Padre Hervé Belmont
2006
Acordo entre o Vaticano e a Fraternidade São Pio X?
O microcosmo “tradi” está em polvorosa, em efervescência mesmo: circulam aqui e ali rumores, notícias, informações mais ou menos fiáveis, segundo as quais estariam sendo preparados acordos entre o Vaticano e a fraternidade São Pio X. A crer nas notícias que correm, as excomunhões seriam levantadas, depois a fraternidade seria reconhecida à semelhança do que foi feito com a diocese de Campos (uma espécie de diocese desmaterializada). A contrapartida seria o arrependimento do cisma, a adesão sincera ao Vaticano II e o reconhecimento da legitimidade da reforma litúrgica dele emanada.
Acerca desse caso, não tenho nem informação inédita, nem fonte especial de notícias, nem espírito profético. Meu intento reduz-se a apresentar alguns pontos de referência salientando uma evidência. Esta evidência é a de uma ausência. Não se faz caso algum da doutrina católica em tudo isto; ela é relegada, em maior ou menor medida, ao nível de acessório.
Contudo, na Santa Igreja, nada é bom, nada é fecundo, nada é duradouro senão aquilo se assenta sobre bases doutrinais: enraizamento na fé católica, integridade do testemunho da fé, arcabouço teológico, patrimônio da tradição. No caso, a doutrina deveria ser preeminente por duas razões:
— para começar, porque a fraternidade São Pio X foi fundada para se opor à devastadora torrente da heresia, do equívoco, da protestantização dos ritos litúrgicos; é sua razão de ser, se ela verga, para nada mais serve além de desaparecer;
— depois, porque não é suficiente opor-se ao erro; é preciso também que essa oposição não se apoie noutros erros, não encontre sua justificativa em teorias também elas condenadas pela Igreja.
Não é preciso ser um gênio para prever que, se tal ausência doutrinal perdurar, toda essa barafunda está votada ao fracasso. Não, talvez, ao fracasso das negociações – isso, eu ignoro –, mas, certamente, ao fracasso do restabelecimento da ordem das coisas.
A consideração da doutrina católica leva, portanto, a uma dupla interrogação:
— quais são os erros conciliares aos quais é preciso opor-se de toda a alma, sem a menor chance de abandonar o combate?
— como se opor a esses erros sem comprometer outros pontos da doutrina católica?
Quanto à primeira questão, eis alguns pontos de referência. O novus ordo missæ de Paulo VI “se afasta de maneira impressionante, como um todo e também nos seus detalhes, da teologia católica da Santa Missa, tal como esta foi formulada na 22.ª sessão do Concílio de Trento” (Carta a Paulo VI dos cardeais Ottaviani e Bacci, 3 de setembro de 1969). Esse novo ordo apresenta todas as características de uma “missa de Lutero”: preponderância da palavra, supressão do ofertório (substituído por uma ação de graças judaica), modificação das palavras da consagração (transformada em narrativa histórica) e dessacralização geral que é uma diminuição-negação da fé na presença real.
Portanto, não é uma coabitação o que é preciso demandar, não é a presença simultânea de dois ritos: é a supressão total de um rito profundamente protestante e o restabelecimento do rito católico com todas as suas prerrogativas.
Essa certeza dos sacramentos exige simultaneamente que o novo rito de ordenações e consagrações seja abandonado, e que se examine seriamente o que convém fazer para eliminar toda a dúvida acerca da autenticidade dos sacerdotes e dos bispos (e dos confirmados).
A doutrina nos diz também que o pretenso direito à liberdade religiosa é uma infâmia, uma maneira de apostasia. Foi condenado pelos Papas Pio VII, Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII; opõe-se à Realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo; é contrário à justa noção de sociedade política.
Logo, não é uma interpretação, uma releitura à luz da tradição (como se isso pudesse resolver uma contradição!) que cumpre demandar: mas uma condenação proporcional à gravidade do caso e à solenidade de sua proclamação no Vaticano II.
A doutrina nos diz também que o Vaticano II ensina uma falsa concepção da Encarnação de Nosso Senhor: concepção segundo a qual pela só encarnação Jesus Cristo uniu-se a todos os homens. Eis o que remove a necessidade da Redenção, eis o que está na origem de uma falsa concepção da Igreja e da loucura do ecumenismo galopante que dissolve o que resta da fé católica.
