Sermão de S. Antônio de Pádua, O.F.M.
EXÓRDIO – O PREGADOR
E A QUEM DEVE PREGAR
1. Naquele tempo, “Chegada a tarde daquele dia, que era o primeiro após o sábado, e estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se achavam reunidos, com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes: A paz esteja convosco!” (Jo 20,19).
Nos Atos dos Apóstolos, Pedro relata: “Eu estava orando na cidade de Jope (Jafa) e vi, em êxtase, esta visão: Descia uma espécie de vaso (envólucro), como um grande lençol, o qual, suspenso pelas quatro pontas, baixava do céu e veio até mim. Fixando eu os olhos nele, examinava-o atentamente, e vi nele animais terrestres, quadrúpedes, feras, répteis e aves do céu. Ouvi também uma voz que me dizia: Levanta-te, Pedro, mata e come” (At 11,5-7).
Em Pedro é representado o pregador, que deve permanecer em oração na cidade de Jope, que se interpreta “beleza”, isto é, em união com a Igreja, na qual existe a beleza das virtudes e fora de qual existe só a lepra da infidelidade [falta de fé]. Antes de mais nada, o pregador deve fazer o seguinte: perseverar na oração. A oração segue o êxtase, isto é, a elevação acima das coisas da terra; e no êxtase vê “um vaso, como um grande lençol…” etc. No grande envólucro de linho é indicada a graça da pregação, que justamente é chamada “vaso”, porque inebria as mentes dos fiéis com o vinho da compunção; é chamada também “grande lençol de linho” porque limpa os suores das fadigas e repõe o vigor para enfrentar os ataques das paixões. As “quatro pontas” são o ensinamento dos quatro evangelistas; “descia baixada do céu, porque “toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito vem do alto” (Tg 1,17). “E veio até mim”. Neste fato é indicado de modo particular o privilégio do pregador, ao qual, exatamente pelo céu, é confiada a atarefa da pregação. E neste vaso, neste envólucro misterioso, estão “os quadrúpedes da terra”, isto é, os gulosos e os luxuriosos, e “as feras”, palavra que soa como vastiae (devastadoras), isto é, os traidores e os homicidas: e “os répteis”, isto é, os avarentos e os usurários; e “as aves do céu”, isto é, os soberbos e todos aqueles que se elevam com as penas da vanglória.
Este vaso é como a rede lançada ao mar, que captura toda espécie de peixes (cf. Mt 13,47); e ao pregador é dito: “Levanta-te, mata e come”. Levanta-te para evangelizar; morra para o mundo; mortifica e imola, para oferecer sacrifícios a Deus, para que despojados da velhice cheguem à novidade; e come, quer dizer, acolhe na unidade e na comunidade do corpo da Igreja. Dessa unidade e comunidade fala-se precisamente no evangelho de hoje: “Chegada a tarde daquele dia, o primeiro depois do sábado… os discípulos estavam reunidos” etc.
2. Observa que neste evangelho são postos em evidência cinco momentos: Primeiro, a reunião dos discípulos, quando começa com as palavras “Chegada a tarde” etc. Segundo, a tríplice saudação de paz, quando acrescenta: “Veio Jesus, ficou no meio deles e disse: Paz a vós”. Terceiro, o poder concedido aos apóstolos de ligar e de desligar: “E dizendo isso, soprou sobre eles” etc. Quarto, a incredulidade de Tomé: “Tomé, um dos Doze, não estava com eles” etc. Quinto, a profissão de fé de Tomé e a confirmação de nossa fé: “Oito dias depois” etc.
Observa ainda que neste domingo se lê a epístola do Bem-aventurado João: “Tudo o que nasceu de Deus, vence o mundo” (1Jo 5,4). Na noite, segundo o uso da igreja romana, se leem os Atos dos Apóstolos. Queremos acenar brevemente a cinco episódios narrados pelos Atos e pô-los em confronto com as cinco partes do evangelho acima reportadas. Os cinco episódios são: Primeiro, a reunião dos apóstolos em Jerusalém: “Então, do Monte das Oliveiras voltaram para Jerusalém”. Segundo, onde diz: “Naqueles dias, Pedro erguendo-se no meio dos irmãos” etc. Terceiro, o coxo desde o seio materno, ao qual Pedro disse: “Não tenho nem ouro nem prata” etc. Quarto, a conversão de Saulo. Quinto, o eunuco e o centurião Cornélio.
