SOBRE A INFALIBILIDADE DA REGRA PRÓXIMA DA FÉ

Dois erros opostos
na “tradição” de nossos dias

John S. Daly
2006

Condição absoluta para a nossa salvação é crer com certeza na Revelação de Deus. Essa condição não é arbitrária: temos necessidade de conhecer com certeza a Revelação de Deus. Ele no-la revelou para ser conhecida e utilizada, e não somente para pôr à prova a docilidade da nossa inteligência.

Ora, para crer com certeza na Revelação de Deus, é preciso saber com certeza o que Deus realmente revelou. Todos sabemos que essa Revelação foi confiada à Igreja Católica e Romana, para guardá-la e transmiti-la aos fiéis. Os fiéis devem, portanto, crer em tudo o que a Igreja lhes ensina.

Mas a dificuldade se apresenta novamente: como saber com certeza o que a Igreja ensina? Assim como a doutrina da Igreja Católica deve ser a nossa regra da fé, assim também temos necessidade de uma regra próxima da fé, que nos permita conhecer qual é essa doutrina. Essa regra próxima é necessariamente a maneira (ou as maneiras) utilizada(s) pela Igreja para comunicar o seu ensinamento aos fiéis.

E essa regra próxima da fé, que comunica o ensinamento católico aos fiéis, deve necessariamente ser infalível, sem o que, ela não é capaz de engendrar senão assentimento condicional, que substituiria a inabalável fé divina pela opinião, como faz o protestantismo.

Ora, no mundo da tradição de nossos dias, encontram-se dois erros, opostos um ao outro e opostos ambos a essa infalibilidade da regra próxima da fé.

O primeiro erro é o que exige, entre as condições de todo ato infalível da Igreja, a conformidade com a doutrina tradicional. Essa conformidade… é aquilo que a infalibilidade garante. É evidente que, se essa conformidade fosse uma condição a verificar antes de saber se o ensinamento está garantido ou não pelo Espírito Santo, o fiel não poderia mais crer simpliciter aquilo que a Igreja lhe diz. Nenhum ato da Igreja, por mais solene, poderia ser suficiente para autorizar o “credo” do fiel. Antes de crer, o fiel deveria controlar a doutrina do Magistério, para ver se a regra próxima não se teria enganado, por azar. Mas o seu controle nunca poderia ser mais do que um ato de sua própria inteligência, no mínimo tão falível quanto o juízo do Papa sobre o mesmo assunto. Na melhor das hipóteses, somente um grande teólogo, detentor de conhecimento detalhado da tradição, seria capaz de saber se o Magistério teria razão. E, por conseguinte, somente o grande teólogo seria capaz de fazer um ato de fé. O simples fiel seria reduzido a salvar-se pela opinião… a qual não é virtude teologal e nunca salvou ninguém.

O erro oposto a esse é o que impõe ao fiel o dever de aderir às doutrinas que emanem do “magistério vivo” sem se incomodar de conciliar as aparentes contradições entre o objeto da fé apresentado hoje e aquele apresentado ontem. Afirma-se, com muita exatidão, que somente o Magistério é competente para esclarecer com autoridade as dúvidas sobre o sentido de seu conteúdo e imagina-se, por conseguinte, que uma mudança radical de doutrina (ecumenismo? liberdade religiosa?) não apresenta nenhuma dificuldade para a consciência católica, a qual só tem de se curvar. É irônico de constatar que o Commonitorium de São Vicente de Lérins, invocado pelos fautores desses dois erros, foi escrito precisamente para opor-se a eles e para inculcar os princípios sãos a aplicar, como todos podem constatar ao lê-lo. Esse segundo erro destrói a fé, ao fazer com que seu ato próprio seja a adesão a uma fórmula, mas não a uma verdade (necessariamente imutável). O ato pelo qual cremos, fundados no ensinamento do Magistério, que a Igreja Católica e Romana tem exatamente a mesma conotação que o Corpo Místico de Jesus Cristo, por exemplo, nunca teria podido ser ato de fé se houvesse a menor possibilidade de rever seja a doutrina seja nosso assentimento a ela.

É por isso que, contrapondo-se a cada um desses erros, a doutrina católica é suficientemente resumida na palavra “Credo”: eu creio, não “eu opino” nem “eu subscrevo”.