Não se pode resolver uma tal dissonância com a doutrina católica por preterição: é preciso denunciar e condenar essas falsas doutrinas que esvaziam a Igreja de sua substância e de sua necessidade.
A doutrina católica nos diz também que, desde o Vaticano II (incluso), não se dirige mais ao povo judeu um olhar fundado na fé católica, um olhar que reconheça a conduta providencial do mundo. Não se quer mais enxergar nele o povo reprovado “que carrega o livro para que os cristãos creiam” [Santo Agostinho], um povo cuja sobrevivência quase milagrosa em vista de sua conversão no fim dos tempos é um grande sinal apologético. Esse novo olhar é falso; é, além disso, cruel com os judeus de carne e osso que não são mais chamados à conversão e ao batismo: eles aí encontrariam a salvação, seriam arrancados da maldição que pesa sobre eles, reencontrariam sua antiga vocação perdida: servir ao Deus de seus pais na Igreja Católica fora da qual não há salvação.
A ausência dos fundamentos doutrinais do combate católico passa muito nitidamente a sensação de que o combate mudou de objetivo e perdeu sua alma: ali onde se tratava anteriormente de defender a fé católica contra as novidades que a corrompem – dogmáticas, litúrgicas, teológicas ou canônicas –, agora se trata de regularizar uma situação. Outrora, se arrebentava com a heresia; agora, procura-se um lugar ao sol.
Claro, não há dúvida de que esse lugar ao sol é procurado com a intenção de expulsar assim a heresia, com a esperança de que a verdade triunfará pelo simples fato de que ela terá direito de cidadania… mas, desde o episódio de Pilatos dando a escolher entre Jesus e Barrabás, se sabe quanto valem tais esperanças.
O futuro dirá se essa impressão de que se está rumando para uma rendição em campo aberto é verdadeira, ou se é induzida por aparências enganosas. Mas o mal-estar é grande.
Esse mal-estar provém também de outro fator, que se junta à segunda interrogação assinalada mais acima.
Há décadas que se afirma: Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI são os verdadeiros papas da Igreja Católica. E depois se explica que é preciso não exagerar o alcance do poder pontifício, que os Papas não são infalíveis jamais (ou tão raramente), que não se está obrigado a obedecer-lhes, que eles não são os senhores da jurisdição eclesiástica etc.
Chega um dia em que essas incoerências voam em estilhaços, em que se sente que estas novidades não são mais católicas do que aquelas recusadas e combatidas. Mas, entrementes, a inteligência da fé foi destroçada, laminada, desorganizada nos sacerdotes e nos fiéis.
Que ninguém se espante, assim, com a fraqueza da resistência diante da sedução de Bento XVI. Este último, sem nada ceder, sem renegar um iota do Vaticano II, sem desautorizar uma única rubrica da reforma litúrgica, assemelha-se a um grande carniceiro (seja dito com todo o respeito) que vai engolir de uma só vez todos os desnorteados. E estes ainda ficarão contentes por fazer-se devorar.
Em tempo de crise, ainda menos do que em qualquer outro tempo, não se pode prescindir da doutrina católica: unicamente a fidelidade exata, o estudo sério e a meditação cotidiana podem salvar a inteligência do marasmo no qual se vê afundarem passo a passo os “tradis” que estão prontos a abandonar aquilo pelo que corajosamente combateram – durante muito tempo, para alguns.
Esperamos que em caso de rendição sejam numerosos os que reagirão: eles verão ao mesmo tempo a necessidade de retornar aos princípios provados da teologia católica, verão o quanto foi deplorável sacrificar uma parte da santa doutrina para tentar salvar uma outra. Não se divide a verdade – e a fé menos ainda.
DIMINUIÇÃO = NEGAÇÃO
Falando da reforma litúrgica, afirmei acima que a dessacralização do rito da Missa equivale a uma negação da fé. Eis um ponto que cumpre explicar e ressaltar.
É muito importante levar em conta o ser histórico da Igreja, o fato de que a Igreja militante vive no tempo; e que há, portanto, uma ordem, uma sucessão nos atos e nos ensinamentos.
