Constantino de Menezes Cardoso
1937
(Palestras proferida ao microfone da Rádio Renascença, numa sessão Jocista, a 6 de julho de 1937).
MEUS SENHORES
Espero que tenhais compreendido as ínfimas proporções em que me é dado tratar, ao microfone, assunto de tamanha magnitude.
Mas se a vida de hoje nos oferece um ritmo de vertigem, se as atenções, solicitadas por mil encantos e cuidados, se mostram incapazes dum grande esforço, se entrámos, francamente, na era dos números e das imagens, como processo único de impressionar as multidões, não podemos nem nos devemos declarar impotentes para tratar os grande problemas.
Há simplesmente que conformar às novas condições de vida os processos de actuação.
Há que expôr as grandes ideias, em simples es-bôco, a traços bem vivos que as esteriotipem na memória das gentes, confiando em que tudo fique, depois, a plena luz, no espírito de cada um, mercê daquela reflexão espontânea que se segue às grandes impressões.
E quando, como no caso presente, houver que contar com deficiências de forma, nem por isso será legítimo o desânimo, porque o milagre será operado pela grandeza das concepções.
Posição do problema
O pensamento do corporativismo medieval e a política social de Salazar foi o título dado à esta palestra.
O facto de ser pronunciada ao microfone da Rádio Renascença e numa hora de emissão jocista, importa entendê-lo assim:
O pensamento do corporativismo medieval, a política social de Salazar e a posição do movimento operário católico em Portugal.
E assim há que ver:
a) – o que é o movimento operário católico;
b) – quais os fundamentos dos seus processos de actuação; se filiados numa atitude oportunista da Igreja, se inspirados nos princípios económico-sociais da filosofia escolásfica;
c) – qual a política social de Salazar:
d) – se há razão para que a atitude da classe operária, em face do Estado português, seja de apoio e colaboração.
O que é o movimento
operário católico
As condições da vida moderna, obrigando os homens, ante a crescente dificuldade de existência, a tirar as últimas consequências do individualismo político-económico, foram-nos colocando, frente a frente, em atitudes de irredutibilidade e obrigando os mais fracos a agruparem-se, por identidade de interesses, buscando nessa colaboração a fôrça de que careciam.
A realidade da existência de classes sociais passou da verdade das construções teóricas da sociologia para a verdade da vida e foi testemunhada pelos juristas que lhes deram estatutos, pelos governos que tiveram que tomar em consideração as suas reclamações, pela força pública que teve de reprimir os seus distúrbios.
Por parte das classes dominantes apareceu a resolução de anular, pela força, semelhantes resis-tências; por parte das classes dominadas a de subver-ter, por modo truculento e catastrófico, a sociedade contemporânea.
Proclamou-se a revolução social e, sem rebuço, se pôs de lado um ideal de justiça para todos, para se arvorar a bandeira do ódio, tomando-se, como método, o atentado e, como fim, a inversão da posição, de hoje, das classes sociais.
A revolução, disse-se, não era ascese. E sem lógica – como é próprio das atitudes focadas de paixão – pretendeu-se uma ditadura do proletariado, em nome da extinção de classes privilegiadas, a obrigatoriedade da concepção materialista da vida, em nome da liberdade de consciência e, finalmente, a destruição de todo o património material e moral da humanidade, em nome do progresso.
É nesta maré alta de truculências que a Igreja, guarda milenária da civilização cristã, arauto da justiça e fonte de vida, estigmatiza uma e outra das hostes em luta e indica o caminho a seguir.
Nasce o movimento
operário católico
1) que repudia a luta de classes porque descrê do crime e da indignidade como processo de alcançar justiça, que aliás pretende para todos: que acarinha o património moral e material acumulado pelos séculos; que aceita os ensinamentos da história, a hierarquia dos valores, o bem e o mal com definição objectiva; a moral e o dever, o conceito da cooperação social, a limitação dos interesses de uns pelos legítimos interesses dos outros, a subordinação do interesse individual ao interesse colectivo, numa palavra – o Estado, no domínio temporal e, como fim último, Deus;
2) mas que também não aceita a organização social presente, porque reclama para todos um mínimo suficiente de existência, um lar com condições de despreocupação, de alegria e confôrto, elementos de valorização pessoal, com efectiva possibilidade de acesso a todas as posições sociais, assistência e previdência convenientes, reconhecimento de igual dignidade para todas as ocupações – numa palavra – Justiça.
São vastas as suas reclamações, é decidida a resolução de as alcançar; são outros os seus processos.