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APÊNDICES

(org. pelo tradutor)

“A sã reação à crise atual não pode consistir nem no abandono da perfeita submissão a Roma, marca de todos os santos, nem no voluntarismo pelo qual o homem se força, sistematicamente, a considerar que o preto seja branco, e que vai contra não apenas a santidade, como também a própria humanidade.”
(J.S. Daly)

APÊNDICE I
Respaldo do Rev. Pe. Belmont

Eis que fico dispensado de escrever sobre esse assunto, de tanto o seu texto diz bem as coisas, com precisão, justiça e felicidade.

A Revelação divina é conhecida por meio do Magistério (com base na atestação infalível do Magistério) e pela inteligência (o ato de fé é um ato sobrenatural realizado pela inteligência humana).

A atestação infalível pelo Magistério é absolutamente necessária, sob pena de tornar a fé impossível.

A não contradição com o ensinamento anterior da fé é absolutamente necessária, sob pena de tornar a fé impossível.

Esses dois aspectos são simultaneamente necessários. Abandonar um deles é fazer da fé:

– ou simples juízo humano (em matéria não evidente; portanto, é fazer dela uma opinião);

– ou um não-ato de inteligência; poder-se-ia dizer: um juízo inumano.

Ora, a fé não é nem uma coisa nem outra: é a luz divina em uma inteligência humana.

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APÊNDICE II
Respostas a objeções dos errantes tradicionalistas

1. Mais sobre o erro do “tradicionalismo crítico”
(excertos de “O Vaticano II Ensinou Infalivelmente?” – a ler inteiro! –, negritos do tradutor.)

[V]ejamos mais de perto as maneiras pelas quais a Igreja infalivelmente ensina a verdade divina aos seus filhos. Eis o que o Concílio do Vaticano, de 1870, ensinou:

“Deve-se crer com fé divina e católica tudo aquilo que está contido na Palavra de Deus, escrita ou transmitida, e que a Igreja, quer em declaração solene, quer no magistério ordinário e universal, propõe a crer como revelado por Deus.”
(Constituição Dogmática Dei Filius, capítulo 3, “Sobre a Fé”, Denzinger 1792).

É bastante extraordinário como muitos católicos tradicionais, incluindo alguns sedevacantistas, esqueceram-se completamente de um desses dois meios que a Igreja emprega para nos ensinar. Afirma-se muito frequentemente que somente as definições solenes dos Papas e Concílios obrigam sob pena de heresia e são protegidas pela infalibilidade. No entanto, vemos aqui exatamente uma tal definição solene afirmando que os católicos têm obrigação idêntica de crer nos ensinamentos da Igreja (sob pena de heresia) independentemente de se esse ensinamento é comunicado por meio de “juízos solenes” ou por meio do “magistério ordinário e universal”. Ambos são igualmente infalíveis.

Nem deveria haver qualquer coisa de surpreendente nisso, pois o “magistério ordinário” é precisamente o meio ordinário ou usual pelo qual os católicos recebem o ensinamento da Igreja, e é absurdo sugerir que o conhecimento que eles têm da doutrina não tem garantia de ser verdadeiro, pois, nesse caso, a grande massa de católicos que não recorre diretamente aos textos das definições dogmáticas seria incapaz de fazer um verdadeiro ato de fé divina, já que eles só teriam uma opinião mais ou menos provável sobre o que a Igreja de Cristo de fato ensina.

[…] Dever-se-ia notar também que, quando os Padres do Concílio do Vaticano, de 1870, discutiam o esquema da Dei Filius antes da votação, foram levantadas questões sobre o sentido da palavra “universal” na expressão “Magistério Ordinário e Universal”, e o relator oficial do Concílio, Dom Martin, remeteu-os à Tuas Libenter (de 21 de dezembro de 1863), do Papa Pio IX. Esse documento (Denzinger 1679-84) esclarece magnificamente bem as obrigações dos fiéis quanto aos atos pelos quais os representantes da Igreja docente comunicam-lhes a doutrina. Eis a parte mais relevante, que confirma as palavras de Dom Martin:

“Mesmo em se tratando somente da submissão que se deve prestar pelo ato de fé divina, esta não pode ser limitada àquilo que foi definido pelos decretos expressos de concílios ecumênicos ou pelos decretos desta Sé, mas deve ser estendida também àquilo que é transmitido como divinamente revelado pelo Magistério Ordinário da Igreja inteira espalhada pelo mundo…”
(Denzinger 1683).