Assim, diz-se que aquilo que um Papa fez, outro pode desfazer: isso é verdade em tudo aquilo que é reformável por natureza (jejum eucarístico, número de cardeais, regras litúrgicas etc.), mas não quanto àquilo que é irreformável. Um Papa não pode des-canonizar um santo nem des-definir um dogma: a anterioridade dos atos de seus predecessores o liga.
Portanto, a consideração da anterioridade ou da posterioridade reveste grande importância. Apliquemos isso a três exemplos, dentre os quais os dois primeiros concernem diretamente ao ponto levantado.
Primeiro exemplo. O famoso subsistit in. Vindo após a afirmação solene de Pio XII (e de São Paulo) de que há identidade perfeita – est – entre a Igreja Católica e o Corpo Místico de Jesus Cristo, o Vaticano II afirma que a Igreja de Jesus Cristo subsiste na Igreja Católica como numa sociedade organizada – o que não exclui que ela possa subsistir alhures sob forma menos organizada, ou mesmo sem organização específica. Passou-se, pois, da afirmação de uma identidade à afirmação de uma inclusão, o que é uma notável regressão na significação, o que tem verdadeiro valor de negação.
Essa alegação é, aliás, corroborada a montante pelo fato de a expressão ser obra de um pastor protestante (*), que a soprou ao cardeal Frings por intermédio do teólogo particular deste, um certo padre Ratzinger; a jusante também, pelas teorias dos círculos de pertença e da comunhão imperfeita que se considera justificar todas as práticas sacrílegas de intercomunhão e tutti quanti.
[(*) Le Sel de la Terre, n.º 49, verão de 2004, p. 40. Carta do pastor Wilhelm Schmidt ao pe. Matthias Gaudron, 3 de agosto de 2000: “Eu era então pastor da igreja da Santa Cruz em Bremen-Horn e, durante a terceira e quarta sessões, observador no Concílio como representante da Fraternidade Evangélica Michaël, a convite do cardeal Bea. Propus por escrito a formulação subsistit in àquele que era então o conselheiro teológico do cardeal Frings: Joseph Ratzinger, que então a transmitiu ao cardeal.”]
Segundo exemplo. A reforma litúrgica não tem simplesmente uma significação por aquilo que ela afirma; ela também tem uma significação por ser feita para substituir a liturgia anterior. E, como a regressão é estrondosa, essa substituição tem valor de negação.
Assim, o ofertório sacrifical é substituído por uma prece de ação de graças judaica; assim, as palavras da consagração são substituídas por aquelas que Lutero escolhera; assim os sinais de adoração e o caráter sagrado são fortemente atenuados. Volto a isto no texto posto após este.
Terceiro exemplo. Quando Dignitatis Humanæ ensina que a liberdade religiosa (o direito à liberdade civil em matéria religiosa) está fundada na revelação divina, essa declaração conciliar dirige-se a almas que, em razão da Quanta Cura e do ensinamento e prática seculares da Igreja, creem com fé que dita liberdade religiosa é contrária à Revelação divina.
Poder-se-ia então ficar tentado a dizer: o que é que prova, então, que não é a Dignitatis Humanæ que tem razão, e a Quanta Cura que está errada? O que prova isso é a anterioridade, vitalmente integrada ao ato de fé.
A fé teologal proíbe a quem crê (o qual adere tranquilamente à Quanta Cura) de pôr em questão a sua fé. E, portanto, com a chegada da Dignitatis Humanæ, há tão somente três soluções possíveis: ausência de contradição, ausência da necessidade de aderir, ausência da autoridade.
Assim, após ter verificado que há realmente contradição segundo o sentido óbvio dos textos, após ter constatado que Dignitatis Humanæ impera uma adesão de fé, o crente deve necessariamente recusar sua adesão ao texto de Dignitatis Humanæ e à autoridade que o ensina.
Cumpre não se esquecer de levar isto em conta: na terra, a Igreja vive no tempo; é essencial ao seu caráter de Igreja militante.
