TRÊS RESPOSTAS ILUSTRANDO A DOUTRINA DE SÃO ROBERTO BELARMINO

John S. Daly
2005

I. A atitude correta perante o Papa,
segundo Belarmino

Citou-se há pouco um texto de São Roberto Belarmino, Doutor da Igreja que festejamos ontem:

“Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, da mesma forma é lícito resistir ao Papa que agride as almas ou que perturba a ordem civil, e, a fortiori, ao Papa que tentasse destruir a Igreja.”
(São Roberto Belarmino, De Romano Pontifice, [lib. IV, cap. 29])

Daí foi tirada a conclusão seguinte: “Se é lícito resistir ao Papa… é que, portanto, a pessoa que agrediria a Igreja continuaria sendo Papa. Senão, São Roberto Belarmino não teria utilizado essa expressão.”

Redijo estas poucas palavras com o cotovelo esquerdo repousando sobre o meu exemplar da primeira edição do De Romano Pontifice (1587) de São Roberto Belarmino, cujo texto conheço em detalhe por tê-lo estudado no conjunto e não somente por alguns excertos felizes.

E faço questão de observar o seguinte:

1. Belarmino não fala aqui nem da perda do Pontificado como consequência da heresia, nem do dever de obediência ao Papa. Ele responde a um argumento que pretende que, dado que mesmo um particular pode se defender se o Papa o agride fisicamente, com maioria de razão um rei ou concílio poderia depor o Papa. Sua resposta é que a resistência à agressão não exige autoridade alguma e que, assim, é permitido resistir ao Papa que se torne agressor, por mais grave que seja a agressão, mas que isso não implica em nenhuma autoridade de julgar ou de depor o Papa.

2. O sedevacantismo não pretende que os “papas” do Vaticano II tenham perdido a autoridade por agressão contra a Igreja. (Certas asserções associadas à tese do Padre Guérard de Lauriers poderiam dar essa impressão e seria possível invocar esse texto contra elas, se bem que se poderia responder a isso, facilmente, que Belarmino não admite a hipótese senão para fazer a distinção entre resistência e deposição, e não para reconhecer-lhe a possibilidade.) O sedevacantismo mantém que os “papas” do Vaticano II puseram uma série de atos que um verdadeiro Papa não tem como fazer, e criaram uma Igreja que difere essencialmente da Igreja Católica. A consequência inelutável é que eles não foram verdadeiros Papas. Não se trata nem de resistir nem de depor, mas de distinguir uma entidade de outra que não é igual. Parábola: entrais num restaurante, deixando o cavalo amarrado do lado de fora. Saindo, encontrais um asno em lugar do cavalo. Perguntais onde está o vosso cavalo e vos asseguram de que a besta que vêdes é realmente um cavalo. Não nos deixemos engambelar! Um cavalo é um cavalo e um asno é um asno: e vós também sois um asno se o aceitais.

3. Quanto ao dever de obedecer ao Papa, tanto os escritos quanto a vida de Belarmino são eloquentes, mas haveria que os ler. Belarmino não é nada amigo da ideia da FSSPX de que um católico possa em alguma circunstância, seja qual for, desobedecer habitualmente ao Papa e levar adiante um ministério a despeito dele e das ordens dele.

4. Belarmino é formal e tranchante sobre o fato de que um Papa tornando-se manifestamente herético seria, por esse fato mesmo, sem nenhuma intervenção eclesiástica, privado do Papado, e que essa perda seria reconhecível pelos fiéis, sem que se tivesse necessidade de jurisdição especial para constatá-la. Ele atribui essa perda à natureza da Igreja, dado que um herege manifesto, por esse fato mesmo, não é mais católico, e não pode ser cabeça daquilo de que ele não é mais membro. Ele diz que essa doutrina é o ensinamento unânime dos Padres. Ele diz que o contrário é desprovido de toda a probabilidade. (De Romano Pontifice, II, 30)

