Monsenhor Charles Journet
1959
O Espírito de Deus movia-se sobre as águas (Gn 1, 2) Pagãos como Celso e Juliano, o Apóstata, lançavam em face dos cristãos a grosseria do relato da criação. Vê-se ali Deus criar o céu e a terra. Céu é o firmamento onde estão as estrelas. Nada se diz da criação dos seres de natureza espiritual, dos anjos. Como responder a essa questão dos pagãos? Exegetas dirão que a Bíblia é uma história da humanidade, mais precisamente uma história da eleição de Israel. Tudo ali aparece em função desse grande tema. O universo, com o sol e a lua, é o lugar de habitação do homem, o sítio onde ele está colocado; a inteligência tentadora da Serpente explica a queda, a força do Querubim guarda o paraíso terrestre, mas é ao homem que é feita a promessa da Redenção. Essa resposta dos exegetas é verdadeira. No entanto, pode-se dar à questão colocada pelos pagãos uma resposta em profundidade, muito mais misteriosa. Dir-se-á que, ao narrar-nos a criação do mundo visível, do mundo material, a Bíblia quis propor de imediato à nossa inteligência, da maneira mais contrastante possível, mais brutal possível, o problema do ser criado. A existência do ser criado é como que um escândalo para a nossa inteligência. É como que um à parte de Deus, e não há à parte de Deus, apêndice de Deus. É como um exterior a Deus, e não há exterior a Deus. É algo que não é Deus, que de início não era, que uma vez tenha aparecido durará para sempre, permanecerá para sempre distinto de Deus, e que, no entanto, não pode ser senão em Deus. Em se tratando do ser espiritual, o escândalo fica como que atenuado. O ser espiritual é aparentado ao Espírito. É permeável pelo Espírito. Compreende-se melhor ele esteja no Espírito, em Deus; que ele não esteja fora de Deus. Mas o ser material é pesado, opaco. Parece por natureza impermeável ao Espírito. É fechado e encerrado, está prisioneiro de um lugar no espaço; enquanto que o Espírito é livre, ignora todos os limites de lugar. Dizer que Deus criou um mundo material é dizer que Ele criou diretamente aquilo que Lhe é mais estranho, mais contrário, mais oposto. A Bíblia dirige sem demora a nossa atenção para isso. Ela não tenta nos fazer passar por uma série infinita de degradações, de Deus aos espíritos, a seguir aos arquétipos das coisas, depois às coisas visíveis mesmas. É desse jeito que procederia um filósofo. A Bíblia faz contrastarem diretamente o Espírito infinito e a matéria. Ela põe o problema do ser criado, da coexistência do ser criado na presença do Ser incriado, naquilo que tem de mais paradoxal, de mais chocante, de mais escandaloso. Ela faz mesmo questão de deixar transparecer um carinho do Espírito pela matéria: “O Espírito de Deus movia-se sobre as águas”. Como é possível que Deus e o mundo coexistam?Se Deus é tudo, nada há fora d’Ele; então, onde encontrar espaço para o mundo? Se digo, pelo contrário, que o mundo existe, há algo que não é Deus; aí então, Deus não é tudo, o que equivale a dizer que Deus não é Deus. Eis aí o escândalo da coexistência entre Deus e o mundo. Todos os homens percebem-no, ao menos obscuramente. A inteligência não pode viver na presença de um escândalo. É preciso que ela tente reduzi-lo, reabsorvê-lo. Os homens inventaram, para isso, três tipos de respostas. Uma é o ateísmo. Não há nada além do mundo, do mundo material. Deus é pura ilusão. Há que admitir o mundo tal como ele é, de olhos fechados. Não se deve colocar questões de saber se é possível que o ser limitado, que o ser material tenha chegado por si só à existência, ou se é possível que uma vez posto na existência ele possa, por mais imperfeito que seja, subsistir por si só, sem depender de nada. Metafisicamente, é preciso virar cego; aí então, o ateísmo é uma solução. Moralmente, sucede um curioso fenômeno. O homem, sendo criatura, é feito para adorar; e, quanto mais humano, mais profundamente tem necessidade de adorar. Se ele se cega a respeito de Deus, lhe é necessário adorar ao mundo, ou a si mesmo, ou a mitos, qualquer coisa, enfim, que não seja Deus, e isso é causa de todas as catástrofes. O ateísmo não é a primeira “solução” em que o homem tenha pensado. Em estado esporádico, ele é sem dúvida de todos os tempos. Mas em estado de corrente coletiva, de mito cultural, é recentíssimo. A Índia, povo de metafísicos, cogitara buscar a solução numa direção inteiramente contrária. A última resposta de Shankara é que é um erro crer na dualidade de mundo e Deus. Mas é o mundo, e principalmente a matéria, que é sonhado, ilusão, maya. Mais exatamente, mas só para o sábio, o mundo acaba não sendo mais nem sequer um sonho, uma ilusão; ele se dissipa. Nada mais resta que Brahma, o Absoluto. Nem por um instante o pensamento vedantino sequer cogita duvidar de Deus, mas não cessa jamais de duvidar do mundo. Sua tentação nunca é o ateísmo, ela é constantemente o acosmismo.