ACERCA DO NOVO ORDO DE PAULO VI
1. O ofertório do novus ordo missæ é uma prece de ação de graças judaica. Eis como se regozija com ela um partidário-perito da reforma e adversário do ofertório tradicional:
“As orações do Ofertório, que se exprimiam vezes demais em termos de oferenda, dificultavam a catequese desse momento da missa e provocavam confusões. Era preciso purificar esse ritual. Isso foi feito. Contudo, para não o empobrecer, foram introduzidas duas orações de tipo bíblico e de inspiração judaica, preces de ação de graças pelos alimentos de que se agradece ao Pai.” [Adrien Nocent, osb, professor no ateneu Santo Anselmo de Roma, La Messe avant et après saint Pie V (A Missa antes e depois de São Pio V), Beauchesne 1977, pp. 72-73]
[N. do T. – No original: « Les prières de l’Offertoire qui s’exprimaient trop souvent en des termes d’offrande rendaient difficile la catéchèse de ce moment de la messe et provoquaient des confusions. Il fallait clarifier ce rituel. On le fit. Cependant, pour ne pas l’appauvrir, on a introduit deux prières de type biblique et d’inspiration juive, prières de bénédiction à propos d’aliments dont on remercie le Père. »]
2. As palavras da consagração. Dentre as diferentes versões do Evangelho, Lutero escolhera aquelas que se referem à última ceia como ato histórico, antes que as que se referem à ação operada hic et nunc sobre o altar. Isso contribui (decisivamente?) em transformar a consagração em narração.
Além disso, Lutero suprimira o inciso mysterium fidei. Essa omissão, qualificada de sacrílega por um decreto do Santo Ofício de 24 de julho de 1958, se encontra na reforma emanada do Vaticano II.
3. O ofertório da Missa católica é sacrificial. Ele é, não o sacrifício de Jesus Cristo (consumado na consagração), mas o nosso: nosso sacrifício (subordinado e a ser completado) pelo qual nós nos imolamos a Jesus Cristo, para que Ele nos una a Seu próprio sacrifício. É esse sacrifício que dá a razão da Missa enquanto acidentalmente distinta da Cruz. Haveria muito o que expor sobre essa realidade que suscitava o ódio de Lutero, e que é apagada pelo novo rito.
Instância. No mencionado novo rito permanece o orate fratres, esta oração bem que afirma o caráter sacrifical e vai de encontro ao luteranismo.
O fato é inegável: o ofertório do novus ordo missæ conservou o orate fratres. Ele permanece, mas como que suspenso no ar, tendo perdido sua significação, pois não pode mais se referir ao sacrifício que é aquele do sacerdote e dos fiéis, o sacrifício pessoal deles, a oferta da pessoa deles a Jesus Cristo.
Retomemos a coisa um pouco mais do alto. João Paulo II escreveu na carta apostólica Sacrosanctum de 4 de dezembro de 1988: “Vinculada à renovação bíblica, ao movimento ecumênico, ao impulso missionário, à investigação eclesiológica, a reforma litúrgica viria a contribuir para a renovação global da Igreja” (§ 4).
Cumpre, pois, procurar na dita “renovação global da Igreja” a razão da mudança do ofertório. Ora, o Vaticano II ensina duas novidades que suprimem todo objeto ao ofertório sacrificial:
— o direito à liberdade religiosa – que de fato proclama uma nova concepção da natureza humana, na qual o principal não é mais a ordenação a Deus (ordenação que é o fundamento do sacrifício), mas a capacidade de agir livremente e sem coação exterior;
— pelo fato da Encarnação, cada homem adquire uma dignidade inefável e está unido a Jesus Cristo. A redenção nada mais é que o testemunho dessa união. Nada mais restará, pois, a resgatar no homem que, sem sacrifício, pode pretender ter comunhão com Deus.
A concepção católica é o oposto disso. O ofertório é um sacrifício subordinado e a ser completado – um sacrifício preparado, diz a oração Veni Sanctificator – no qual fazemos a Jesus Cristo o sacrifício de nós mesmo e de tudo o que constitui a nossa vida, a fim de que Ele nos una a Seu próprio sacrifício, que é o único; no qual a Igreja faz oblação da matéria do sacrifício, significando assim sua união com Jesus Cristo que será consumido na imolação da consagração. Sem ofertório (e a apresentação das oblatas não é um ofertório), não há mais, falando propriamente, participação na Santa Missa, não há mais ação específica da Igreja, não há mais razão de ser de uma renovação hic et nunc do único sacrifício. Só se pode assistir, receber um ensinamento, reanimar a fé e manifestá-la… os protestantes não pretendem coisa diferente.
Trad. por Felipe Coelho.

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