I – A REUNIÃO DOS DISCÍPULOS
3. “Chegada a tarde daquele dia”. Nesta primeira parte deve se dar atenção a cinco momentos: a tarde, aquele dia, primeiro depois do sábado, as portas fechadas, o discípulos reunidos por medo dos judeus.
O dia (latim: dies; sânscrito: dian, luminosidade) está a indicar o esplendor (a glória) das vaidades do mundo. Dela diz o Senhor: “Eu não recebo glória dos homens” (Jo 5,41); e Jeremias: “Não desejei o dia dos homens, tu bem o sabes” (Jr 17,16); e Lucas: “E agora neste teu dia”, e não meu, se tu conhecesses “o que te pode trazer a paz!” (Lc 19,42), e não a minha; e nos Atos dos Apóstolos: “No dia seguinte, tendo ido Agripa e Berenice com grande pompa” (As 25,23) (latim: ambitione), isto é, com uma grande multidão que os rodeava. Por ambitione existe em grego – dito pela Glosa – o termo phantasia (ostentação).
Agripa interpreta-se “urgente acúmulo”, e Berenice, “filha excitada pela elegância”. Agripa representa o rico deste mundo, que se apressa em acumular riquezas com a usura e os juramentos falsos: “Vomitará as riquezas que devorou [diz Jó] e Deus as fará expelir do seu ventre” (Jó 20,15). Berenice representa a luxúria da carne, filha do diabo, que se excita com a elegância exterior e faz excitar os outros. Portanto, Agripa e Berenice, isto é, os ricos e os luxuriosos, no dia do fausto mundano procedem com grande ambição, que é só deludente fantasia, já que produz a impressão de ser alguma coisa, quando, enfim, na realidade, não é nada, e quando crê ter conseguido alguma coisa, tudo se dissipa e esvai (cf. Gl 6,3).
“Chegada a tarde daquele dia”. A tarde de tal dia é a penitência, na qual o sol do esplendor mundano se muda em trevas e a luz da concupiscência carnal transforma-se em sangue. Nos Atos dos Apóstolos, servindo-se das palavras do Senhor, tomadas de Joel, Pedro diz: “Farei ver prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra, sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas e a lua, em sangue” (At 2,19-20; cf. Jl 2,30-31).
Sentido alegórico. O Senhor fez prodígios no céu e sobre a terra, quando desceu para a terra por meio do sangue derramado na cruz; no fogo, quando enviou o Espírito Santo sobre os apóstolos; e assim, subiu para o alto a fumaça da compunção. De fato, diz-se nos Atos: “Ficaram compungidos no seu coração e disseram a Pedro e aos outros apóstolos: O que devemos fazer, irmãos? E Pedro: Fazei penitência [disse] e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo” (At 2,37-38).
Sentido moral. No sangue é indicada a maceração da carne, no fogo o ardor da caridade e no vapor da fumaça a compunção do coração. Estes prodígios os faz o Senhor no céu, isto é, no justo, e sobre a terra, quer dizer, no pecador.
4. E com estes três elementos concorda também aquilo que lemos na epístola de hoje: “Três são os que dão testemunho sobre a terra: o espírito, a água e o sangue” (IJo 5,8).
Sentido alegórico. O espírito é a alma humana, que Cristo exalou na paixão; a água e o sangue brotaram de seu lado, o que não teria podido acontecer se não tivesse havido a verdadeira natureza da carne (do homem).
Sentido moral. O espírito é a caridade, a água, a compunção e o sangue, a maceração da carne. Sobre isso concordam também as palavras do Êxodo: “Todo o Monte Sinai fumegava, porque o Senhor tinha descido sobre ele no meio do fogo, e dele elevava-se a fumaça, como de uma fornalha, e todo o monte causava terror. O som da trombeta ia aumentando pouco a pouco e se espalhava mais ao longe” (Ex 19,18-19). O Monte Sinai representa a mente do penitente, na qual, quando desce o Senhor no fogo da caridade – do qual ele próprio disse: “Vim para trazer fogo sobre a terra” (Lc 12,49) –, todo o monte fumega e dele sai a fumaça da compunção como de uma fornalha, isto é, pelo ardor da mente. E assim, todo o monte incute terror por causa da maceração da carne, ou incute terror aos espíritos imundos. De fato, lemos em Jó: “Ninguém lhe dizia palavra, porque viam que sua dor era terrível!” (Jó 2,13).