Assim, o “Magistério Ordinário e Universal” designa o poder de ensinar do Papa e bispos do mundo inteiro juntos. Nenhum tipo especial de ensinamento é exigido. Nem é necessário que o ensinamento seja dado ao longo de um extenso período de tempo. Se a autoridade docente universal, i.e. o Papa e os bispos com unanimidade moral, transmitem aos fiéis um ensinamento como revelado, os fiéis são obrigados, sob pena de heresia, a crer com fé divina nessa doutrina. É uma negação do significado certo desse dogma rejeitar algum ensinamento que o Papa e os bispos estejam transmitindo aos fiéis hoje sob pretexto de que o mesmo consenso não pode ser encontrado no passado.

A infalibilidade da Igreja também se estende, é claro, a matérias conexas com a Revelação mas não incluídas nela, e que devem ser cridas com fé eclesiástica em vez de divina, mas por ora não temos necessidade de nos alongarmos sobre essa distinção. Devemos reter somente o fato de que, quando o Papa e os bispos concordam em comunicar aos fiéis determinadas afirmações sobre a fé e a moral como pertencentes ao ensinamento da Igreja, o Espírito Santo protege essa doutrina de todo e qualquer perigo de erro, e todos os católicos são tão obrigados a adotar esse ensinamento como se ele fosse ensinado por um juízo solene ex cathedra.

É tudo que precisamos para validar a alegação de que o Vaticano II cumpriu as condições para a infalibilidade… se Paulo VI era verdadeiro Papa. Pois foi certamente ocasião na qual, em toda a aparência, o Papa e os bispos uniram-se na transmissão aos fiéis de corpo substancial de princípios religiosos apresentados como autêntica doutrina católica. Assim, ainda que o Concílio não tenha emitido aqueles juízos solenes conhecidos como atos do Magistério Extraordinário, as suas doutrinas necessariamente pertencem ao ensinamento infalível do Magistério Ordinário e Universal… sempre pressupondo que foram promulgadas por um verdadeiro Papa, pois os bispos sem o seu cabeça não têm essa proteção.

Como já observamos, a resposta inevitável que se dá a esse argumento é que Paulo VI, e o próprio Vaticano II, afirmaram o contrário. Seria isso paradoxo extraordinário se assim o fosse, pois a infalibilidade não é uma opção que os papas podem ligar e desligar à vontade: quando um verdadeiro Papa e verdadeiros bispos católicos ensinam doutrina aos fiéis, o Espírito Santo protege-os de erro gostem eles ou não, se assim o podemos expressar. Mas o fato é que aquilo absolutamente não é verdade. […] 

Atendo-nos à notificação de 1964 e às palavras de Paulo VI, sejamos instruídos pelo Concílio quanto às próprias intenções dele acerca da qualificação de seus ensinamentos. Dois de seus decretos são nomeados “constituições dogmáticas”, e “dogmático” é uma palavra incomum de ser usada para identificar doutrinas falíveis ou não-obrigatórias. Uma das constituições dogmáticas é a Lumen Gentium, sobre a Igreja, que afirma a seguinte regra teológica:

“Embora os Bispos não gozem individualmente da prerrogativa da infalibilidade, todavia quando, mesmo dispersos pelo mundo, mas guardando a comunhão entre si e com o Sucessor de Pedro, eles concordam em ensinar autenticamente uma mesma doutrina de fé e moral como a ser mantida de modo definitivo, eles expressam infalivelmente a doutrina de Cristo.”

Mesmo que isso já não fosse verdade católica certa, ensinada por todos os teólogos aprovados, essa afirmação mui definitivamente e inegavelmente declara a mente do próprio Concílio Vaticano Segundo quanto às condições para a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal. E, dado que é evidente que os bispos do Vaticano II concordaram em ensinar uma porção de doutrinas de fé e moral como a serem sustentadas definitivamente em virtude do ensinamento do Concílio, segue-se que eles certamente atribuíram, sim, essa infalibilidade ao seu próprio Concílio sempre que este claramente deu um tal ensinamento.