5. É interessante notar que Belarmino é do parecer de que esse princípio desempenhou um papel histórico. A história do Papa São Libério foi bastante baralhada e se esclareceu muito desde o tempo de São Roberto. Mas o que interessa não é o parecer de São Roberto sobre a história, mas sobre a teologia. Ele considerava que Libério não subscrevera à heresia nem condenara Atanásio (isto é exato), mas que, durante o exílio dele, o clero e o povo romano haviam crido, em decorrência das calúnias disseminadas pelo Imperador, que Libério consentira ao semi-arianismo. Em consequência desse fato, no parecer de São Roberto, eles elegeram para si um novo Papa, Félix II, que a Igreja venera como Santo e Pontífice Romano, embora todos os anos de seu Pontificado caiam historicamente dentro do Pontificado de São Libério. Ora, como quer que seja quanto à história, é claríssimo que, para São Roberto, Félix era realmente Papa, e Libério teria, pois, perdido o Papado, não por heresia, mas por ter tido a falsa reputação de ser herege. Não havia que aguardar, nem que resistir, nem que depor, nem que pedir a Libério que se condenasse a si próprio infalivelmente, mas que constatar um fato (aparentemente certo) e agir em consequência. Aí está a doutrina de São Roberto Belarmino ilustrada em ato. [N. do T. – Cf. Apêndice, infra.]

6. São Roberto Belarmino é Doutor da Igreja e desfruta de autoridade especial em tudo o que diz respeito à doutrina do Papado. A Pastor Aeternus do primeiro Concílio do Vaticano canoniza o essencial da doutrina dele. Se certos teólogos não seguiram a doutrina dele sobre o “papa” manifestamente herético, eles não têm, de modo algum, a mesma estatura; é por essa razão que a doutrina belarminiana é communíssima em Teologia e em Direito Canônico.

7. A pretensão de que o texto de Belarmino supracitado refute o sedevacantismo é frequente na FSSPX e foi objeto de refutação magistral pela pena do Padre Cekada:
São Roberto Belarmino condenou o sedevacantismo

Nos cum prole pia + benedicat Virgo Maria.
John DALY

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II. Objeção canônica, seguida de resposta

[OBJEÇÃO:]
Seria interessante desenvolver vosso quarto ponto:

“Belarmino é formal e tranchante sobre o fato de que um Papa tornando-se manifestamente herético seria, por esse fato mesmo, sem nenhuma intervenção eclesiástica, privado do Papado, e que essa perda seria reconhecível pelos fiéis, sem que se tivesse necessidade de jurisdição especial para constatá-la. Ele atribui essa perda à natureza da Igreja, dado que um herege manifesto, por esse fato mesmo, não é mais católico, e não pode ser cabeça daquilo de que ele não é mais membro. Ele diz que essa doutrina é o ensinamento unânime dos Padres. Ele diz que o contrário é desprovido de toda a probabilidade. (De Romano Pontifice, II, 30)”

A argumentação sustentada pelos sedevacantistas apóia-se no fato de que um herege não sendo mais membro da Igreja não pode tornar-se cabeça da Igreja, o que é perfeitamente verdadeiro de um herege (e de um cismático) público; a assertiva é, em contrapartida, errônea para o herege (ou o cismático) oculto, o qual continua fazendo parte do corpo da Igreja e, a esse título, pode ser eleito validamente ao Papado.

A palavra “publicamente” deve ser entendida em sua significação canônica. Pensar que os sedevacantistas espalhados pelo mundo bastem para tornar pública a apostasia é um erro.

Os canonistas dizem-nos que o contexto e a comunidade de referência importam para dizer se um crime é público ou não é: algumas testemunhas poderiam, com efeito, ser suficientes se a comunidade é pequena, ou então se essas poucas pessoas têm a possibilidade e a vontade de tornar público o crime à maior parte da comunidade. A quantidade relativa e a qualidade das testemunhas devem ser levadas em conta. No caso do Papa, a comunidade de referência é o conjunto dos fiéis; vós não ignorais, contudo, que 99% dos fiéis nem mesmo sabe que se reprova em João Paulo II a apostasia.