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Qual é a verdade? Deus existe? Sim! O mundo existe? Sim! São distintos um do outro? Sim! Logo, dividem o ser entre si?; logo há concorrência entre eles? Não! É justamente esse o erro, o pior erro! Para dar um verdadeiro lugar ao mundo, é loucura querer suprimir Deus, ou diminuir Deus, ou tirar do ser de Deus. E, para dar todo o lugar a Deus, seria outro tipo de delírio querer suprimir o mundo, considerá-lo como um sonho, uma alucinação: nós sabemos muito bem que o mundo é real, que o nosso sofrimento é real, que os nossos lutos são reais, que eles dilaceram realmente o nosso coração, que o sangue dos homens ensanguenta uma terra real. Toda a verdade cristã é justamente descobrir que Deus é demasiado diferente do mundo para que o mundo possa entrar em concorrência com Ele. Deus é, o mundo ;é: mas eles não são de igual maneira; eles são, pelo contrário, de maneira essencialmente diferente. O significado da palavra ser, ao passar do mundo para Deus, ou de Deus para o mundo, fica inteiramente transposta. É preciso dizer: o ser do mundo está para o finito assim como o ser de Deus está para o infinito. É preciso dizer, é preciso pensar, sobretudo, com o IV Concílio do Latrão, “que do Criador à criatura, a semelhança nunca chega a ser tal, que a dissemelhança não seja ainda maior” [1. Denz., nº. 432.]. O Ser de Deus é um abismo, uma vertigem para o pensamento; é justamente por isso que Ele não entra em concorrência com o ser do mundo. Todos os outros seres, que estão no patamar do finito, dividem o ser entre eles, um tendo isto, outro aquilo; eles se limitam mutuamente, entram em concorrência uns com os outros. Mas o Ser de Deus é Abismo: justamente não está no patamar do finito, justamente não sofre concorrência dos outros seres. Procura-se um exemplo? Mas não há nenhum! Deus, precisamente, é um caso único! Não há, quando muito, senão imagens. Eis aqui uma, ela é bem pobre. O som não é incomodado pela luz, ele não precisa eliminar a luz para ocupar todo o lugar, ele penetra a luz, ele a torna inteiramente sonora. Assim Deus, para ocupar todo o lugar, não tem necessidade de eliminar o mundo: o ser do mundo é completamente incapaz de incomodá-Lo; o Ser de Deus embebe o ser do mundo, penetra-o; cria-o, sustenta-o, conserva-o, move-o; tange no coração mesmo do mundo como o som no coração das luzes, sem que Sua total liberdade, sem que Sua total pureza seja afetada em nada por ele. Que o mundo seja ou não seja, Deus não é perturbado em nada, mudado em nada, em nada acrescido nem diminuído; mas se o mundo é, é em Deus que ele será, viverá, mover-se-á; e, no coração mesmo do mundo, para que ele possa ser, viver e mover-se, será preciso que Deus esteja escondido.