“E o som da trombeta”, isto é, da confissão, “pouco a pouco tornava-se mais forte e se fazia mais penetrante”, porque, quando se confessa, o penitente deve começar pelos pensamentos ilícitos, a seguir passar para as palavras e depois para as obras más.
“O sol mudar-se-á em trevas e a lua, em sangue”. O sol muda-se em trevas quando o luxo mundano é obscurecido pelo saco da penitência; e a lua muda-se em sangue quando a concupiscência da carne é reprimida com as macerações, com as vigílias e as abstinências. Justamente, pois, se diz: “Quando veio a tarde daquele dia, o primeiro depois do sábado”. E o Senhor diz no Êxodo: “Lembra-te de santificar o sábado” (Ex 20,8).
5. Santifica o dia do sábado aquele que mora na tranquilidade do espírito e se abstém das obras proibidas. “E as portas estavam fechadas”. As portas são os cinco sentidos do corpo, que devemos fechar com as fechaduras do amor e do temor de Deus, para que não nos aconteça aquilo que diz Paulo nos Atos dos Apóstolos: “Eu sei que depois da minha partida introduzir-se-ão entre vós lobos arrebatadores, que não pouparão o rebanho” (At 20,29). Paulo interpreta-se “humilde”. Quando a humildade desaparecer do coração, os lobos arrebatadores, isto é, os desejos carnais, entram pelas portas dos cinco sentidos e devoram o rebanho dos bons pensamentos.
“Onde estavam reunidos os discípulos por medo dos judeus”. Os discípulos são os juízos da razão, que devem reunir-se juntos por medo dos judeus, isto é, dos demônios, para agir de maneira que estes não os possam prejudicar. De fato, diz-se no Cântico dos Cânticos: És bela e formosa, filha de Jerusalém, terrível como um exército em ordem de batalha (cf. Ct 6,3). A alma é a filha da Jerusalém celeste, bela pela fé e formosa pela caridade; ela será também terrível para os espíritos imundos se colocar os juízos da razão e os pensamentos da mente como um exército de soldados em ordem de batalha contra os inimigos.
E sobre esta reunião [dos discípulos] concorda também o que se diz em outra parte dos Atos: “Então voltaram para Jerusalém, do monte chamado das Oliveiras, que está perto de Jerusalém, à distância da jornada de um sábado. Entrados no cenáculo, subiram [ao plano superior] onde permaneciam Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, filho de Alfeu, Simão o Zelota e Judas, irmão de Tiago. Todos estes perseveraram unanimemente em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (At 1,12-14). O Monte da Oliveiras dista uma milha de Jerusalém, o caminho permitido no sábado, isto é, mil passos: no sábado, aos judeus não era lícito caminhar mais. O cenáculo é chamado pela Glosa terceiro teto”, e é figura da caridade, da fé consolidada e da esperança. Devemos subir a este cenáculo, permanecer ali com os discípulos e perseverar unânimes na oração, na contemplação e na efusão das lágrimas para sermos dignos de receber a graça do Espírito Santo. Por isso, o Senhor diz: “Permanecei na cidade até que sejais revestidos da virtude do alto” (Lc 24,49).
Portanto, se o dia da glória mundana estiver declinando e se puser na tarde da penitência, na qual, como no sábado, o homem deve desistir das obras más, e as por. tas dos cinco sentido estiverem fechadas, e todos os discípulos de Cristo, ou seja, os sentimentos do justo, estiverem reunidos juntos, então o Senhor fará aquilo que diz o evangelho prosseguindo na narração.
II – A TRÍPLICE SAUDAÇÃO DE PAZ
6. “Veio Jesus, pôs-se no meio dos discípulos e disse: A paz esteja convosco. Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Alegraram-se, pois, os discípulos ao ver o Senhor. Jesus disse-lhes novamente: A paz esteja convosco. Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós” (Jo 20,19-21). Note-se, primeiramente, que neste evangelho por bem três vezes se diz “A paz esteja convosco”, por causa da tríplice paz que o Senhor restabeleceu: entre Deus e o homem, reconciliando este último com o Pai por meio de seu sangue; entre o anjo e o homem, assumindo a natureza humana e elevando-a acima dos coros dos anjos; entre o homem e homem, reunindo em si mesmo, pedra angular, o povo dos judeus e aquele dos gentios (pagãos).
