Lazo”, acrescentou ele ao Pe. Pierre-Marie, “seria difícil de explicar essas coisas a ele; a única solução é não requisitar que ele confirme nem ordene… Mons. Lazo já fez um montão de confirmações para nós. Claro que isso é válido dado que a Igreja supre (Cânon 209), dado que um simples padre pode confirmar validamente com jurisdição.” (Destaque acrescentado.)
Explicitemos com todas as letras o raciocínio subjacente a essa alegação. O ministro ordinário da confirmação é unicamente o bispo. Um simples padre não consegue dar confirmação validamente, a não ser por indulto papal. O bispo Tissier reconhece que a consagração do bispo Lazo é de validade duvidosa, caso em que, ele pode bem não ser, na realidade, mais do que simples padre. Daí que ele discretamente mande que o bispo Lazo não deva mais ser convidado a confirmar para a FSSPX. Contudo, ele adverte para o problema de que Lazo já fez “um montão de confirmações” que, se ele não é bispo, pareceriam à primeira vista ser inválidas. Mas aí ele reconfortantemente invoca o seu axioma favorito: “Ecclesia supplet”. A Igreja pode dar a um simples padre o poder de confirmar. No caso, os fiéis estavam em erro comum, acreditando que Lazo fosse bispo válido, e em erro comum a Igreja supre a jurisdição que, sem isso, estaria faltando. Dest’arte, Lazo recebeu o poder de confirmar validamente ainda que não fosse bispo. O suspiro de alívio é quase audível. Talvez o bispo Lazo pudesse ter continuado confirmando, no fim das contas, especialmente dado que, de 1980 a 1988, todos os superiores de distrito e diretores de seminário da FSSPX haviam sido autorizados pelo Arcebispo Dom Lefebvre (jurisdição suprida outra vez) a confirmar na ausência de um bispo, e nem duvidosamente consagrados eles eram. Finalmente, em 2005,(*) sob forte pressão de outras instâncias da FSSPX, o Pe. Pierre-Marie anunciou que o novo rito de consagração era válido afinal de contas, e pode ser que o bispo Tissier agora compartilhe dessa verdade tão convenientemente descoberta.
[(*) N. do T. – Em 2005, isto é, no ano da “eleição pontifical” do padre Ratzinger. Sobre cujo “episcopado”, antes dessa data, a mesma revista dos dominicanos de Avrillé escrevia: “Cumpre recordar que o cardeal Ratzinger foi sagrado em 1997. Ora, pesam sobre esse novo rito dúvidas, de um lado na sua fórmula latina, de outro lado em suas traduções vernáculas, mas sobretudo nas cerimônias concretas de ordenação e de sagração que são com demasiada frequência gravemente fantasistas ou acompanhadas de declarações do consagrador ou do consagrando que acarretam legítimas inquietudes sobre a intenção necessária à validade.” (Le Sel de la Terre, n.º 5, p. 65; trecho citado também no estudo publicado no n.º 40, pp. 232-253).]
A Entrevista a Stephen Heiner
Concordar-se-á que a jurisdição suprida foi uma presença vultuosa na vida do bispo Tissier. Mas ainda mais estava por vir. Será possível ficar viciado num axioma canônico como um alcoólatra com sua caninha? Nesse caso, poder-se-ia suspeitar de que o bispo tenha se tornado tão dependente da jurisdição suprida, a ponto de não ter mais outro instinto que não seja o de recorrer a uma boa dose sempre que ele considera a realidade desconfortável. É uma suspeita desagradável de entreter, mas é seguramente inevitável ao contemplar a entrevista entre o correspondente do Remnant Stephen Heiner e o bispo Tissier de Mallerais que teve lugar na Califórnia, em 21 de abril deste ano.
Nessa fascinante entrevista, vemos o bispo Tissier tomar a iniciativa, de um entrevistador excessivamente cauteloso, para insistir publicamente que Josef Ratzinger “professou heresias” e “nunca retratou seus erros”; que ele “publicou um livro cheio de heresias” especialmente “a negação do dogma da Redenção”; que esses erros não são meramente “suspeitos…ou com sabor de heresia” mas “completamente claros”; que ele também ensinou “muitas outras heresias” e, de fato, “levantou dúvidas sobre a divindade de Cristo, sobre o dogma da Encarnação”. Ademais, ele “interpreta as doutrinas existentes sob novas luzes… Conforme a nova filosofia, a filosofia idealista de Kant.”
É impossível não aplaudir essa franca avaliação, e impossível de não se juntar ao entrevistador em levantar a pergunta óbvia: “Essas são palavras muito fortes, excelência, mas ainda assim a Fraternidade não é sedevacantista…”
Diante disso, o entrevistado de vestes púrpuras abruptamente dá marcha à ré com um quase histérico “Não, não, não, não. Ele é o Papa.” Aí então, percebendo que alguma aparência de argumento é necessária para respaldar a bravata, ele deixa escapar:
“Ecclesia supplet. A Igreja supre. Está até no Código de Direito Canônico: ‘em caso de dúvida, a Igreja supre o poder executivo.’ Ele é o Papa. Ecclesia supplet.”