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Caso cessemos por um instante de formar ideia tão sublime e tão vertiginosa do Ser de Deus, caso deixemos um instante de concebê-Lo como essencialmente diferente do ser finito, o que acontecerá? Imediatamente o Ser de Deus cairá ao nível em que Ele encontrará o ser finito, em que Ele entrará em competição com o ser finito. Eis que eles serão rivais, dividirão entre si e disputarão um com o outro o âmbito do ser; o que a um for dado, do outro será tirado, e reciprocamente. Aí então, fica-se enredado nas dificuldades que nós assinalamos. Ou defendemos o ser do mundo; e, dado que Deus pretende tudo invadir, vamos muito simplesmente negar Deus: é o ateísmo. Ou então defendemos Deus, damos todo o ser a Deus, e vemos o mundo esvanecer como um sonho: é o acosmismo. Ou ainda, por fim, procuramos dar a parte de Deus e a parte do mundo. Colocamos ponta com ponta o ser de Deus e o ser do mundo, a fim de recompor o ser total. Há maneiras grosseiras de o fazer e outras que são mais sutis. Há o panteísmo de Spinoza ou Schelling ou Hegel, em que o mundo aparece como um enriquecimento, um desenvolvimento, uma atualização de Deus. Há o dualismo grego, em que o Demiurgo e a matéria se defrontam desde sempre. Há a tese de Ramanuja, em que Deus cria o mundo, que não Lhe contribui nada, que não é senão como que um espelho no qual Ele Se reflete (e isso é exato); mas Deus está obrigado a criar esse espelho: se não o criasse, n’Ele haveria algo de inactuado, um vazio, uma carência (e isso é inexato). Mas um Deus que não é todo o ser, um Deus que possa aumentar, Se atualizar, talvez seja um deus, não é Deus. Uma vez que se tenha aceito de partilhar o âmbito do ser entre Deus e o mundo, de dar a parte de Deus e a do mundo, não restam logicamente senão duas saídas, todas duas absurdas: o ateísmo, ou o acosmismo. A questão que deve ser colocada aqui — é uma questão de princípio, uma questão que orienta ou desvia todo o pensamento — é a seguinte: Deus + mundo = mais do que Deus só? Ou então, Deus sozinho não é mais nem menos do que Deus + o mundo? Se eu não tiver compreendido o mistério único do Ser de Deus, se em meu pensamento rebaixei o Ser de Deus ao plano do ser finito, aí então serei levado necessariamente a adicionar o Ser de Deus e o ser finito, como se somam duas quantidades. Um milímetro + um quilômetro, isso resulta em mais do que um quilômetro só. Deus + o mundo, isso resulta em mais do que Deus só. Mas, se entrevi o mistério do Ser de Deus, sei que Ele é qualitativamente diferente do ser finito; que Ele, com relação ao ser finito, não está no mesmo plano, não é unívoco, mas de um outro plano, somente análogo ou proporcional — aí então, é-me impossível somá-los. Somar o róseo ao vermelho não é torná-lo mais vermelho; somar a ciência do aluno à do mestre não é torná-la mais intensa: ao final de uma lição, há deveras numa sala de aula mais “cientes”, não, porém, mais ciência, maior intensidade de ciência. Deus mais o mundo é igual a mais seres, mas não é iguala mais Ser. Tudo está aí. Porventura Deus é, para vocês, um ídolo, um ser maior e mais belo, lado a lado de seres menores e mais débeis? Ou Ele é para vocês o único Adorável, o Abismo insondável onde o pensamento de vocês não dá pé, afunda e se afoga? O altitudo divitiarum et sapientiae et scientiae Dei!