Observa, também, que na palavra paz, PAX, há três letras que formam uma só sílaba: nisto é representada a Unidade e a Trindade de Deus. No P é indicado o Pai; no A, que é a primeira das vogais, é indicado o Filho, que é a voz do Pai; no X, que é uma consoante dupla, é indicado o Espírito Santo, que procede de ambos [do Pai e do Filho]. Portanto, quando diz: A paz esteja convosco, recomendou-nos a fé na Unidade e na Trindade.
“Veio, pois, Jesus e pôs-se no meio”. O centro é o lugar que compete a Jesus: no céu, no seio da Virgem, na manjedoura do rebanho e no patíbulo da cruz.
No céu, como se diz no Apocalipse: “O Cordeiro que está no meio do trono [isto é, no seio do Pai] guiá-los-á e os levará às fontes das águas da vida” (Ap 7,17), isto é, à saciedade do gáudio celeste.
No seio da Virgem, conforme Isaías: “Exultai e cantai louvores, habitantes de Sião, porque grande é em vosso meio o Santo de Israel” (Is 12,6). Ó Bem-aventurada Maria, que és figura dos habitantes de Sião, isto é, da Igreja, que, na encarnação do teu Filho pôs o fundamento do edifício de sua fé, exulta com todo o coração, canta com a boca o seu louvor: “A minha alma glorifica o Senhor!” (Lc 1,46), porque o grande, o pequeno e o humilde, o santo e o santificador de Israel está em meio a ti, isto é, no teu seio.
Na manjedoura do rebanho, por isso, Habacuc: “Serás conhecido em meio a dois animais” (Hab 3,2 – versão dos LXX). E Isaías: “O boi conhece o seu proprietário e o asno a manjedoura de seu dono” (Is 1,3).
No patíbulo da cruz, daí João: “Crucificaram com ele outros dois, um de um lado, outro do outro lado, e Jesus no meio” (Jo 19,18).
Veio, pois, Jesus e pôs-se no meio. “Eu estou no meio de vós [diz-nos em Lucas] como um que serve” (Lc 22,27). Está no centro de cada coração; está no centro porque dele, como do centro, todos os raios da graça irradiam-se para nós que caminhamos ao redor e nos agitamos na periferia.
7. Com tudo isso concordam as palavras dos Atos dos Apóstolos: “Naqueles dias – como Lucas narra –, levantando-se Pedro no meio dos irmãos (o número das pessoas ali reunidas era de cerca de cento e vinte), disse: ‘Irmãos…’” (At 1,15-16) etc., e tudo aquilo que aconteceu para a eleição de Matias.
Cristo, ressurgido dos mortos, pôs-se no meio dos discípulos; e Pedro, que antes tinha caído, negando-o, levantou-se no meio dos irmãos, indicando com isso a nós que, erguendo-nos do pecado, pomo-nos no meio dos irmãos, porque no centro existe a caridade que se estende tanto ao amigo como ao inimigo. “Veio, pois, Jesus e pôs-se no meio dos discípulos e disse: A paz esteja convosco”.
Recorda que existe uma tríplice paz. Primeiro: a paz do tempo, da qual está escrito no Terceiro livro dos Reis que “Salomão tinha paz com todos os vizinhos” (1Rs 4,24). Segundo: a paz do coração, da qual se diz: “Em paz me deito e logo adormeço” (Sl 4,9); e ainda: “A Igreja estava em paz por toda a Judeia, a Galileia e a Samaria; ela crescia e caminhava no temor do Senhor, cheia do conforto do Espírito Santo” (Ar 9,31). Judeia interpreta-se “confissão”, Galileia, “passagem” e Samaria, “guarda”. Portanto, a Igreja, isto é, a alma fiel, encontra a paz nestes três atos: na confissão, na passagem dos vícios para as virtudes, na guarda do preceito divino e da graça recebida. E desse modo cresce e caminha de virtude em virtude no temor do Senhor: não um temor servil, mas um afetuoso temor filial; e em cada tribulação está repleta da consolação do Espírito Santo. Terceiro: a paz da eternidade, da qual diz o salmo: “Foi ele que estabeleceu a paz nas tuas fronteiras”(SI 147,14).
A primeira paz deves tê-la com o próximo, a segunda contigo mesmo, e assim, na oitava da ressurreição, terás também a terceira paz, com Deus no céu. Põe-te, pois, no meio e terás a paz com o próximo. Se não estiveres no meio não poderás ter a paz. De fato, nas “circunferências” não existe paz nem tranquilidade, antes movimento e volubilidade.