A objeção que vem ao espírito é que o corpo da Igreja não é mais hoje constituído senão dos tradicionalistas; ora, isso não é aceitável: não se pode imputar moralmente à maior parte dos fiéis o fato de terem seguido seus pastores em suas posições errôneas, sendo pois fora de dúvida que a grande massa dos fiéis batizados continua fazendo parte, sim, do corpo da Igreja, e que é, portanto, a única comunidade de referência contemplável no caso presente.

Para que o cânon 188.4 (Código de 1917: “Em virtude da renúncia tácita admitida ipso jure, ficam vacantes ‘ipso facto’ e sem nenhuma declaração todo e qualquer ofício caso o clérigo: […] 4. Defeccione publicamente da fé católica.”) seja utilizado nesse caso, cumpre, pois, que a maior parte da Igreja:
– tenha conhecimento do ato imputado;
– reconheça esse ato como realmente herético;
– reconheça a imputabilidade desse ato, ou seja, o pleno conhecimento por parte do sujeito.

Cumpre, pois, que o ato seja notório antes de ser declarado público, ou seja, que o ato não deve só ser conhecido, mas sobretudo reconhecido como crime moralmente imputável.

Na prática, uma ação dos cardeais se mostra decisiva: cabe a eles obter certeza e difundir amplamente o ato incriminado do Papa. Após algumas admoestações ao interessado, se ele persiste, os cardeais publicariam uma simples declaração tornando pública a heresia; isso acarretaria a notoriedade de fato, e as condições para a perda ipso facto do Papado seriam preenchidas. Os cardeais se limitariam em seguida a constatar a vacância da Sé. O importante é compreender bem que a declaração dos cardeais não teria força de lei: seria uma simples constatação. Caetano, Suárez e João de S. Tomás fazem explicitamente referência a esse procedimento que permite não julgar o Papa no sentido de ato judiciário tendo força de lei.

Enquanto isso não acontece, qual a situação do Papa? O Direito Canônico mantêm em seu posto as pessoas que se excomungaram a si mesmas por heresia até que a heresia delas seja suficientemente pública. Se assim não fosse, cada vez que um clérigo cometesse em seu coração a heresia, seu ofício ficaria vago e todos os seus atos seriam inválidos, sem que ninguém o soubesse!

[— FIM DA OBJEÇÃO —]

[RESPOSTA DE JSD:]

Caro  Sr.,

Obrigado por vossa postagem, que não tem como deixar de aprazer a quem aprecie a exatidão de expressão, o respeito aos autores aprovados e a inteligência que identifica e exprime com precisão o ponto de divergência.

A propósito, vós apontais o fato de Belarmino não ensinar que a simples heresia é absolutamente incompatível com o Papado, mas somente a heresia manifesta (vós utilizais antes a expressão “pública”: logo voltarei à acribia do vocabulário).

Creio poder responder de maneira satisfatória a vossa objeção à aplicação da tese Belarmino aos João, Paulo e Bento que tais, mas, antes de o fazer, algumas precisões se impõem.

1. Ao falar de Belarmino, eu respondia a um argumento – tornado clássico nos círculos da FSSPX – que pretende que São Roberto Belarmino ensina que um Papa continuaria Papa mesmo se ele demolisse a Igreja de cima abaixo, mas que os católicos não teriam de obedecer a ele nesse caso. Eu quis mostrar que não é nada disso, pondo no contexto essa citação sobre o Papa agressor e confrontando-a com outros textos de Belarmino que esclarecem o pensamento dele. Eu próprio não fiz aplicação, aos “papas” vaticanossegundescos, da doutrina de Belarmino sobre o papa herege. Isso, não por não crê-la aplicável, mas por reconhecer que, para aplicá-la, é mister uma argumentação séria e cerrada, respondendo às objeções que se podem apresentar. Prefiro não empreender um trabalho do que fazê-lo mal. E, no caso, tal não era necessário.