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Tocamos aqui num primeiro e maravilhoso paradoxo. É porque Deus é assim vertiginosamente diferente do mundo, que por isso o Ser d’Ele não pode ser somado ao ser do mundo, nem entrar de maneira alguma em concorrência, em competição, em rivalidade com o ser do mundo. Então, Deus pode ocupar exatamente o mesmo lugar que o mundo ocupa, sem de modo algum eliminar o mundo. Noutras palavras, é porque Deus é tão diferente do mundo, tão distinto do mundo, tão distante do mundo, que Ele pode ser tão maravilhosamente próximo do mundo, tão íntimo ao mundo, tão interior/em> ao mundo. É porque Deus está tão fora do mundo, que Ele pode estar tão dentro do mundo. É porque Ele é absolutamente transcendente ao mundo, que Ele pode ser absolutamente imanente ao mundo.
É uma grande vaidade, é uma grande loucura dar a escolher entre um Deus transcendente ao mundo ou um Deus imanente ao mundo. A transcendência e a imanência são as duas faces de um único mistério, o da coexistência do Ser infinito no ser finito, e também, da Ação infinita na ação finita. Quando se entreviu esse mistério, vê-se que é preciso tudo escolher de uma vez: transcendência e imanência. Quem separa a transcendência da imanência, para escolher uma ou outra, não apreendeu nem o que é uma nem o que é a outra. Não divisou ainda que é necessário elevar-se bem alto acima da superfície de um lago, para ver a sua profundidade. Quanto mais uma coisa é superficial, mais ela age na superfície das outras coisas; e, quanto mais uma coisa tem valor, mais age em profundidade nas outras coisas. Há pessoas cuja conversação, cuja presença mesma cansa; há pessoas cuja conversa, cujo próprio silêncio alimenta. É a mesma coisa com livros. Um jornal, uma revista, enfadam; a leitura de Antígona ou Ifigênia, ou de algumas estrofes da Divina Comédia, apazigua. Comparada à Ação de Deus, a ação dos homens é sempre superficial. Mesmos os maiores dentre os homens, aquele que esculpiu a vitória alada da Samotrácia ou o que construiu a cúpula de Santa Maria del Fiore, agem somente na superfície das coisas: eles dão à pedra o ser assim ou assado, não lhe dão o ser pedra; principalmente, não lhe dão o ser. Nós podemos modificar as coisas, dar a elas o serem estas ou aquelas; não lhes podemos dar o ser pura e simplesmente. Estamos perto demais delas, somos semelhantes demais a elas. Nós somos incapazes de aniquilar ou de criar a menor parcela de ser. Nada mais fazemos do que transformar as coisas. Nesse sentido, a nossa ação passeia pela superfície das coisas. Mas Deus eleva-Se por sobre as coisas. A profundeza dasSuas riquezas é infinita. O altitudo, ou seja, o profunditas, divitiarum Dei. Ele pode tocar o que há de mais profundo nas criaturas, Ele dá a elas o serem, o existirem. Não estivesse Ele assim secretamente, maravilhosamente presente, por Sua ação, no coração do mundo, no coração deste grão de areia, para lhe dar o seu ser de base, este fundo último pelo qual ele é, o mundo, este grão de areia, recairia imediatamente, não digamos no lixo, seria ainda dizer muito, digamos: no nada. A conservação dos seres é uma criação continuada. Esse pensamento de Santo Tomás significa que a mesma virtude todo-poderosa, que foi necessária para fazer o mundo emergir para fora do nada, é sem cessar exigida para sustentá-lo acima do nada. Um só instante de esquecimento em Deus, uma única distração em Deus e, ato contínuo, o universo desabaria no nada. Prodigiosa presença de Deus pela Sua ação no coração mesmo da coisa mais ínfima. Mas a Ação de Deus é Deus. O Agir de Deus, realmente, é idêntico ao Existir de Deus. Eis então que o Existir de Deus, simples, indivisível, está todo inteiro no mundo, todo inteiro está num grão de areia. Não como aprisionado neles! Ele está neles como deles transbordando por todos os lados, como não atingido por eles, como não embaciado por eles, como soando através deles com infinita liberdade, infinita sutileza, infinita transcendência. Deus está inteiramente no mundo, Ele está por inteiro neste grão de areia, não como neles contido, mas como contendo-os, mantendo-os unidos (con-tinere), como o bem mais interior deles, a força de concentração mais íntima deles, à qual devem eles tudo o que são, sem a qual eles se dissipariam imediatamente no nada. Ele está neles, sem dúvida que não como idêntico a eles ou como imerso neles, mas como Causa infinitamente perfeita de efeitos infinitamente imperfeitos; infinitamente distinta deles e, ao mesmo tempo, a eles interior; a Sua transcendência é inimaginável, e também a Sua imanência. Chardon disse bem essas coisas:
“Esta presença de Deus incessantemente tira a criatura do nada, acima do qual a Sua onipotência mantém-na suspensa, de medo que, pelo próprio peso dela, a criatura não recaia no nada. E ao mesmo tempo que, por uma efusão contínua, ela lhe é causa do ser, da vida e da operação — não por uma virtude que se afaste de seu princípio, mas sempre unida ao seu manancial —, ela lhe serve como de cimento, de meio de ligação para que tudo o que ela recebe do Criador não se dissipe e não derrame como água que não é contida no canal, e para que o universo não perca a harmonia deslumbrante e essa excelente relação que constitui uma beleza — na ordem das obras da Providência — digna da sabedoria de seu Operário.” [2. La Croix de Jésus, p. 388.]
Como deve ser chamada esta presença de Deus no coração do mundo? Os teólogos se utilizam de uma palavra técnica. Eles dizem que é uma presença de imensidade. As coisas são todas mensuradas; elas têm medidas quantitativas, e uma não está onde a outra está; elas têm principalmente medidas qualitativas: e uma não é o que a outra é, o som não é cor nem perfume. É porque elas dividem entre si o ser no interior dos limites delas que elas entram em concorrência, em oposição umas com as outras. É porque elas são limitadas que elas não podem coexistir, permanecendo sempre alheias umas às outras. Mas, justamente, Deus não é limitado, Ele é sem medidas, o que significa literalmente imenso. Ele é sem medidas comuns com as coisas, e é por isso que Ele não entra em concorrência com elas, Ele as envolve todas, permeia a todas. Como se vê, é necessário atribuir à palavra imenso, ou ao termo presença de imensidade, um sentido técnico. Senão, nos extraviaremos. Santo Agostinho narra como ele próprio se enganou por muito tempo, querendo encontrar Deus em imagens e não sabendo ainda que Ele não se encontra senão em uma noite que está acima das imagens. “E a Vós também, ó meu Deus, Vida da minha vida, eu Vos imaginava como um ser imenso, penetrando por toda parte, através dos espaços infinitos, toda a massa do universo e, para além do universo, alastrando-Vos sem limites pelo infinito, de maneira que a terra, o céu e todas as coisas Vos contivessem, encontrando em Vós o limite delas enquanto que Vós não o encontraríeis em parte alguma… Mas eu estava no erro. Pois se assim fosse, uma parte maior da terra teria contido uma parte maior de Vós… o corpo de um elefante teria encerrado mais de Vós do que o corpo de um passarinho” [3. Confissões, livro 7, cap. 1, nº. 2.]. Com efeito, como escreverá Chardon, Deus está por toda parte “não por partes, como poderíamos imaginar um corpo imenso, que se estendesse por todos os espaços… Ele está por toda parte de tal maneira que Ele não possui maior bondade e maior beleza, não tem maior liberdade e maior poder, mais alegrias e mais perfeições no mundo todo junto do que no menor grãozinho de areia ou na mais mínima gota d’água do mar, ou ainda no mais leve e ínfimo átomo de ar. Ele aplica tanto ser, presença, potência e sabedoria às partes indivisíveis do espaço quanto a todo o espaço do inteiro universo. Ele está por toda parte e em cada parte desse todo, por toda parte Ele mesmo, indivisivelmente. O mundo não o abarca em sua capacidade, é antes Ele quem envolve o mundo com Sua imensidade”. [4. Chardon, La Croix de Jésus, p. 387.] Poderíamos falar de uma presença de causalidade, mas sem nos esquecer de que Deus é Causa com uma profundidade absolutamente única, que não pertence a nenhuma das causas que nós conhecemos. Falemos, se se quiser, de uma presença de criação, de uma presença de conservação ou de criação contínua.