Diz se dos elefantes que, quando devem enfrentar um combate, têm um cuidado especial com os feridos: de fato, eles os fecham no centro do grupo, junto com os mais fracos. Assim também tu, acolhe no centro da caridade o próximo, fraco e ferido. Como fez aquele guarda do cárcere, do qual se fala nos Atos dos Apóstolos que levou a parte Paulo e Silas naquela mesma hora da noite, lavou-lhes as feridas, que levou as para sua casa, preparou-lhes a mesa e ficou cheio de alegria com toda; sua família por haver acreditado em Deus (cf. At 16,33-34).
8. Portanto, “Jesus pôs-se no meio dos discípulos e disse-lhes: A paz esteja convosco. Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado”. Lucas escreve que Jesus disse: “Olhai para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo!” (Lc 24,39).
Na minha opinião, o Senhor mostrou aos apóstolos as mãos, o lado e os pés por quatro motivos. Primeiro, para demonstrar que havia verdadeiramente ressuscitado e, assim, tirar-nos qualquer dúvida. Segundo, para que a pomba, isto é, a Igreja, ou também a alma fiel, fizesse o ninho em suas chagas, como se fossem profundas aberturas, e assim pudesse esconder-se da vista do gavião que trama insídias para raptá-la. Terceiro, para imprimir em nossos corações os sinais distintivos de sua paixão. Quarto, mostrou-os para que também nós, participando de sua paixão, não o pregássemos mais à cruz com os pregos dos pecados. Mostrou-nos, pois, as mãos e o lado dizendo: Eis as mãos que vos plasmaram, como estão traspassadas pelos pregos; eis o lado, do qual vós fiéis, minha Igreja, fostes gerados, como Eva foi procriada do lado de Adão;neis como foi aberto pela lança para abrir-vos a porta do paraíso, fechada pela espada flamejante do querubim. A virtude do sangue brotado do lado de Cristo, afastou o anjo e tornou inócua a sua espada e a água apagou o fogo.
Não queirais, pois, crucificar-me novamente e profanar o sangue da aliança, no qual fostes santificados e ultrajar o Espírito da graça. Se prestares bem atenção a estas coisas e as ouvires, terás paz contigo mesmo, ó homem. Portanto, após lhes ter mostrado as mãos e o lado, o Senhor disse de novo: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou” para a paixão, apesar do amor que tem por mim, assim também eu, com o mesmo amor, “envio a vós” ao encontro dos sofrimentos para os quais o Pai me enviou.
III – O PODER DADO AOS APÓSTOLOS
DE LIGAR E DE DESLIGAR
9. “Dito isto, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo. Àqueles aos quais perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles aos quais não os perdoardes, não serão perdoados” (Jo 20,22-23). O sopro de Cristo indicou que o Espírito Santo não era somente Espírito do Pai, mas também seu. Diz Gregório: “O Espírito foi enviado à terra para que seja amado o próximo; foi enviado do céu para que Deus seja amado”. Disse: “Recebei o Espírito Santo: àqueles aos quais perdoardes os pecados…”, isto é, àqueles que julgardes dignos de perdão, com as duas chaves do poder e do juízo, quer dizer, com a aplicação do poder e do juízo; entende-se: observando as modalidades e a ordem do poder de ligar e de desligar.
Vejamos, pois, de que modo o sacerdote perdoa os pecados e absolve o pecador. Alguém peca mortalmente: imediatamente torna-se digno da geena, amarrado com a corrente da morte eterna. Mas depois se arrepende e, verdadeiramente contrito, promete confessar-se. Logo o Senhor o liberta da culpa e da morte eterna, que, por força da contrição, transforma-se na pena do purgatório. E a contrição poderia ser tão grande como na Madalena e no bom ladrão, que, se aquele pecador morresse, voaria imediatamente para o céu. Vai ao sacerdote e se confessa; o sacerdote impõe-lhe uma penitência temporária, em virtude da qual também a pena do purgatório pode ser expiada nesta vida: e se a tiver cumprido como deve, voará para a glória. Desse modo, Deus e o sacerdote perdoam e absolvem.
E com isso concorda aquilo que lemos nos Atos dos Apóstolos, onde Pedro diz [ao coxo]: “Não tenho prata nem ouro, mas aquilo que tenho, isso te dou: Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda. E tomando-o pela mão direita, levantou-o; e imediatamente seus pés e seus tornozelos se consolidaram. E dando um salto, pôs-se de pé e andava. E entrou com eles no templo de Jerusalém” (At 3,6-8).