Considerando todos os valores morais, a honra, a dignidade própria e alheia, a essência e fins sobrenaturais da vida do homem, os seus processos são de doutrinação tendente a enquadrar êsses mesmos valores morais e os valores materiais que os servem, nas suas funções próprias, do que resultará o total equilíbrio da vida social.
Quais os fundamentos de tal pensamento e de tais processos de actuação?
A atitude da Igreja é milenária e a
sua verdade está comprovada pela
experiência dos séculos.
Como se não bastasse o poema da sua fundação, a Igreja teve nos séculos da sua maior influência a prova da verdade da sua doutrina para defesa dos humildes.
A paz social, nos séculos XII a XV, é toda informada do ideal cristão.
Organizou-se a vida social sem perder de vista as realidades da vida familiar, profissional e local e sobre elas se estabeleceram os lacos da solidariedade humana e se construíram os fundamentos das Pátrias.
Pelo ideal cristão se sustentaram as nacionalidades e se adoçaram os costumes feudais e bárbaros; pelo ideal cristão se enfrentou a realeza, em defesa da vida dos escravos e da sua libertação, e se condenou a ociosidade, impondo-se a todos o trabalho material ou intelectual, mercê do qual os mosteiros se tornaram focos de civilização e guardas da cultura antiga; pelo ideal cristão se evitou a contínua actividade guerreira, com a “Paz de Deus” as “Tréguas de Deus” e se transformou a vigília de armas, de exclusiva preparação bélica, em fundamento duma vida de cavalheirismo; pelo ideal cristão se fez uma considerável obra de assistência com a fundação de inúmeros hospitais e socorro a po-bres, por milhares; pelo ideal cristão, sobretudo, se regularam as condições do trabalho e as relações entre patrões e operários.
São ricos de justiça social os estatutos das corporações, regulando a aprendizagem, o acesso à mestria, aberto a toda a gente, a proibição do trabalho nouturno, as condições da rescisão dos contratos de trabalho, com penalidades para patrões ou operários que a êles faltassem, e até a seriedade da produção, proibindo, em certas obras, o emprego de materiais que induzissem a erro o comprador.
Chegaram até nós algumas decisões de arbitragem em que se estabelecem multas para o caso de se conservarem operários a trabalhar depois das horas habituais.
E é de vêr que tudo isto é fruto da formação crista da sociedade. E tanto que no século XV, depois de esboçado o movimento neo-pagão do renascimento clássico, perde a estrutura da sociedade medieval os seus traços mais característicos, o deslumbramento dos bens materiais aguça os apetites. cria as cubiças e os egoísmos, esboçam-se conflitos entre as classes sociais que sentem interesses opostos, dificulta-se aos operários o acesso à mestria, criam-se as castas, perdem as corporações a sua feição, desviam-se todos e tudo das suas funções, perde a humanidade o seu rumo.
A revolução de 1789 não é o início do festim demo-liberal. Rasga, simplesmente, os abismos em que a sociedade há muito se despenhara, pela hipertrofia dos erros passados e pela ilação das suas últimas consequências, ao quebrar inteiramente os já abalados vínculos sociais – derradeiras reminiscências das comunas e corporações.
Mas porque a excelência da organização corporativa medieval não é obra do acaso, já se disse que fruto do ideal cristão – é de ver o seu corpo de doutrina, qual o pensamento que a orientou.
S. Tomás d’Aquino, Henrique de Langenstein, Santo Antonino de Florença e S. Bernardino de Sena são obreiros egrégios dessa formidável construção de justiça social.
E porque alguns dos seus escritos são raros, é justo dizer-se – e com isso rejubilarão os Açores – que muito se deve, para o seu estudo, ao esclarecido espírito de investigação do Dr. Manuel Rocha, inteligência cintilante, escritor vigoroso, orador de raras qualidades, alma de apóstolo, obreiro incansável e prestigioso da renovação social, que muito honra a sua terra e prestigia a Igreja.
Nesta parte da palestra largamente nos socorreremos do seu belo livro “Trabalho e Salário atravez da escolástica” (Paris 1933).
O pensamento tomista
Para S. Tomás é lícito e sagrado o contrato de trabalho cuja natureza é quási a do de aluguer e é quási, porque não pode identificar-se o aluguer duma coisa material ao duma faculdade humana.
Além disso, no pagamento do salário, deve ser rigorosa a pontualidade, mais do que no aluguer duma coisa material, porque quem a possue è de supor que tenha outros meios de subsistência.