Nem há coisa alguma de algum modo inovadora acerca da doutrina acima da Lumen Gentium. É a doutrina padrão dos teólogos e é afirmada muito claramente, de fato, pelo Papa Pio XII num ato do Magistério Extraordinário, a constituição Munificentissimus Deusdefinindo a Assunção de Nossa Senhora Santíssima. Fazendo referência às declarações dos Bispos do mundo [i.e. os Bispos consultados pelo Papa Pio XII sobre o assunto (N. do T.)] feitas antes de o dogma ser promulgado, o Papa diz:

“A singular concordância dos bispos e fiéis católicos em afirmar que a Assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, – dado que nos mostra a doutrina concorde da autoridade doutrinal ordinária da Igreja e a fé concorde do povo cristão que aquela autoridade doutrinal sustenta e dirige, – manifesta, portanto, por si mesma e de modo inteiramente certo e infalível, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou à sua Esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o ensinar. (…) Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja deduz-se prova certa e segura para demonstrar que a Assunção corpórea da Bem-aventurada Virgem Maria (…) é verdade revelada por Deus, e por essa razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois, como afirma o Concílio Vaticano, ‘temos obrigação de crer com fé divina e católica todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente, e que são propostas pela Igreja, seja por solene definição ou por seu magistério ordinário e universal, para crer como reveladas por Deus’.” (Itálico acrescentado).

Estamos, então, inteiramente justificados em nossa conclusão de que os ensinamentos do Vaticano II em questões de fé e moral cumprem todas as condições necessárias para o exercício infalível do Magistério Ordinário e Universal se a autoridade promulgadora fosse verdadeiramente Papa. E, longe de ser contradito por qualquer texto de Paulo VI ou do próprio Vaticano II, esse fato é inconfundivelmente afirmado por ambos. […]

– Alega-se às vezes que o ensinamento do Vaticano II foi insuficientemente unânime. Contudo, o que importa não é o dissentimento expressado na Aula Conciliar durante os debates, mas o consentimento na votação e no momento da promulgação. Mesmo então, é a unanimidade moral que importa, não a ausência de algum pequeno número em desacordo. No caso da liberdade religiosa, por exemplo, houve na realidade 70 votos contra (“non placet”) em oposição a 2.308 votos favoráveis (“placet”). Essa proporção já supera o consenso pró-infalibilidade no Vaticano I, que sempre foi considerado moralmente unânime. […]

– Alguns alegaram que a matéria de que tratou o concílio não entrou dentro da esfera da fé e moral. Os que fazem essa alegação parecem nunca ter lido os textos e estão contradizendo a expressa declaração da notificação do concílio de 1964 e a carta de Paulo VI de setembro de 1966 supracitadas. As doutrinas completamente errôneas e escandalosas do Vaticano II abrangeram campos tais como a natureza da Igreja e de seu Magistério, as relações dela com as religiões falsas, a conduta correta da atividade missionária, a condição atual do povo escolhido do Antigo Testamento, os meios de obter a graça e a salvação etc. Tudo isso concerne à fé e moral.

Ademais, no celebrado caso da liberdade religiosa, sobre o qual o Vaticano II flagrantemente ensinou, em palavras praticamente idênticas, o direto oposto da Quanta Cura do Papa Pio IX (ato do Magistério Extraordinário), o concílio insistiu que sua doutrina referia-se a um direito humano natural fundado na dignidade da pessoa humana tal como dada a conhecer pela revelação divina.

– Outros escapistas, não querendo falsificar fatos facilmente verificáveis sobre o próprio concílio, preferiram alterar alegremente a doutrina católica. Eles alegam, em particular, que o Magistério Ordinário e Universal é infalível somente quando o ensinamento que ele propõe é não somente ensinado por todos os bispos num dado momento, mas pode-se também demonstrar ter sido ensinado por eles ao longo de um período muito extenso. Para justificar essa alegação, apelam ao famoso “Cânon Vicentino” ou pedra de toque da doutrina tradicional: “O que foi crido sempre, em toda a parte e por todos.” Essa exigência é também útil para quem nega o ensinamento da Igreja de que o batismo “in voto” (por desejo) pode ser suficiente para a justificação e, portanto, para a salvação.

Mas a exigência é, na realidade, herética! O ensinamento do Concílio do Vaticano, de 1870, sobre o tema é dogmático e claro, e qualquer dúvida de interpretação é resolvida pela consulta às discussões conciliares. O termo “universal” implica em universalidade local, não de tempo. Em termos técnicos, é a universalidade sincrônica, não a universalidade diacrônica, que condiciona a infalibilidade. O que foi crido sempre e em toda a parte é infalivelmente verdadeiro, mas o ensinamento pode ser infalivelmente verdadeiro sem ter sido explicitamente crido sempre e em toda a parte.