2. Não era necessário, pela razão que dei alhures e pelas razões que outros deram com não menos clareza: a Igreja é infalível em seu ensinamento e em tudo aquilo que manifesta a sua fé, incluindo aí sua lei, sua liturgia, sua pregação, sua tolerância… E a Igreja do Vaticano II apresenta-nos, por intermédio de cada uma dessas maneiras de se exprimir, todo um corpo doutrinário [N. do T. – Cf., do A. (1990), “As principais heresias e outros erros do Vaticano II”] que é impossível de reconciliar com o que a Igreja Católica sempre ensinou até então, através das mesmas maneiras. Os ofícios em comum com as seitas, os sacramentos para certos acatólicos não convertidos, o ecumenismo, a dignidade de “meios de salvação” atribuída às “seitas de perdição”, a colaboração missionária com os hereges, a manutenção em vigor da Antiga Aliança com os judeus cuja atual espera pelo Messias pretende-se “não ser em vão”, a substituição de todos os sete sacramentos, abolição do perigo de morte para receber validamente a extrema-unção, inversão dos fins do matrimônio e prática quase universal da contracepção em consequência disso, as anulações por atacado nas usinas de adultério que substituíram a Rota Romana e cujos certificados são passagens só de ida para o inferno, inferno este que estaria vazio pois Nosso Senhor teria Se unido irrevogavelmente a todos os homens por Sua Encarnação… cumpre deter-se nalgum ponto, mas não é por falta de matéria.

3. Em consequência, esta nov’Igreja, que falhou doutrinalmente da maneira mais hedionda e que se felicita por seu novo pentecostes admirando suas igrejas vazias e a célebre espiritualidade de seus filhos, metade dos quais não sabe mais se Cristo é Deus ou não (e não estão nem aí), essa nov’Igreja, dizia, não é a Igreja Católica, e seus chefes não desfrutam da proteção própria aos Papas, porque eles não são Papas.

4. Depois disso, convém buscar a razão suficiente do não-papado deles. Se nos propuseram várias delas. Eleição prévia do Cardeal Siri, constrangido por ameaças a uma demissão nula de direito; falta da intenção necessária para receber o Papado, de sorte que a aceitação do Pontificado foi tão somente verbal e não real; substituição do verdadeiro eleito por um sósia; doença mental não diagnosticada… Mas, para quem quiser se ater ao que é conforme às doutrinas clássicas da teologia e ao bom senso na avaliação dos dados disponíveis, tudo conduz a escolher a explicação de que o essencial que falta é a profissão pública da Fé Católica. É, no mais, a solução de Dom Castro Mayer e a solução da qual Dom Lefebvre não fazia senão aproximar-se, para dela se afastar, e afastar-se, para dela se aproximar. É, mui certamente, e de longe, a convicção da maioria dos sedevacantistas mundialmente.

5. Pode-se chamar o primeiro argumento de “a posteriori”. Quem faz aquilo que nenhum Papa é capaz de fazer não é Papa; ora, os João, Paulo etc…; logo… E pode-se chamar ao segundo argumento “a priori”. Um Montini ou Wojtyla defendeu publicamente posições doutrinais que ele não tinha como ignorar serem contrárias à Fé; logo…

6. Se, no que segue, defendo o argumento “a priori” contra a vossa objeção, é, sem embargo, no contexto de que para mim é o argumento “a posteriori” o mais fácil, e que depende mais diretamente da Fé, e exige o menos possível à guisa de dados certos de ordem natural e de raciocínios humanos. Não pretendo, de modo algum, que o argumento “a priori” tivesse podido bastar sozinho no caso de os Wojtiniger terem subscrito de modo pessoal às falsas doutrinas deles sem ensiná-las à Igreja e deixando no lugar a lei, a liturgia e os costumes da Igreja Católica. Não digo o contrário, tampouco. Digo somente que não é esta, concretamente, a prova que a Providência enviou-nos. Quando se nos convida a submetermo-nos a Josef Terno-e-Gravatzinger, nosso “non possumus” funda-se na impossibilidade absoluta, que salta aos olhos de quem conhece a IGREJA, de que seja Ela, a nossa Mãe, essa prostituída, e não unicamente em nossa convicção de que o dito Josef não tem intenção real alguma de reconhecer o Magistério católico como sua Regra da Fé.