Daqui se infere, além de que o diz expressamente S. Tomás – que o salário deve bastar para a sustentação do operário – nisso reside a sua justiça e o seu fim natural – como retribuição do trabalho, obrigação tão grave como a da conservação da vida e à qual ninguém Se pode eximir – e mais – que deve bastar também à sustentação da família, segundo a sua condição.
Para S. Tomás há hierarquia de valores e portanto desigualdade de salário, mas, em todo o caso, o suficiente para viver, correspondendo, quando não haja mais valia, ao mínimo que se espera dum trabalhador da sua categoria.
Está enunciada, ao dealbar do séc. XIII, a teoria do salário mínimo e familiar.
Henrique de Langenstein
Viveu no século XIV, foi professor da Universidade de Paris, fundador da de Viena e publicista de raro valor.
De todas as suas obras, a mais rara e de maior interesse, sob o ponto de vista social, é “De confratribus et origine censum”, cujo estudo e exegese constituem algumas das mais substanciosas páginas da obra do Dr. Manuel Rocha.
Para Langenstein, ninguém pode eximir-se ao jugo do trabalho, fruto penoso do pecado original. Ao homem só é dado melhorar a sua situação pela vida em sociedade, que oferece diversas actividades, consoante as aptidões de cada um. Daqui a hierarquia de valores e a necessidade da troca, benéfica até por permitir o exercício da caridade e na qual deve haver justiça, sob pena de se transformar num contrato de usura, fruto do sonho antigo da ociosidade.
Destes princípios tira Langenstein conclusões preciosas:
Deixar a fixação dos preços ao livre arbítrio das partes é entregar o governo do país à ambição e à cubiça, crime contra a justiça social, por permitir a uma oligarquia de comerciantes enriquecer-se mercê da usura, falsificações e fraudes, em prejuízo dos pobres trabalhadores.
Impõe-se, portanto, a intervenção do Estado na vida económica.
No entanto, essa intervenção também não é arbitrária. O direito positivo é conforme ao direito natural e a própria autoridade do Estado é limitada por normas de moral.
A sua intervenção na vida económica tem, assim, de realizar a justiça e a equidade, de forma a que todos possam viver do seu trabalho, segundo a sua condição E bem o princípio do salário mínimo.
E qual o critério da intervenção do Estado?
O de conseguir que haja equivalência entre o valor das coisas trocadas ou entre o da coisa vendida e o do seu preço, valor de difícil mas de possivel determinação, ao menos em razoáveis limites, auscultando as condições do mercado, as imposições da oferta e da procura, a necessidade – não individual –isso equivaleria a agravar os preços ao comprador mais pobre – mas colectiva, e tendo o cuidado de distinguir as causas reais das causas artificiais da raridade dos produtos,
Ao Estado compete pois actuar, promovendo ou contrariando as necessidades, segundo a sua moralidade e utilidade, tornando mais ou menos intensiva a produção, removendo as causas reais e fazendo desaparecer as causas artificiais de perturbação, de modo a modificar as condições do mercado e a poder estabelecer uma conveniente fixação de preços, sem o fazer, como medida isolada e de nenhum resultado.
É impressionante tão perfeita visão da vida económica e das condições da intervenção por parte dos poderes públicos.
Com idêntico critério trata Langenstein o problema dos salários, em cuja fixação entende também dever intervir o Estado.
De forma que o montante do salário será o equivalente ao valor que o trabalho faz acrescer à coisa que entrou no mercado, tendo em atenção as considerações expostas quanto aos preços e, em qualquer caso, sempre correspondente às necessidades do trabalhador para viver, segundo a sua condição.
O trabalho é modo de ganhar a vida e não pode portanto deixar de corresponder, por exigua remuneração, à sua finalidade. E não só o salário deve corresponder ao mínimo de sustentação individual do trabalhador, como também ao da sua família, o que se infere do conceito de Langenstein da “realidade indivisível da concepção de estado” e da sua classificação do trabalho em moral ou imoral consoante se destina a satisfazer as necessidades pessoais ou doutros e a acautelar despesas necessárias de fácil previsão ou a conseguir condições de vida de ociosidade.
Santo Antonino de Florença
Neste autor encontramos o mesmo conceito de justiça do preço, em função do valor resultante da utilidade, da raridade e do agrado da coisa e do acréscimo industrial do trabalho.
Como para Langenstein, o valor específico da coisa depende de circunstâncias variáveis no tempo e no espaço, mas é susceptível de determinar-se.