O ensinamento presente da suprema autoridade docente da Igreja, seja expresso num juízo solene ou por atos ordinários, é necessariamente infalível e, portanto, bem incapaz de apresentar doutrina falsa ou nova, embora possa tornar explícito o que foi até então implícito ou trazer certeza ao que caiu em dúvida. Se doutrina flagrantemente falsa é ensinada em condições que deveriam garantir a infalibilidade, é não somente a novidade o que deve ser rejeitado, mas também a autoridade que a impõe, pois a autoridade legítima é impossível que erre em casos tais, e o erro descarado é, portanto, prova certa de ilegitimidade.

– O que devemos pensar da alegação de que o Vaticano II falha em cumprir as exigências para a infalibilidade do Magistério Ordinário porque não impõe aos fiéis o dever de crer em seu ensinamento? Esse argumento claudica duas vezes, pois, em primeiro lugar, a teologia não conhece nenhuma exigência dessas para a infalibilidade e, em segundo lugar, o Vaticano II, em todo o caso, deixou bem claro que os fiéis devem crer em seus ensinamentos.

É verdade que a autoridade da Igreja para ensinar deriva do poder dela de comandar assentimento, mas não é de modo algum necessário que ela comande explicitamente o assentimento sempre que ela ensina. Pelo contrário, o fato de ela comunicar a doutrina dela aos fiéis – por quaisquer meios que ela possa escolher – é suficiente para manifestar o dever incumbente aos fiéis de submeter-se àquele ensinamento. Assim, a Tuas Libenter afirma o dever de crer como infalivelmente verdadeiro tudo o que “é transmitido como divinamente revelado pelo Magistério Ordinário da Igreja inteira espalhada pelo mundo…” (Denzinger 1683). Nenhum tom ou modo especial de ensinar é designado: a palavra usada é a genérica “transmitir” (“traduntur”).

De fato, já vimos o Papa Pio XII declarar que o acordo unânime dos bispos de que a Assunção é verdade divinamente revelada constitui prova infalível de que isso era assim antes mesmo de essa verdade ter sido comunicada aos fiéis. E vimos o cônego George Smith observar que “…o ensinamento unânime [dos bispos] por todo o orbe católico, seja comunicado expressamente através de cartas pastorais, catecismos emitidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, seja implicitamente através de orações e práticas religiosas permitidas ou encorajadas, ou através do ensinamento de teólogos aprovados, é não menos infalível do que uma definição solene promulgada por um Papa ou Concílio geral.”

É evidente que esses meios de comunicar a verdade religiosa aos fiéis raramente expressam alguma ordem formal para crer naquela verdade, mas o dever é implícito. Por outro lado, a “Notificação” do Vaticano II anexada à Lumen Gentium declara expressamente que todos os pontos, quaisquer que sejam, que “o Concílio propõe como sendo a doutrina do Magistério Supremo da Igreja devem ser acatados e seguidos por todos e cada um dos fiéis”.

Ademais, quem quer que se dê ao trabalho de consultar o volume de 1965 dos Acta Apostolicae Sedis pode constatar, numa vista de olhos, que Paulo VI promulgou o texto gravemente errôneo da liberdade religiosa e muitos outros em 8 de dezembro de 1965 com todas as formalidades que podiam ser exigidas se ele tivesse sido um verdadeiro Papa promulgando verdade sã e obrigatória. Eis um excerto: “…nós mandamos e ordenamos que tudo o que foi decidido sinodalmente pelo Concílio seja observado santa e religiosamente por todos os fiéis, para glória de Deus… Estas coisas nós sancionamos e estabelecemos, decretando que a presente carta deve ser e permanecer sempre firme, válida e eficaz; e que obtenha e retenha seus efeitos plenos e íntegros… Dada em Roma, sob o anel do pescador…” De fato, não se poderia duvidar do caráter obrigatório de doutrina assim proposta, se ao menos tivesse sido proposta por um católico e não fosse manifestamente falsa e herética.