Isso posto, passemos à vossa objeção: para alguém ser herege manifesto seria preciso, segundo vós, que fossem conhecidos da massa da comunidade tanto o ato incriminado quanto a qualidade intrinsecamente herética desse ato e, por fim, a imputabilidade moral do dito ato.

Vossa análise mostra bom conhecimento do Código de Direito Canônico; vossa real ciência faz-se reconhecer com tanto mais prazer quanto é rara, mesmo nos meios onde tomam-se facilmente por doutores em Israel.

Contudo, permito-me de vos recordar cinco fatos capitais que me parece não levais em conta:

1. Se há parentesco entre os cânones que decretam a perda, ipso facto, de todo o ofício eclesiástico em caso de defecção pública da Fé, e o princípio da perda do Soberano Pontificado em semelhantes circunstâncias, permanece o fato de que este último, no mínimo, não pode de maneira alguma ser questão de simples direito eclesiástico. É a lei divina e imutável expressa na constituição mesma da Igreja. O Direito Canônico nos dá, pois, uma analogia de grande valor, mas que não é limitante.

2. Nesse contexto, São Roberto Belarmino diz realmente “manifeste” [manifestamente], que não é verdadeiramente da linguagem canônica. Em Direito Canônico encontram-se antes “público” e “notório”, que se opõem não somente a “oculto”, mas também ao ato simplesmente externo mas nada mais que externo. Assim, o pároco que confidencia à sua governanta não crer mais na transubstanciação já incorreu na excomunhão (cânon 2314) mas não perdeu ainda o seu ofício (as condições do cânon 188§4 não sendo preenchidas).

3. Isso não obstante, o Direito Canônico contém uma sentença que torna a vossa objeção bem menos clara do que vós a pretendeis. O cânon 2197 define a palavra “publicum” como estendendo-se não somente ao que é de fato conhecido por tal porcentagem de tal comunidade, mas também a tudo aquilo que, ou já é conhecido (“divulgatum”), ou se encontra em circunstâncias tais, que se pode prudentemente julgar que facilmente pode e deve tornar-se conhecido.

4. A explicação do sentido da palavra “manifeste” em Belarmino e todos os autores que compartilham da doutrina dele deve poder reconciliar-se com as aplicações históricas desse princípio: e.g. o caso dos romanos elegendo Félix no lugar de Libério, o caso de Santo Hipácio recusando-se a nomear nos dípticos a Nestório ainda não condenado, o caso de um São Vicente Ferrer subtraindo-se à obediência do Papa que ele acreditava legitimamente eleito quando este recusou renunciar para o bem da Igreja…

5. No que se refere ao caráter público da imputabilidade do ato, vosso argumento não é inteiramente justo. Em matéria de heresia, não é precisamente a culpabilidade moral que interessa, pois “a natureza da heresia consiste no fato de se retirar da regra do Magistério eclesiástico” (Billot, De Ecclesia, p. 290), razão pela qual “A obstinação pode ser presumida quando a verdade revelada tiver sido proposta com bastante clareza e força para convencer um homem razoável” (Dom Charles Augustine, A Commentary on Canon Law, Vol. 8, p. 335).

Munido desses princípios, permito-me tomar um exemplo. São tantos, que tenho a dificuldade de escolher, não é? Pois bem, dentre os numerosos atos dos chefes da Igreja Conciliar que se poderia escolher, tomo a ocasião em que João Paulo II beijou o Corão, “osculo solito” – se bem que não sei se ele beijou a mão do Imã previamente, como quereria Haegy. Esse ato de veneração pública ocorreu a 14 de maio de 1999 – podemos “celebrar” o seu sexto aniversário hoje. E é público, no sentido do cânon 2197.