O preço deve pagar o trabalho e as despesas necessárias à fabricação da mercadoria.
O comércio só é parasitário e constitui roubo se não há nem trabalho nem dispêndio.
E como determinar o valor do trabalho?
Diz Santo Antonino: atendendo a dois elementos: ao seu valor, diligência e natureza e ao que seja necessário para que o trabalhador viva e possa fazer viver os seus.
É sem dúvida o enunciado dos princípios do salário mínimo e familiar.
Daqui se conclui a obrigação da religiosa pontualidade e seriedade no pagamento do salário.
E o ilustre Bispo de Florença, fundado em tais princípios, estigmatiza as fraudes correntes de se referem os salários empregando o seu montante em contratos de usura, de se fazerem os pagamentos por intermediários que cobravam comissão à custa dos trabalhadores e de se fazerem os pagamentos em géneros, atribuindo-lhes valor superior ao venal, processo só legítimo quando, ao estabelecer-se o salário, se tivesse levado em conta semelhante possibilidade.
No entanto, ao mesmo tempo que assim defende os interesses da classe operária, Santo Antonino impõe-lhe o dever de respeitar e defender o património e legítimos interesses da classe patronal e, a uma e outra, como condição primária de justiça social, a morigeração e cristianização de costumes.
São Bernardino de Sena
Também para S. Bernardino, a ociosidade é proibida e o trabalho único meio de ganhar a vida.
A sua moralidade está portanto ligada ao fim a que se destina, sendo imoral o que, com mira no enriquecimento, “destroe o corpo, estiola as faculdades e avilta a alma”.
Pelo contrário, o trabalho deve ser moderado e seguido de descanso e distrações honestas.
Assim se deve fazer e, com maioria de razão, assim se deve impor aos outros.
Comete falta grave o que obriga os seus operários a trabalhar demasiado.
Correspondendo ao seu fim natural, deve ser o equivalente ao salário que baste às necessidades do operário e da sua família.
Sempre, como vêem, o enunciado do princípio do salário mínimo e familiar.
A todas as atividades S. Bernardino marca, como limites da legitimidade de lucros, os da sustentação própria e da família.
O preço das coisas, como para Santo Antonino, está em função do valor resultante da sua utili-dade, raridade e agrado e do acréscimo industrial do trabalho, mas também não lhe é indiferente a avaliação comum, conseguida pela exclusão de divergências individuais, só possíveis quando filhas de interesses ilegítimos ou de causas artificiais de perturbação do mercado.
É ilegítimo o lucro do comerciante que não dispende trabalho nem presta utilidade ao consumidor e é-o também o conseguido à custa duma instante necessidade individual do comprador. A necessidade que pode influir no preço das mercadorias é simplesmente a necessidade colectiva. De contrário, cairíamos na injustiça de se agravarem os preços, em função da pobreza dos compradores.
Em resumo: justiça nos preços e justiça nos salários, que devem corresponder à estimação comum do trabalho e bastar à sustentação própria e familiar do operário, segundo a sua condição.
Cada um, conforme as suas aptidões, presta serviços de diferente utilidade social e daí a diversidade de remunerações e de condições de vida, desigualdade que não destrói, antes realiza a igualdade na justiça.
MEUS SENHORES
Passadas assim em revista as doutrinas dos mais ilustres pensadores do corporativismo medieval, que conseguiu, por largos anos, a paz e a justiça social, o que faz supôr que por bom caminho segue o operariado católico, vejamos agora
A política social de Salazar
Ao pretendermos estudar o pensamento político dum homem, temos de fazê-lo através dos seus discursos e dos seus escritos e, se esse homem foi, tem sido e é governo, temos ainda uma outra e mais segura fonte: as leis que subscreveu.
Não há já motivos de dúvida sobre se é capaz de realizar o seu programa político, nem são já possíveis hipóteses sobre as ideias que dominam a sua acção. Além disso, são conhecidos os seus processos.
Ora, precisamente porque se trata dum homem de governo, a primeira questão que naturalmento se oferece à nossa atenção é a de saber qual o seu pensamento sobre o conteúdo e exercício do Poder.
Para Salazar, o Poder não se conquista à maneira antiga e, se bem entendo as suas palavras, nem chega mesmo a conquistar-se, por actos intencionais da vontade. Merece-se simplesmente o seu exercício, pelas qualidades que se possui e pelo uso que delas se faz.