O Bem-aventurado Bernardo, escrevendo ao Papa Eugênio, diz: “Medita sobre a herança que te deixaram teus pais: os escritos do testador não estabelecem nada de todos estes bens. Ouve a voz do teu predecessor que diz: Não tenho prata nem ouro. É verdade – diz a Glosa – que a primeira tenda [a primeira aliança] tinha prescrições econômicas referentes ao culto e seu santuário terreno distinguia-se pela grande quantidade de ouro e de prata (cf. Hb 9,1); mas o sangue do evangelho resplandece mais precioso do que os metais da lei, porque o povo, que jazia enfermo diante das portas douradas, somente em nome de Cristo crucificado entra no templo celeste”. E Jerônimo: “Se queres recordar ouro e prata na Igreja, recorda também o sangue derramado, que aos antigos era lícito possuir, porque a eles eram prometidas estas coisas. Agora, porém, o Cristo pobre santificou a pobreza em seu corpo e aos seus prometeu não bens temporais, mas os bens celestes”.
“Em nome de Jesus Cristo…” Eis o caminho para a perfeição: primeiro, aquele que jazia, levanta-se; segundo, toma o caminho da virtude, e assim com os apóstolos entra pela porta do reino. Presta atenção às palavras: “levanta-te” por meio da contrição; “anda” por meio da confissão; e assim “tomando-o pela mão direita, levantou-o”, isto é, absolveu-o e o despediu em paz.
Também aqui concordam as palavras dos Atos dos Apóstolos, onde se lê que Pedro “encontrou em Lida um homem chamado Eneias, que havia oito anos jazia num leito, porque era paralítico, E Pedro lhe disse: Eneias, Jesus Cristo te cura! Levanta-te e arruma tu mesmo a tua cama. E imediatamente se levantou” (Ar 9,33-34). Eneias interpreta-se “pobre” ou “miserável” e representa o pecador que se encontra em pecado mortal, pobre de virtude e na miséria, porque escravo do diabo. Este, como um paralítico, jaz no leito da concupiscência carnal, devastado em todos os seus membros: a ele o representante de Pedro deve dizer: “Eneias”, pobre e miserável, Jesus Cristo te cure! “Levanta-te”, com a contrição, e “arruma o leito” com a confissão, “Tu, não um outro, arruma o leito”. “E logo se levantou”, liberto de qualquer laço de pecado.
Outra concordância: “Pedro disse: Tabita, levanta-te! E ela abriu os olhos. Ele lhe deu a mão e a levantou” (At 9,40-41). Tabita interpreta-se “dammula” (gazela) (Cf. At 9,36), e o animal é chamado assim porque foge da mão (latim: dammula, de manu), e assustado e medroso, uma espécie de cabra selvagem. Representa a alma do pecador, medrosa e preguiçosa, que foge da mão do Pai celeste. A cla é dito: Levanta-te com a contrição; e então abre os olhos com a confissão, e se detém, humilhando-se com a penitência, e, portanto, põe-se de pé em virtude da absolvição de todos os seus pecados.
Conceda-nos esta absolvição o verdadeiro sacerdote e sumo pontífice Jesus Cristo, que é bendito nos séculos dos séculos. Amém.
IV – A INCREDULIDADE DE TOMÉ
10. “Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo (gêmeo), não estava com eles quando Jesus veio. Então, os outros discípulos lhe disseram: Nós vimos o Senhor. Mas ele lhes disse: Se não vir nas suas mãos a abertura dos cravos e não puser o meu dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, não creio” (Jo 20,34-35). Tomé interpreta-se “abismo”, porque duvidando conseguiu um conhecimento mais profundo e assim sentiu-se mais seguro. Dídimo é um termo grego que significa “duplo”, portanto, dúbio, duvidoso (cético). Não por acaso, mas por disposição divina, Tomé estava ausente e não quis crer naquilo que ouvia contar O disposição divina! Ó santa dúvida do discípulo! “Se não vir nas suas mãos…” Desejava ver reedificado o tabernáculo de Davi, que caíra, e do qual o Senhor, por boca de Amós, diz: “Naquele dia levantarei o tabernáculo de Davi, que caiu, repararei as brechas dos seus muros” (Am 9,11).