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Detenhamo-nos por um momento num aspecto do paradoxo da presença de Deus nas coisas: Deus está nelas e Deus não está nelas. Ele está infinitamente mais nelas do que pensamos, e Ele está infinitamente menos nelas do que pensamos. E isto não contradiz aquilo. O paradoxo da presença de criação é ela poder ser, a uma só vez, presença infinita e ausência infinita. Deus está infinitamente mais nas coisas do que pensamos. Quer isto dizer que é necessário nada menos do que a presença de Deus inteiro, que ultrapassa infinitamente este grãozinho de areia, para este grãozinho de areia poder existir. Toda a eficiência indivisível de Deus está empenhada na criação de um grão de areia. De maneira que todas as coisas traem o seu Deus, entregam o seu Deus. Cada coisa contém o seu Deus, ou melhor, descobre o Deus que a contém. Causalmente, Deus está presente nas coisas com a Sua infinitude, Ele está infinitamente presente nas coisas. Ele está nelas como a base que as sustenta. O ser que elas possuem pertence mais a Deus do que a elas; ele está em Deus como em Fonte, ele está nelas como em derivação. O sublime âmago das coisas é Deus. Há que dizer com Chardon:
“Deus no céu é mais meu céu do que o céu mesmo; no sol, Ele é mais minha luz do que o sol; no ar, Ele é mais meu ar do que este que respiro sensivelmente… Sua presença, por Sua imensidade, serve-me de mundo, de céu, de espaço, de lugar e de todas as coisas; Ele opera em mim tudo que sou, que vivo, que posso, que ajo, como intimíssimo, presentíssimo, inexistentíssimo em mim, como o autor supra-essencial e primeiro das minhas obras, sem o Qual nos dissiparíamos nós e as nossas operações. Mas então — exclama Chardon — onde estão os nossos olhos, os nossos pensamentos, os nossos amores que se refletem incessantemente naquilo que há de menos principal em nós e dentro do resto do universo, sem ali contemplar, adorar e amar Àquele que é plenitude de ser e abundância soberana de suficiência em todas as coisas!” [5. La Croix de Jésus, pp. 389-390.]
E Deus está infinitamente menos nas coisas do que nós pensamos. Quer dizer isto que as coisas sendo finitas, e Deus infinito, as coisas são infinitamente incapazes de contê-Lo. As mais belas dentre elas são, com relação a Ele, infinitamente pobres, miseráveis. Em comparação com Deus, todas as coisas são infinitamente frustrantes. Todas fazem sofrer infinitamente àquele que deseja Deus infinitamente. A medida do sofrimento que nos vem da criatura é a medida de nosso desejo do Criador. Falta uma infinidade para Deus poder coincidir com as coisas. Considerando-se a diferença de naturezas, formalmente, Deus é infinitamente ausente das coisas. Era este o sofrimento de São João da Cruz:
Ah! Quem poderá curar-me?
Acaba de entregar-Te deveras;
Não queiras enviar-me
Mais nenhum mensageiro, que eles não sabem dizer-me o que quero.
[6. Cântico Espiritual, estrofe 6.]
Deus infinitamente presente nas coisas; Deus infinitamente ausente das coisas. Será preciso passar constantemente desta [ausência] àquela[presença], e daquela a esta: é a dialética do cristão, mesmo do cristão ordinário, do cristão da rua, do poeta que conta a história de nossos pobres corações exilados em meio às criaturas:
Se o mundo não falasse tanto de Vós, o meu enfado não seria tal. Se a voz delas não fosse tão tocante, se não falassem tão bem de outra coisa, As criaturas não seriam um problema para nós, e estaríamos em paz com a vida. [7. [Claudel,] A missa lá embaixo.] Como é que Deus, tão diferente das coisas, pode sofrer as coisas ao lado d’Ele? Não é que elas estejam, claro está, ao lado d’Ele como um lugar onde Ele não estaria, como um claustro onde o próprio Ser d’Ele não pudesse entrar. (Essa é a maneira de pensar, assaz… surpreendente, do filósofo romando Charles Secretan!) Ao lado d’Ele, isso quer dizer que verdadeiramente as coisas também existem; que elas coexistem: por Ele, com Ele, n’Ele.