O Poder não se procura, nem mesmo se deseja. Aceita-se e exerce-se, como qualquer outra função pública, a bem da Nação e sem arbitrariedades.
No seu prefácio às notáveis entrevistas de António Ferro, diz o Chefe do Governo, como que em auto-biografia: “Aquele que considera o Poder mais como dever de consciência que como direito a usufruir pela força da conquista”… E esclarece, no seu discurso de 5 de Julho de 1932. “O Poder de que o Governo usa vem-lhe de direito e de facto do Sr. Presidente da República”, e “… enquanto o Governo tiver a confiança do Sr. Presidente da República, os homens que o constituem, sem terem procurado o mando, também o não deixarão cair das mãos. É pesado êste encargo, mas não o consideramos como fardo a largar na primeira encruzilhada, mas como dever sério a cumprir até ao fim” é esse Poder é pertença do Estado, organização política da Nação portuguesa a quem incumbe realizar todo o bem social (art.º 6.º da Constituição), por intermédio dos seus órgãos (art.º 17.º), e é o exercício duma soberania que só reconhece, mas reconhece, como limites (art.º 4.º) “na ordem interna, a moral e o direito, e na internacional os que derivem das convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito consuetudinário livremente aceito, cumprindo-lhe cooperar com os outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da humanidade”.
Daqui resulta que temos em Portugal um Govêrno
- a) – que reconhece a Nação como detentora da soberania, isto é, como agregado social que dispõe livremente do seu destino.
- b) – que, no entanto, sem abstrações, recebe o poder, de direito e de facto, do Chefe do Estado e
- c) – que o exerce para bem de todos e – é essa a sua maior glória – limitado na ordem interna e internacional
- – por normas de moral por normas de direito
- – pela realidade das Pátrias
- – pelo respeito pelos legítimos direitos de cada uma delas
- – e por tudo que interesse à paz e ao progresso da humanidade.
Vejamos agora que atividades, disciplina e que interesses coordena o Estado, na ordem interna.
Os do indivíduo? Certamente, mas os do indivíduo, tomado na realidade indivisível da concepção de Estado, como diria Henrique de Langenstein.
“A reorganização constitucional do Estado – disse o Chefe do Governo no seu discurso de 21 de Outubro de 1929 – tem de basear-se em nacionalismo sólido, prudente, conciliador, que trate de assegurar a coexistência e actividade regular de todos os elementos naturais, tradicionais e progressivos da sociedade. Entre eles devemos especializar a família, a corporação moral e económica, a freguesia e o município. As garantias políticas destes factores primários parece-me a mim que devem ter a sua consagração na Constituição Portuguesa”.
E tiveram-na.
De maneira que cada um dos portugueses, ao exercer os direitos que lhe são conferidos na Constituição, fá-lo como membro do agregado familiar, paroquial ou municipal, porque a família (art.º 11) é “fonte de conservação e desenvolvimento da raça”, “base primária da educação, da disciplina e harmonia social” e “fundamento de tôda a ordem política pela sua agregação e representação na freguesia e no município” e fá-lo, como membro das corporações morais ou económicas e de associações ou organizações sindicais cuja formação compete ao Estado promover (art.º 14) para, por meio delas, conseguir a colaboração conveniente de todos os elementos da coletividade.
Isto é – o homem há-de realizar o seu fim natural de conservação e desenvolvimento da raça através da família legítima, base da harmonia social e fundamento da ordem política, e nisso não pode ser contrariado por falta de meios materiais que lhe serão garantidos pela organização corporativa da Nação.
O homem na realidade indivisível da concepção de Estado.
Seria muito, seria tudo até. Mas nós podemos ainda ver e vamos ver como o Estado intervém na vida económica e como coordena os elementos da produção.
Na base da política económica do Chefe do Governo está, como garante da justiça dos preços e salários, a estabilização da moeda.
E é nestas condições que o Estado, dispondo de elementos que assegurem a sèriedade e honradez dos contratos, intervém na vida económica, coordenando, não concorrendo. Deixa livre as iniciativas privadas e só intervém para que “nenhum interêsse individual ou local prevaleça sobre o interêsse da colectividade, para que nenhuma obra necessária dependa de pressões políticas ou de fins eleitorais” e por modo a que “nenhuma disposição favoreça, por favorecer, um grupo limitado de interesses”, como diz Salazar ou, como diria Langenstein, sobre certo aspecto da vida social, de molde a que nenhuma oligarquia enriqueça à custa dos pobres trabalhadores.