Em Davi, que se interpreta “de mão forte”, devemos ver a divindade; no tabernáculo o corpo do próprio Cristo, no qual, como num tabernáculo, habitou a divindade: tabernáculo que caiu com a paixão e com a morte. Por brechas dos muros entendem-se as feridas das mãos, dos pés e do lado: O Senhor os reedificou na sua ressurreição. Deles diz Tomé: “Se não vir nas suas mãos as aberturas…” O Senhor misericordioso não quis abandonar na sua honesta dúvida aquele discípulo, que se tornaria um vaso de eleição: tirou-lhe misericordiosamente qualquer escuridão, qualquer sombra de dúvida, como a seguir teria tirado a Saulo a cegueira da infidelidade.
E eis exatamente a concordância nos Atos dos Apóstolos. Diz Ananias: “Saulo, meu irmão, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, enviou-me para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo. Imediatamente caíram-lhe dos olhos umas como escamas e recuperou a vista. Levantando-se. foi batizado. Depois que tomou alimento, recuperou as forças” (At 9,17-19). Assim, realizou-se a profecia de Isaías (Is 65,25): “O lobo pastará junto com o cordeiro”, isto é, Saulo com Ananias; este último nome interpreta-se “cordeiro”. O corpo da serpente cobre-se de escamas. Os judeus são serpentes e raça de víboras (cf. Mt 23.33). Saulo, imitando a perfídia dos judeus, tinha os olhos do coração como que cobertos de pele de serpente, mas depois, caídas as escamas sob a mão de Ananias, manifesta no rosto a luz que recebeu na mente. Assim, sob a mão de Ananias, isto é, de Jesus Cristo, que foi conduzido ao sacrifício como um cordeiro (cf. Is 53,7), caíram as escamas da dúvida dos olhos de Tomé e ele recuperou a vista da fé.
V – PROFISSÃO DE FÉ DE TOMÉ
E CONFIRMAÇÃO DE NOSSA FÉ
11. “Oito dias depois, os discípulos estavam de novo em casa e Tomé estava com eles. Veio Jesus, estando as portas fechadas, pôs-se no meio deles e disse: A paz esteja convosco!” (Jo 20,26). Aqui, não quero explicar novamente aquilo que já foi explicado.
“Em seguida disse a Tomé: Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos, aproxima também tua mão, põe-na no meu lado: e não sejas incrédulo, mas fiel. Respondeu Tomé e disse: Meu Senhor e meu Deus! Jesus lhe disse: Tu creste, Tomé, porque me viste; Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20,27-29).
Diz o Senhor por boca de Isaías: “Eis que eu te gravei nas minhas mãos” (Is 49,16). Observa que para escrever são necessárias três coisas: papel, tinta e caneta. As mãos de Cristo foram o papel, seu sangue, a tinta e os cravos, a caneta. Cristo, pois, gravou-nos em suas mãos por três razões. Primeiro, para mostrar ao Pai as cicatrizes das chagas que havia sofrido por nós, e induzi-lo assim à misericórdia. Segundo, para jamais se esquecer de nós, e por isso ele próprio diz por boca de Isaías: “Pode talvez uma mulher esquecer sua criança, e não ter mais piedade do filho de seu seio? Mas ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de ti. Eis, eu te gravei nas minhas mãos” (Is 49,15-16). Terceiro, nas suas mãos escreveu como nós devemos ser e o que devemos crer. Não sejas, pois, incrédulo, ó Tomé, é cristão, mas fiel!
“Tomé exclamou: Meu Senhor e meu Deus!” etc. Respondendo-lhe, o Senhor não disse: Porque me tocaste, mas “porque me viste”, porque a vista é, de certa forma, o sentido geral, que geralmente ajuda os outros quatro. Diz a Glosa: Talvez não ousou tocar, mas somente olhou, ou talvez também olhou tocando. Via e tocava um homem, e além disso, eliminada qualquer dúvida, acreditou que era Deus, professando assim aquilo que não via. “Tomé, viste-me homem, e creste-me Deus”.
12. “Bem-aventurados aqueles que sem ter visto, creram”. Com estas palavras louva a fé dos gentios (pagãos); mas usa o tempo passado, porque na sua presciência via como já acontecido aquilo que aconteceria no futuro. Encontramos a confirmação disso nos Atos dos Apóstolos, quando Filipe interrogou o eunuco de Candace, rainha da Etiópia: “Crês de todo o coração? Ele respondeu: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. E o batizou” (At 8,37.38); assim também onde se fala do centurião Cornélio, que Pedro batizou com toda a sua família, em nome de Jesus Cristo (cf. At 10,1-48). Estes dois, que creram em Cristo, prefiguravam a Igreja dos gentios, que teria sido regenerada no sacramento do batismo e teria acreditado no nome de Jesus Cristo. A estes Pedro fala hoje com as palavras do introito da missa, e diz: “Como crianças recém-nascidas desejais o leite razoável, não falsificado” (1Pd 2,2).