Será que Deus não vai varrê-las como o furacão varre as nuvens? Será que a opacidade delas não vai irritá-Lo? Será que que Ele não vai incendiá-las com o sol de Seu Ser pulverizá-las, dissipá-las, dissolvê-las? Não! Eis que Deus, pelo contrário, suporta o mundo; eis que Ele detém-Se diante do mundo, diante do grãozinho de areia, como que tomado de respeito; eis que, em presença da fragilidade das criaturas, Ele parece refrear Sua onipotência e Sua exigência infinita de perfeição. Um místico judeu [8] escreveu: “O Santo — bendito seja Ele — contraiu a Sua glória, a fim de que os mundos pudessem suportá-la!”. É essa espécie de contração de Deus, de recolhimento de Deus, de contenção de Deus, de cortesia de Deus, para tudo dizer numa palavra: de carinho de Deus, tendo como finalidade permitir que a criatura subsista na frente d’Ele, que os místicos hassidim chamavam de tzim-tzum, o recolhimento. Eles tinham compreendido [9] que o primeiro brado da criatura a Deus é para se escusar de aparecer diante d’Ele, é para estremecer por existir, por coexistir. A primeira palavra que ela deve dizer é a de Pedro na barca:“Afasta-Te de mim, Senhor… pois eu sou homem pecador!” (Lc 5,8).
[8. N. do T. – Trata-se do “Rabbi Dov Beer (aprox. 1780), o mais profundo místico dentre os hassidim” (Ch. Journet, Connaissance et Inconnaissance de Dieu, 1943; na recente edição de 1996 pelas Éditions Saint-Augustin, cit. à p. 28). Mons. Journet cita-o a partir da obra que parece ser a mais profunda sobre o tema, a do Rev. Pe. Pierre-Jean de Menasce, Quand Israël aime Dieu [Quando Israel ama a Deus], Paris, 1931, p. 124; incidentalmente, esse doutíssimo sacerdote católico, converso do judaísmo, parece também o melhor especialista em questões de dualismo iraniano: que coisa curiosa ter-se preferido tanto em nossos meios a obra — por mais erudita e incontornável que de resto seja — do protestante mas deizante Henry Corbin!]
[9. N. do T. – Na página 27 de sua obra citada na nota anterior, Mons. Journet é um pouco mais recolhido do que na conferência que estamos traduzindo e, mantendo embora essa interpretação extremamente cortês da mística judaica, emprega todavia o mais contido verbo “entrever”:
« Se se quiser transformar em verdade o pensamento de Charles Secretan segundo o qual Deus, ao criar, Se limita, seria preciso azê-lo significar o mistério do inefável carinho e cortesia [A palavra está em Juliana de Norwich, Revelações do Amor Divino (na trad. fr. de Dom G. Meunier, Paris, 1925, p. 337).] de um Deus que, longe de aniquilar a criatura ao tocá-la, não cessa de sustentá-la e de conservá-la na existência. É o mistério que cabalistas e mais tarde hassidim entreviram e chamaram de o tzim-tzum, ou seja, a contração, o recolhimento. “Nos cabalistas essa palavra designa o ato de Deus cedendo ao mundo, por Ele criado, parte de Seu Lugar. Não se trata de uma imagem espacial, como se o ser, totalmente preenchido por Deus, não pudesse admitir o mundo senão às custas de Deus; sentido grosseiro que nem sempre é evitado pelos que tratam da Cabala. Em sentido lógico e primeiro, a noção de tzim-tzum é introduzida para exprimir o mistério, não da criatura como estando noutra parte que não em Deus, mas do ato criador como fazendo proceder de Deus — e de Deus somente — alguma coisa que é outra que não Deus. Esse outro não é alheio a Deus: seria isto limitar a onipotência d’Ele; nem tampouco ele é necessário a Deus: seria isto limitar a liberdade d’Ele” [P.