Ah, sim, um amigo na necessidade é um amigo de verdade.
Mas o que é que o bispo quer dizer?! Houvesse ele argumentado que as heresias de Ratzinger talvez fossem inconscientes e não pertinazes, ao menos o teríamos compreendido. Tivesse ele optado pela doutrina, a contragosto tolerada, de Caetano e Suarez de que um conhecido herege pode ainda ser papa, deveríamos saudar um oponente que mostra coragem ainda maior ao escolher arma tão enferrujada. Se ele houvesse desviado o assunto para as dificuldades alegadamente acarretadas pela tese sedevacantista, teríamos reconhecido a técnica de debate evasiva. Se tivesse apelado à tese de Xavier da Silveira pela qual a jurisdição de um papa herege é “preservada” (não suprida) até que a heresia se torne suficientemente notória, teríamos podido discutir a questão da notoriedade. Mas nada disso se aplica. O bispo Tissier dá toda a mostra de reconhecer que as aberrações doutrinárias de Ratzinger são, como tais, incompatíveis com a posse de jurisdição papal, mas aí apela para o “Ecclesia supplet” para fazer dele papa malgrado sua inelegibilidade. Não é apenas jurisdição caso-a-caso suprida para tornar válidos certos atos, mas é a suplência do inteiro “poder executivo” do Papado (a citação, reveladoramente, é do novo Código de Direito Canônico de 1983, que a Fraternidade em princípio rejeita). Se a Igreja está suprindo a Josef Ratzinger, de maneira extraordinária, o poder executivo papal, isso só pode significar que ele não possui esse poder do jeito normal que os Papas de verdade o possuem – através da eleição válida de um sujeito elegível.
De Volta à Realidade
Obrigado, bispo Tissier de Mallerais, por admitir que Josef Ratzinger é um notório promotor de heresias cuja diabólica falsa filosofia perverte até mesmo aqueles dogmas em que ele pretende ainda crer. E obrigado por admitir que ele não está na posse ordinária do Papado e precisa, portanto, receber seu “poder executivo” por força de uma suplência extraordinária. Não nos creia ingrato, bispo, se agora com muita brevidade dirigimos um foco crítico para o seu axioma de confiança: “a Igreja supre”; um princípio que tem tanta importância para o senhor é certamente digno de exame.
Para entender este axioma e o seu funcionamento, nada substitui de modo inteiramente adequado o estudo sério dos comentadores canônicos mais detalhados. Mas um atalho respeitável existe, na forma do douto estudo de 321 páginas Supplied Jurisdiction According to Canon 209 [A Jurisdição Suprida Segundo o Cânon 209], do Rev. Pe. F. S. Miaskiewicz J.C.D., publicado em 1940 pela Catholic University of America Press: ele se tornou referência para os canonistas subsequentes. Eis alguns pontos que dele emergem, frequentemente em suas próprias palavras:
1. O princípio “Ecclesia supplet” significa que a Igreja supre jurisdição (alguns partilham do poder de governo de que a Igreja é divinamente revestida) em certos casos previstos quando sem isso ela estaria ausente.
2. Ele não supre a ausência de poder sacramental, de posse válida de um ofício, de status hierárquico, ou de conhecimento teológico. Nem, tampouco, supre folículos capilares ou contas bancárias ausentes.
3. Não é a mesma coisa que epiqueia, o princípio pelo qual não é pecaminoso desobedecer a uma lei humana em casos proporcionalmente graves e excepcionais. A epiqueia não concede jurisdição nem autoridade alguma, e nunca pode fazer a diferença entre validade e invalidade.
4. Toda jurisdição vem da Sé Apostólica, reservatório único de todo o tesouro da autoridade divina confiado por Cristo à Sua Igreja.
5. Em circunstância nenhuma, qualquer que seja ela, pode um padre católico seja quem for possuir jurisdição que o Papa formalmente lhe recuse, quer a recusa do Papa esteja fundada em bons motivos ou não, pois o Papa necessariamente tem poder imediato, ordinário e supremo sobre todos os fiéis.
6. Jurisdição suprida é suprida precisamente porque um Papa declarou que todo padre que se encontre em determinadas circunstâncias declaradas deve gozar de um determinado poder de jurisdição declarado.
7. Não existe nenhum princípio conhecido pelo Direito Canônico ou pela Teologia segundo o qual toda e qualquer jurisdição que fosse ser muito útil para algumas ou muitas almas seja necessariamente suprida. Pelo contrário, se essa suplência não é mencionada em nenhum texto canônico, ela pertence ao reino do faz-de-conta. Por exemplo, a Santa Sé pode outorgar a um simples padre o poder de confeccionar o Óleo dos Enfermos necessário para a Extrema Unção, mas foi mantido que não importa o quão grande a necessidade (e válida Extrema Unção pode ser crucial para a salvação, quando um pecador moribundo perde a consciência com atrição mas sem manifestar o desejo de confessar), um simples padre não pode confeccionar o Óleo validamente a não ser que ele tenha recebido da Santa Sé o poder extraordinário: uma utilíssima parcela de jurisdição é, assim, não suprida.