E que a riqueza, para o Chefe do Governo, como para os pensadores do corporativismo medieval, tem um fim próprio e único: “sustentar com dignidade a vida humana”.
E para que sirva esse fim superior há que promovê-la, regulando e fomentando a produção, mas atendendo à seriação das necessidades humanas.
Nunca abandoná-la às tendências viciosas da humanidade – diz Salazar a 16 de Março de 1933 – que levam aos consumos artificiais, à criação de necessidades fictícias, daí resultando que ainda não há o indispensável e já há sobreprodução.
E pergunta o Chefe do Governo: “Vêde se há maior absurdo do que trabalhar para morrer e ser fim da vida económica aniquilar a vida humana”.
Ora, há que intervir no sentido de obstar a semelhantes êrros, em ordem a suprimir todos os parasitarismos e a regular as condições do mercado, eliminando as causas fictícias de perturbação e adotando medidas de defesa contra as crises, protecionismos inconvenientes, etc.
Pelo que respeita ao fomento da produção há que promover a colaboração dos seus diversos ele-mentos. Há que lutar contra o erro de supor opostos os interesses desses elementos, critério que levou ao falso fim das agremiações operárias ou patronais “fim de luta contra alguém ou contra alguma coisa”.
E assente que o trabalho é obrigatório para todos – “o homem que não trabalha lesa todos os demais” – e que é única fonte de riqueza, há que organizar a economia nacional – diz Salazar – “de modo a terem trabalho todos os trabalhadores e há que regular e organizar o trabalho por forma que o salário permita ao trabalhador viver”.
E o Estado Português lança-se na organização corporativa da Nação para que dela resulte (art.º 29 da Constituição) poderio para o Estado e justiça entre todos os cidadãos, visando (art.º 34) a que os elementos da economia “não tendam a estabelecer entre si concorrência desregrada e contrária aos iustos objectivos da sociedade e deles próprios, mas a colaborarem mutuamente como membros da mesma colectividade”.
Garante-se (decreto 23.048) acesso de tôdas as classes aos benefícios da civilização, liberdade de trabalho e escolha de profissão; marcam-se fins de paz e justiça a todas as atividades; diz-se ilegítimo o interêsse conseguido em prejuízo doutros interesses legítimos; insiste-se na cooperação; consagra-se, para os contratos, o princípio da livre aceitação; consigna-se a obrigação de promover a elevação da vida das classes mais desprotegidas; estabeleceu-se os princípios do salário mínimo e familiar e as férias pagas – ao trabalho devem seguir-se descanso e distracções honestas, diria S. Bernardino de Sena – e declara-se que todos os direitos e deveres de patrões e operários serão assegurados e impostos por contratos colectivos de trabalho, celebrados pelos sindicatos nacionais e pelos grémios.
Organizam-se as classes e agrupam-se essas organizações, até integrá-las na Corporação única, imagem viva das corporações medievais, emprestando à vida de patrões e operários afecto familiar.
Não é já possível, dados os moldes da economia moderna, sentá-los à mesma mesa, abrigá-los no mesmo tecto, mas é possível fazer com que da Corporação, em que estão em absoluta cooperação, irradie para tôdas as atividades esse espírito de colaboração, de paz e de justiça que outrora informou as suas relações.
*
* *
¿E as casas do povo, e as casas dos pescadores, e as casas económicas e as caixas sindicais, assegurando assistência e realizando previdência, a lembrarem-nos as confrarias medievais?
MEUS SENHORES
Quanto, com especial competência, se poderia mais dizer, quanto eu próprio poderia ainda acrescentar ?
Mas não se tratava – nem eu a tanto me abalançaria – de estudar a figura gigantesca de Salazar, talvez a maior da política contemporânea.
Pretendeu-se apenas fixar, em meia dúzia de traços, o paralelismo da política social do Estado Português e do pensamento do corporativismo medieval, paralelismo que umas vezes se indicou ex. pressamente e muitas outras se deixou à vossa reflexão, para que agora se pudesse preguntar como pergunto:
A face dos princípios estudados, e comprovada a seriedade com que já se realizou, em parte, e se vai realizando uma larga política de revolução social. não é lógico que a atitude do operariado de Portugal, em face do Estado, seja de apoio e cooperação?
Operários portugueses
Nesta nova luta de reconquista da Pátria, Cristo e avante!
(Tenho dito).
CONSTANTINO DE MENEZES CARDOSO; O Pensamento do Corporativismo Medieval e a Política Social de Salazar, Edições Jocistas, Lisboa, 1937.
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