– Isso nos traz à tentativa final de evadir a conclusão óbvia: a alegação perfeitamente exasperante, endêmica entre apoiadores da FSSPX, de que para o ensinamento ser infalível ele precisa ser ortodoxo e que, portanto, o ensinamento do Vaticano II não pode ser infalível. Isso é verdadeiro, claro, no sentido de que nenhuma expressão de erro flagrante pode ter sido protegida pela infalibilidade. Mas é desastrosamente falso se é usado para fazer da ortodoxia da doutrina ensinada uma condição para a intervenção protetora do Espírito Santo que chamamos de infalibilidade, ou um parâmetro pelo qual os fiéis possam julgar o que é infalível e o que não é. A ortodoxia garantida de um dado ensinamento é consequência de sua infalibilidade. Não pode ser critério para detectar essa infalibilidade. Isso destruiria todo o propósito da infalibilidade. Os fiéis não seriam mais capazes de reconhecer a sã doutrina pelo fato de ter sido ensinada pelo Papa e os bispos em união. Teriam de avaliar o ensinamento do Papa e bispos à luz de um critério de ortodoxia extrínseco e não infalível. Não mais seriam dóceis súditos do Magistério, mas os juízes dele e, portanto, superiores a ele.

Concedido que as doutrinas do Vaticano II são falsas e perniciosas e, portanto, não foram protegidas pela infalibilidade. A questão aí surge: por que não? Que elas são falsas não é resposta a essa questão. Estamos perguntando por que o Espírito Santo não as protegeu evitando que fossem falsas.

Os fatos mostram que as condições para a infalibilidade foram aparentemente cumpridas, pois os bispos de 7 de dezembro de 1965 sob Paulo VI foram moralmente unânimes em apresentar à Igreja o ensinamento deles sobre fé e moral como definitivo e a ser crido como consequência da própria revelação divina. Se eles não foram, na realidade, infalíveis, isso só pode ser porque o sustentáculo do consenso deles, a autoridade de um verdadeiro Bispo de Roma, estava faltando.

2. Mais sobre o erro do “voluntarismo pio”
(um intercâmbio)

[JSD:]

[S]eus esforços para evitar cair no erro de peneirar os juízos do Magistério são exagerados a ponto de expô-lo a um perigo oposto: o de “crer” simultaneamente em duas proposições mutuamente excludentes, por um assentimento puramente verbal, o qual não pode, de modo algum, ser ato de fé salvífico.

A crença que o católico devota ao ensinamento do Magistério não é simples adesão a uma fórmula, como se fôssemos muçulmanos. A virtude da fé ilumina sobrenaturalmente a alma, a fim de que ela veja a verdade das doutrinas da Igreja. Essa verdade, uma vez tenha sido vista, exclui necessariamente a aceitação de toda proposição contraditória, ainda que proposta em aparência por uma autoridade infalível.

É por isso que São Paulo diz que é preciso anatematizar até mesmo um anjo do céu que nos pregasse doutrina diferente daquela que recebemos da Igreja. Esse anjo representa, de certo modo, até mesmo um Papa, pois na realidade o anjo do céu não pode pregar um falso evangelho, assim como não o pode um Papa. Mas São Paulo fala de uma aparência enganadora. A prioridade, nesse caso, não é em favor do “magistério vivo” do anjo do céu pregando novo evangelho. É em favor da fé imutável e cognoscível.

[OBJEÇÃO:]

Se, então, São Paulo fala “de uma aparência enganadora”, se isso pode “representar de certo modo um Papa” e se, finalmente, “a prioridade é em favor da fé”, como não concluir daí a inversão do adágio “Ubi Petrus, Ibi Ecclesia” [Onde está Pedro, aí está a Igreja – ndt]?

“O princípio de um tal raciocínio é que é a Fé autêntica que me diz onde está a Igreja (e onde ela não está). É, pois, o invisível que é o critério do visível, é a Fé que nos indica onde está a Igreja. Reconhece-se aí, claramente enunciado, o princípio do protestantismo. Este último pergunta: ‘Onde está a Igreja?’ e responde: ‘Lá onde está a Fé autêntica’. Tendo eu a Fé autêntica, posso julgar onde está a Igreja Católica e onde ela não está. A doutrina católica ensina exatamente o contrário: é a Igreja autêntica que me diz onde está a Fé autêntica. A verdadeira Igreja é visível, ou seja, deve poder ser conhecida até mesmo por um incréu. É a cidade sobre a montanha.”
(Carta sobre as sagrações de 30 de junho, Pe. Engelbert Recktenwald)

Ou será que não entendi direito o que pretendestes dizer? Poderíeis, nesse caso, me corrigir?