Ora, todos os teólogos concordam que a heresia ou a apostasia podem exprimir-se por atos e gestos tão bem como por palavras, e isso de maneira a incorrer nas consequências. E particularmente Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, 12, 1 [obj. 2], declara: 

“…determinadas palavras ou certas obras exteriores estão atreladas à infidelidade, enquanto dela são sinal… E se alguém… cultuasse o sepulcro de Maomé, seria considerado apóstata.”
[N.d.E.: Ainda que seja uma objeção que depois será refutada, não deixa de ser a opinião do Doutor Angélico. A refutação tem por fim explicar por que a apostasia é um tipo de infidelidade.]

Ora, não faço a menor ideia de em quê se pode distinguir a veneração do sepulcro de Maomé da veneração pública do Corão. O caráter do livro e da religião que ele encarna é notório:

“…o islamismo não é, em absoluto, simplesmente uma revolução de árabes que se enfadam sob as tendas, e aos quais um líder hábil imprimiu uma superexcitação que os empurra de imediato à conquista das cidades mais luxuosas do Oriente. Não, mas Deus permitiu que prevalecesse por um tempo o antigo inimigo do homem, e permitiu-lhe escolher um órgão com cujo auxílio ele seduzirá os povos, ao mesmo tempo que os subjugará pela espada. Daí Maomé, o homem de Satanás, e o Corão seu evangelho. Ora, qual é o crime que fez assim transbordar a justiça de Deus, e a levou a abandonar seus povos a uma escravidão da qual não se prevê ainda o fim? A heresia é esse crime odioso, que torna inútil a vinda do Filho de Deus a este mundo, que protesta contra o Verbo de Deus, que espezinha o ensinamento infalível da Igreja.
(Dom Guéranger, artigo de 1858 sobre a história naturalista)

João Paulo II certamente não queria se professar muçulmano, mas ele professou uma atitude para com o Islão incompatível com a submissão à doutrina da Igreja Católica, que se crê a única arca da salvação, Esposa de Cristo, e depositária da Revelação divina, horrivelmente ultrajada no dito Corão. E essa incompatibilidade, um antigo aluno do Padre Garrigou-Lagrange, tendo prestado o juramento antimodernista, não tinha como ignorar.

A bom leitor, boa conclusão.

John DALY

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III. Sobre o caso do Papa São Marcelino, inter alia

[PERGUNTA:]
“Vós dizeis: ‘Quando o papa é herege, das duas uma: ou ele não é herege a não ser em aparência; ou ele não é Papa a não ser em aparência.’ [N. do T. – J.S. DALY, “Quand le pape est hérétique…”, 6-XII-2008.]
É bem o que eu penso. Uma pergunta, porém: o que quereis dizer exatamente com ‘herege em aparência’?
Designa isso somente os casos em que a doutrina dele é de fato compatível com a Fé, malgrado as dificuldades que tenhamos em compreendê-lo?
Incluís aí também os casos em que os Papas aderissem sem pertinácia a um erro contra a Fé, a título privado?
Finalmente, que pensais da hipótese de um Papa que aderisse sem pertinácia a uma heresia (material), e a manifestasse em seus ensinamentos públicos não infalíveis? Uma tal hipótese me incomoda, eu não a creio possível, mas ainda não me aprofundei suficientemente.”
.

[RESPOSTA DE JSD (2008):]
Não disponho, infelizmente, do tempo necessário para aprofundar esses assuntos no presente, mas me permito as observações seguintes:

1. A heresia sem pertinácia não é possível, para quem quer que seja.

2. Exterioriza-se o fato de ser herege por toda palavra, ato ou omissão que manifeste o fato de não querer ser submisso ao Magistério. O exemplo mais claro e o mais corrente ao longo de toda a história é o de exprimir dúvida ou negação de uma doutrina que não se ignora ser a do Magistério (em matéria apresentada como revelada – fide divina credenda).