A criança (latim: infans) é chamada assim porque não sabe falar (latim: in fans, não falante). Os fiéis da Igreja, gerados pela água e pelo Espírito Santo, devem ser infantes, não falantes (non fantes), isto é, que não falam a língua do Egito, da qual diz Isaías: “O Senhor recusará a língua do mar do Egito” (Is 11,15). Na língua, é indicada a eloquência, no mar, a sabedoria filosófica, e no Egito, o mundo. O Senhor, pois, recusa a língua do mar do Egito quando, por meio dos simples e dos não eruditos, demonstra que a sabedoria do mundo é árida e insípida.
“Razoável, não falsificado”. Razoável é aquilo que se faz com a razão. A razão é o olhar da alma, com a qual o verdadeiro é contemplado por si mesmo e não através do corpo; ou é também a própria contemplação do verdadeiro, não por meio do corpo; ou é também o próprio verdadeiro que é contemplado. Razoável, pois, em relação a Deus e a nós mesmos; não falsificado em relação ao próximo.
“Desejai o leite”. O leite do qual fala Agostinho: “O pão dos anjos tornou-se leite dos pequenos”. O leite (latim: lac) é chamado assim pela sua cor: é de fato um líquido branco. Branco em grego se diz leukòs, em latim, albus. Sua substância é produzida pelo sangue. De fato, após o parto, se uma parte do sangue não foi ainda consumada pelo nutrimento acontecido no útero, pelos caminhos naturais sai pelos seios e, tornando-se branco por obras destes, assume a natureza e a substância do leite. E a partir daquele momento torna-se alimento para qualquer neonato, já que a substância pela qual acontece a geração é a mesma pela qual acontece a nutrição: de fato, o leite é como sangue fervido, digerido, não corrompido (Aristóteles). No sangue, que ao vê-lo causa repugnância, é representada a ira de Deus; no leite, porém, que tem sabor agradável e belíssima cor, é representada a misericórdia de Deus. O sangue da ira foi mudado no sangue da misericórdia no seio, isto é, na humanidade de Jesus Cristo. De fato, diz o profeta: “Converteu os relâmpagos em chuva” (Sl 134,7). Os relâmpagos da ira divina foram convertidos em chuva de misericórdia quando o Verbo se fez carne (cf. Jo 1,14).
13. Sentido moral. O eunuco etíope e o centurião Cornélio são figura dos pecadores convertidos. Cornélio interpreta-se “que compreende a circuncisão”. Com razão, Cornélio e o eunuco são associados: de fato, os penitentes tornam-se eunucos pelo Reino dos Céus (cf. Mt 19,12), quer dizer, circuncidam-se, eliminam de si mesmos os desejos carnais e, crendo no nome de Jesus Cristo, lavam-se na fonte viva da compunção e se renovam com o batismo da penitência.
Fazem, pois, como os elefantes, dos quais fala Solino: Antes dos dez anos, as femeas ignoram o sexo, e os machos, antes dos quinze. Por um biênio, mantêm relações não mais do que cinco dias por ano, e não retornam entre os companheiros do bando sem antes lavar-se em águas de nascentes. Assim os penitentes e os justos, se caíram em algum pecado, envergonham-se de entrar para o número dos fiéis se antes não se purificaram nas águas puras das lágrimas e da penitência.
Oremos, pois, irmãos caríssimos, e supliquemos a misericórdia de Jesus Cristo, para que venha e se ponha em nosso meio, conceda-nos a paz, liberte-nos dos pecados, estirpe de nosso coração toda a dúvida e imprima em nossa alma a fé na sua paixão e ressurreição, para que com os apóstolos e com os fiéis da Igreja possamos conseguir a vida eterna. No-lo conceda aquele que é bendito, digno de louvor e glorioso pelos séculos eternos.
E toda alma fiel responda: Amém. Aleluia.
Excerto de: SANTO ANTÔNIO; Sermões, Vozes, 2019, pp. 194-205.
Deixe um comentário