[JSD:]

Parece-me que vós confundis dois casos distintos.

O primeiro caso é o do acatólico que procura a verdadeira Igreja. Nós lhe assinalamos os axiomas para identificá-la. Se ele hesita em reconhecer a verdadeira Igreja entre as seitas, nós o lembramos de procurar as quatro notas. Se ele se deixa enganar pelo cisma, citamos para ele: ubi Petrus ibi Ecclesia.

O segundo caso é radicalmente diferente. É o caso de quem já é católico convicto. Sua mãe é a Santa Igreja Romana. Sua regra da fé é o Magistério. Ele não se permitiria, por nada no mundo, ser insubmisso ao Papa ou a seu Ordinário. Mas, por tempos de crise, por tempos de heresia, por tempos de obscuridade, ele hesita em determinar se determinado indivíduo é realmente o chefe da Igreja Romana, que encarna na pessoa dele a regra próxima da fé, gozando daquela jurisdição plena dada a Pedro.

Pesai toda a diferença entre os dois casos. O primeiro não é católico. Ele deve concluir qual é a verdadeira Igreja. O segundo já é católico, por graça de Deus. Ele procura o caminho da fidelidade a esta Igreja num caso extraordinário e difícil, cuja complexidade é provada pelos desacordos mesmo entre os mais cultos, os mais sábios e os mais santos.

A este último, seria perda de tempo citar-lhe os axiomas previstos para o primeiro caso. Ele já é católico e por nada neste mundo ele pensaria ser outra coisa. Os princípios de que ele necessita são, por exemplo, os que governam a legitimidade dos pastores e os direitos e deveres das ovelhas quando o pastor se transforma em lobo. Não há inversão do ubi Petrus ibi Ecclesia. Há simplesmente a diferença a notar entre o caso em que a dúvida seria: “ubi est Ecclesia?” [“onde está a Igreja?” – ndt] e o caso em que a dúvida seria: “Es tu Petrus?” [“Tu és Pedro?” – ndt].

[INSTÂNCIA:]

Salvo que, se Pedro não é Pedro, a Igreja não está lá onde pensaria o não crente. Esse acatólico, que veria a Igreja lá onde está Pedro, pode ao mesmo tempo considerar que esse Pedro que ele reconheceu como tal não o seja realmente?

[JSD:]

O juízo “devo submeter-me ao Papa” é evidentemente anterior, em toda a lógica, ao juízo “Eugênio Pacelli é Papa e, portanto, é a ele que devo me submeter”.

Se alguém forma o juízo “Pacelli é Papa” antes de formar o juízo “devo submeter-me ao Papa”, pode ser que ele esteja certo, pode ser que esteja errado, mas ele deveria antes ocupar-se de seu problema primordial, que é o de que sem a fé católica nenhum homem pode se salvar.

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APÊNDICE III

Resposta a objeções dos hereges modernistas

[ADVERSÁRIO MODERNISTA:]

Vossos quatro pontos de desacordo, caro John, parecem-me bom proêmio para melhor compreender a tendência tradicionalista. Ei-los:

“1. É possível que a Igreja Católica aprove uma missa que carece de retidão doutrinal, que mina a fé ou que é inválida?
2. É possível que a Igreja Católica imponha a seus fiéis leis estáveis e universais que não são conformes à fé e à virtude?
3. É possível que a Igreja Católica canonize como santo uma pessoa manifestamente indigna dessa honra?
4. É possível que a Igreja Católica dê a seus fiéis, pelos atos de um concílio ecumênico, por uma série de encíclicas e pelo ensinamento moralmente unânime dos bispos um ensinamento que não é nem verdadeiro nem conforme à fé entregue por Jesus Cristo a esta mesma Igreja?”
[cf. Panorama Tradicionalista, 2005 – ndt]

Contudo, parece-me que não são, em geral, essas questões de fundo que são apresentadas para explicar as tomadas de posição tradicionalistas, sejam de linha são-piodecimista ou sedevacantista.

Explico-me:

– Vossos quatro pontos de desacordo referem-se ao fundo: (ausência de) retidão doutrinal, (não) conformidade com a fé e a virtude, canonização indigna, ensinamento não conforme à fé entregue por Jesus Cristo.