3. Para saber em que circunstâncias, fora de uma condenação por parte da autoridade, o particular pode constatar tanto o erro contra a doutrina revelada quanto o caráter voluntário desse erro (a insubmissão ao Magistério), é preciso estudar cuidadosamente o que dizem sobre isso as autoridades católicas e como isso se pratica na história da Igreja. (Se os responsáveis do vosso antigo seminário quiseram enxergar uma impossibilidade nessa segunda constatação, é ao meu parecer pela simples razão de que não fizeram esses estudos.)

4. Fiz uma tentativa modesta de tornar mais claro esse assunto num artigo que vem citado integralmente na resposta ao Pe. Robinne que se encontra aqui: [indisponível]

Mas não é mais do que uma pequena gota num vasto oceano. Para aprofundar o assunto, uma autoridade é de tal maneira mais detalhada sobre a pertinácia que todas as outras, que se tornou incontornável: o Cardeal de Lugo, Disputationes Scholasticae et Morales, Disp. XX, De Virtute Fidei Divinae, Sectio vi, n. 174 et seq.

5. Tendes um exemplo concreto dado por Belarmino quando ele fala do Papa São Marcelino, que, sob a perseguição de Diocleciano, sacrificou aos ídolos (apostasia equivale a heresia para a presente questão). Marcelino agiu sob temor violento e, imediatamente em seguida, abdicou do Pontificado. Pouco depois, ele foi convocado a sacrificar de novo aos ídolos e, dessa vez, não perdeu a oportunidade de se tornar mártir. Belarmino se interroga:

“Ele caiu do Pontificado em consequência desse ato exterior? Pouco importa, visto que, imediatamente a seguir, ele abdicou e foi, logo depois, coroado pelo martírio. Todavia, inclino-me a crer que ele não caiu ipso facto [pelo fato mesmo] do Pontificado, pois era suficientemente conhecido de todos que ele só havia sacrificado por medo.”

[N. do T. – De Romano Pontifice, lib. IV, c. 8:
“Veniamus nunc ad singulos Pontifices, quod adversarii nostri errasse contendunt. […] Decimus est Marcellinus, qui idolis sacrificavit, ut constat ex Pontificali Damasi, ex Concilio Sinuessano, et ex epistola Nicolai I, ad Michaelem. At Marcellinus nec docuit aliquid contra fidem, nec fuit hæreticus, vel infidelis, nisi actu externo ob metum mortis. Utrum autem propter actum illum externum exciderit à pontificatu, an non , parum refert; quandoquidem se ipse pontificatu mox abdicavit, et paulo post martyrio coronatus est. Crediderim tamen, non excidisse eum ipso facto à pontificatu, quia satis constabat omnibus, cum solo metu idolis sacrificasse.”]

Noutras palavras, Belarmino considera que unicamente a presença de grave medo manifesto foi suficiente para impedir esse ato de produzir seu efeito natural de deposição ipso facto.

6. Perguntais se um Papa pode errar contra a fé sem pertinácia e em seguida ensinar seu erro “em seus ensinamentos públicos não infalíveis”. Mas essa divisão entre “ensinamentos infalíveis” e “ensinamentos não infalíveis” é totalmente estranha à linguagem dos teólogos sérios. A Igreja nos fala de atos do Magistério solene, do Magistério ordinário e universal, do Magistério autêntico: mas ela nunca atribui o epíteto “infalível” a uma doutrina; sempre a um docente. Aí, vossa confusão não pode ser culpa nem de vossa família nem do vosso seminário!

7. O ensinamento do Papa obriga a consciência católica mesmo que ele não exerça o magistério solene ao transmiti-lo. É porque o seu ensinamento obrigatório, mesmo se não for infalivelmente verdadeiro, deve ser sempre infalivelmente seguro (sem perigo para a fé). Portanto, é exato dizer que o Papa não pode ensinar heresia à Igreja mesmo que não exerça o magistério solene.