8. O Código de Direito Canônico de 1917 supre jurisdição para a absolvição dos que estão em perigo de morte, para matrimônios quando o pároco e o bispo não estão disponíveis, e em casos de erro comum e dúvida de direito. Ele também, em certos casos (por exemplo viagens marítimas), supre uma extensão dos poderes jurisdicionais (já possuídos).
9. A fonte a que se apela frequentemente para jurisdição suprida em nossos dias é o Cânon 209, que se refere a erro comum e a dúvida de direito ou de fato.
10. O erro comum tem de ser sobre a existência de um ofício em particular ou sobre a validade da posse de jurisdição por alguma pessoa ou pessoas particulares. Ele não cobre o caso de alguém erroneamente considerado Bispo quando é somente padre!
11. A dúvida de direito ou de fato tem de ser “positiva e provável” – o que “postula mais do que certeza subjetiva. Exige, em acréscimo, algum indício objetivo para embasar ou justificar a crença subjetiva na existência do poder jurisdicional sobre o qual há dúvida.”
12. Jurisdição suprida sempre funciona “per modum actus”, i.e. caso a caso, e portanto nunca concede posse permanente de um ofício. Se alguma vez se aplica a “atos de poder puramente dominativo” era muito duvidoso sob a lei pré-Vaticano II – daí que a suplência de “poder executivo” do Código de 1983 seja uma novidade, e uma que não pode ser invocada como fonte do poder papal dos “papas” vaticanossegundos, a não ser que seja possível erguer-se a si mesmo do chão puxando pelos próprios cadarços.
13. Leigos às vezes levantam a ideia de que Nosso Senhor supre jurisdição diretamente em nossos dias, contornando a necessidade de autoridade da Igreja. Sobre essa ideia, o Papa Bento XIV (1675-1758) cita Caetano: “As ações humanas são de dois tipos, um dos quais refere-se a ministérios públicos, e especialmente ministérios eclesiásticos, tais como pregar, celebrar Missa, pronunciar decisões judiciais e coisas do tipo; com respeito a estas, a questão está decidida na Lei Canônica (Cap. cum ex injuncto, cit. de haereticis) onde está dito que ‘nenhum crédito deve ser dado publicamente a quem diga ter recebido invisivelmente missão de Deus a não ser que ele confirme isso mediante milagre ou testemunho especial da Sagrada Escritura’.” (Papa Bento XIV, Beatificação e Canonização)
Não é intenção deste artigo examinar em detalhe quais atos da FSSPX e de outros clérigos tradicionais são válidos e lícitos. Seu escopo era mostrar que o princípio “a Igreja supre” foi invocado com demasiado relaxo e sem estudo suficiente e, em alguns casos, muito erroneamente. Parte ao menos do ministério, da jurisprudência e da teologia da FSSPX é, na realidade, erigida sobre a areia.
Ainda menos é nossa intenção distribuir culpa por esta situação, ou encorajar qualquer “alisamento de penas” por parte daqueles que não tiveram culpa desses erros específicos. Mas seguramente não é irrazoável pedir que a situação seja retificada. Já não estamos mais no caso do súbito e imprevisto naufrágio eclesiástico dos anos 1960 e 70. Todo e qualquer apostolado sério em nossos dias deve estar baseado numa avaliação teológica sã da natureza da crise e não deve pretender que, quando as autoridades da Igreja não estão autorizando padres a operar, eles possam, sem embargo, automaticamente operar sob todos os aspectos exatamente como se tivessem recebido todas as autorizações disponíveis antes do Concílio.
A Única Exceção
A FSSPX reivindicou, com fundamento frequentemente insuficiente, quase todas as espécies de autoridade e jurisdição existentes na Igreja… exceto uma. Quando se trata de formar o juízo de que os “papas” do Vaticano II não são, na realidade, ocupantes legítimos da Santa Sé, a FSSPX subitamente exibe uma inabitual delicadeza de consciência, beirando certamente o escrúpulo: eles receiam não ter autoridade ou jurisdição para chegar a um tal julgamento. Não é isso o que significa coar um mosquito enquanto se engole um camelo?
É imperativo que o bispo Tissier retorne aos seus livros de teologia. Se ele estudar Bellarmino, Billot, Wernz, o Dictionnaire de Théologie Catholique e as outras fontes bem conhecidas sobre a questão do papa herege, verá que nenhum poder especial, seja qual for, é necessário para detectar fatos. Se ele então estudar, em qualquer compêndio teológico, a extensão da infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal, e a proteção divina da liturgia e leis universais da Igreja, ele será reconfirmado na convicção de que é teologicamente impossível Bento XVI ser Papa. Ele perceberá que a presente crise da Igreja não tem como acabar enquanto não houver um verdadeiro Sucessor de São Pedro, do qual jurisdição indubitada pode ser transmitida a todos aqueles que ele vier a julgar apropriados.
Trad. por Felipe Coelho; de: “The Bishop and the Axiom. Bishop Tissier de Mallerais and the Axiom ‘The Church Supplies’”, in: The Four Marks, vol. 1, n.º 8, set. 2006, pp. 4,16.
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