-J. de Menasce, Quand Israël aime Dieu, Paris, 1931, p. 115.]…“Ao criar o mundo, Deus lhe dá, ao mesmo tempo, o meio de O conhecer, Ele Se torna de certo modo acessível ao mundo. Movimento de expansão, de expressão: tudo o que há no mundo é uma dilatação e uma expressão de Deus, que sai para fora d’Ele mesmo. Mas também [movimento] de contração, de recolhimento, porque Deus, para tornar-Se cognoscível pela criatura, sujeita-Se a um modo e a uma ordem de conhecimento necessariamente inferior ao Seu modo próprio de ser e de conhecer, ou seja, a Ele mesmo. Por isso, paralelamente às imagens que exprimem a dilatação, a saída, a criação, o cabalismo mantém a metáfora da contração, da diminuição (os modernos diriam: da adaptação) de Deus ao mundo” [Ibid., p. 117].» (Ch. Journet, Connaissance et Inconnaissance de Dieu, 1943; na recente edição de 1996, pelas Éd. Saint Augustin, cit. à p. 27-28; cf. p. 29:“O autor [De Menasce] salientou aliás, reiteradamente, os inconvenientes que resultam, tanto para esta doutrina em particular [do tzim-tzum] como para a vida religiosa e mística dos judeus em geral, da falta de um magistério eclesiástico [Por exemplo, pp. 19, 28, 40, 52, 53, 97.].”)]
Mas o Senhor não Se afasta! Desde toda a eternidade, Ele não Se afastará. Ele criou o universo não para aniquilá-lo, mas para que ele exista. E mesmo para que ele exista desabrochado para sempre, desfraldado para sempre. A imagem hindu é enganosa, que representa Deus como eternamente ocupado em expirar para fora d’Ele, depois em aspirar de volta a Ele, um mundo que repassaria assim eternamente do estado explícito para o estado implícito, do estado de eclosão para o estado de germe, do estado de vigília para o estado de sonho. Deus criou o universo uma vez por todas e para todo o sempre. Ele criou a matéria para sempre. Isso, nós somente, os cristãos, nós ousamos afirmá-lo, nós sabemos, com fé divina, que os corpos ressuscitarão, que eternamente os homens serão homens e não anjos; nós sabemos, com fé divina, que eternamente Jesus será o Verbo que Se fez carne. Então, veja-se este paradoxo. Eis um Deus infinito que cria, para tê-lo sempre como companhia, o finito. Bem mais ainda: esse Deus sendo infinito, sem limite de essência, só pode ser Espírito. E eis que Ele cria, para tê-lo eternamente como companhia, aquilo que há de mais finito, de mais limitado, ou seja, o ser da matéria: pois, além dos seus limites de criatura, a matéria está aprisionada em limites de espaço e em limites de tempo. Eis, então, um Deus infinito que cria o que há de mais finito, de mais distante, de mais distinto d’Ele; um Deus que é Espírito puro, Transparência pura, e que cria o que há de mais opaco, de mais dissemelhante a Ele: a tal ponto, que Descartes não acreditava que se pudesse concluir, do ser dos corpos, para o ser de Deus. Por que isso? Por que, senão por Ele querer manifestar as profundezas da Sua condescendência; por Ele querer que saibamos o quanto Ele é capaz de Se rebaixar, fazendo coexistir com Ele a mais humilde criatura. Deus Espírito, criando o que há de menos Ele, a matéria, e suportando-a eternamente “ao lado” d’Ele, envolvendo-a eternamente com a Sua bondade, mimando-a eternamente com o Seu carinho [10] — tal é o sentido da primeira revelação do Gênesis: “O Espírito de Deus movia-se sobre as águas”.
Trad. por Felipe Coelho; de Cardeal Charles JOURNET [1891-1975], Entretiens sur Dieu le Père (Saint-Maur, Éditions Parole et Silence, 1998.
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