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APÊNDICE:
Belarmino sobre o caso do Papa São Libério

Comentário por James Larrabee:

Com relação ao caso de Libério, do qual Belarmino trata no livro IV, capítulo IX alongando-se consideravelmente, Belarmino está preocupado ali não em provar que Libério não foi deposto, e legalmente deposto (Belarmino admite plenamente ambas as coisas), mas que o caso de Libério não é argumento contra a infalibilidade, nem foi Libério pessoalmente um herege. Isso envolve várias distinções que as pessoas agora não estão conseguindo fazer, mas que são evidentes para qualquer teólogo. Talvez eu possa citar essa extensa passagem no futuro, mas, por ora, seja dito que, embora Libério tenha resistido à heresia tanto antes como depois do período de sua queda [“lapse” (N. do T.)] e deposição (e é a isso que a citação de um Papa posterior indubitavelmente se refere), ele fracassou em fazê-lo por um certo tempo. Durante esse período, o clero romano o “depôs”, i.e.eles consideraram que o Papado estava vago, e aceitaram São Felix como Papa.

Por exemplo (Belarmino): 

“Ademais, a não ser que admitamos que Libério defeccionou por um tempo da constância na defesa da Fé, seremos compelidos a excluir Félix II, que deteve o Pontificado enquanto Libério estava vivo, de ser contado entre os Papas: mas a Igreja Católica venera esse mesmo Félix como Papa e Mártir. Como quer que seja, Libério nem ensinou heresia nem foi herege, mas apenas pecou por um ato exterior, assim como São Marcelino, e, se não estou enganado, pecou menos do que São Marcelino.”
(São Roberto Belarmino, De Romano Pontifice, lib. IV, c. 9, n.º 5).
[N. do T. – “Ad hæc, nisi fateamur, Liberium aliquo tempore defecisse a constantia in fide tuenda; cogimur, Felicem II, qui Liberio vivente, Pontificatum gessit, à numero Pontificum excludere; cum tamen hunc ipsum Felicem, ut Papam et Martyrem, Ecclesia Catholica veneretur. Denique Sozomenus lib. 4. hist. cap. 14, et Nicephorus lib. 9. cap. 37, obscurius quidem, tamen subindicant, Liberium in Concilio Sirmiensi, convenisse cum Valente et Ursacio Arianis, et ea pace facta, sedem suam recepisse, adjutum etiam literis ejusdem Concilii. Sed quamvis hæc ita se habeant, non tamen Liberius aut hæresim docuit, aut hæreticus fuit, sed solum peccavit acto externo, quemadmodum S. Marcellinus, et, ni fallor, minus peccavit, quam S. Marcellinus.”]

Adiante, depois de explicar que Félix foi, por um tempo, antipapa, Belarmino continua:

“Então, dois anos depois, aconteceu a queda de Libério, da qual falamos acima. Então, de fato, o clero romano, despojando Libério de sua dignidade pontifícia, dirigiu-se a Félix, o qual eles sabiam [então] ser católico. A partir daí, Félix passou a ser o verdadeiro Pontífice. Pois embora Libério não fosse herege, ele, não obstante, foi considerado herege, por conta da paz que ele fez com os arianos, e por essa presunção o Pontificado podia com direito [ex ea praesumptione merito potuit] ser tirado dele: pois os homens não estão obrigados, nem são capazes, de ler os corações; mas, quando eles vêem que alguém é herege por suas obras exteriores, eles julgam-no herege pura e simplesmente [simpliciter], e condenam-no como herege.”
[N. do T. – São Roberto Belarmino, De Romano Pontifice, lib. IV, c. 9, n.º 15:
“Post biennium deinde successit lapsus Liberii, de quo supra diximus; tunc vero Romanus Clerus, abrogata Liberio Pontificia dignitate, ad Felicem se contulit, quem Catholicum esse sciebat. Et ex eo tempore cœpit Felix verus Pontifex esse. Tametsi enim Liberius hæreticus non erat, tamen habebatur, propter pacem cum Arianis factam, hæreticus, et ex ea præsumptione merito potuit ei pontificatus abrogari: non enim homines tenentur, aut possunt corda scrutari; sed quem externis operibus hæreticum esse vident, simpliciter hæreticum judicant, ac ut hæreticum damnant.”]

Trad. de Felipe Coelho, a partir de publicações em fóruns na internet.

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