– Contudo, parece-me que os argumentos apresentados, assim que são explicitados, não retêm mais que a constatação de contradição entre textos magisteriais.

Então, problema realmente de fundo ou “simples” problema de contradição?

Por exemplo: os tradicionalistas, notadamente os do tipo FSSPX e os sedevacantistas, não argumentam que tal doutrina “conciliar” (a liberdade religiosa da Dignitatis Humanae, por exemplo) é contrária ao ensinamento de Jesus Cristo, mas que ela contradiz esta ou aquela encíclica (a Quanta Cura, por exemplo).

O que eu quero dizer, e já fiz esta pergunta, é o seguinte: se estudardes com novos olhos os textos e a doutrina do Vaticano II, por si mesma, em si mesma, encontrareis nela alguma coisa de censurável com relação aos princípios evangélicos, ou nada encontrareis de censurável a não ser com relação aos textos que a Igreja promulgou?

Não digo que se deva menosprezar os problemas controvertidos, os ensinamentos preconciliares, mas, sim, considerar que se trata de um problema secundário com relação à ortodoxia per se dos textos do Vaticano II. Esse problema, sendo para mim secundário (ainda que fundamental), não tem como, partindo daí, não encontrar solução. Emprego o adjetivo secundário, não como juízo de valor, mas antes no sentido de segundo, que vem depois.

Em suma, não poderíamos, à luz de “novos” ensinamentos, modificar não a doutrina revelada, mas a interpretação que se fazia dos ensinamentos precedentes até o momento?

O que haveria, para vós, de repreensível numa tal atitude?

[…] Eu sei que a Quanta Cura apresenta em seu ensinamento central uma doutrina que tem todas as marcas da infalibilidade. Estou de acordo com os sedevacantistas nesse ponto. Mas isso não nos diz se a doutrina da liberdade religiosa da Dignitatis Humanae é, em si mesma, e independentemente da Quanta Cura, contrária ou conforme aos princípios evangélicos.

E estou de acordo também, com os sedevacantistas, em dizer que a liberdade religiosa da Dignitatis Humanae carrega, igualmente, todas as marcas da infalibilidade (enraizamento na Revelação).

A questão que eu ponho é: por que não parar um instante e se perguntar se porventura não fracassamos em compreender o alcance verdadeiro da Quanta Cura? E, para se fazer essa pergunta, é preciso esquecer da Quanta Cura por um instante, para compreender a coerência da Dignitatis Humanae com os princípios evangélicos.

E somente depois, quando os princípios da Dignitatis Humanae estiverem bem assimilados, poderemos nos fazer perguntas sobre a Quanta Cura; por exemplo, o fato de que, se a Quanta Cura fala no presente “para a salvação das almas a Nós confiadas por Deus”, é talvez porque a situação da época exigia esses esclarecimentos… ou qualquer outro questionamento sobre o verdadeiro alcance desse ensinamento.

E não estou convicto de admitir a prioridade de um ensinamento magisterial sobre outro unicamente pelo fato de sua anterioridade.

[JSD:]

Já que aproveitais minha tentativa de classificação para entrar no cerne da questão… faço o mesmo:

Distinguis entre a constatação de uma contradição (real ou aparente) entre dois textos do Magistério e a imposição “de um ensinamento que não fosse nem verdadeiro nem conforme à fé entregue por Jesus Cristo a esta mesma Igreja”.

Ora, com efeito, para o sedevacantista, é a mesma coisa. Não vejo como poderia não ser a mesma coisa. De fato, Nosso Senhor Jesus Cristo não está mais visivelmente presente na terra para transmitir a Sua doutrina diretamente aos indivíduos, para confirmá-la com Seus milagres fulgurantes e para torná-la mais doce com tantas manifestações do amor transbordante de Seu Sagrado Coração. Para transmitir Sua doutrina Ele fundou uma Igreja, que é una, exclusiva e infalível em seu ensinamento. Ele disse a ela: “Quem vos a ouve, a Mim ouve”. A Igreja ensina aos fiéis de diversas maneiras, mas, especialmente, por seus Símbolos de Fé e pelos atos de seu Magistério.

Um texto que pareça emanar do Magistério, mas esteja em aberta contradição com um ensinamento já transmitido pelo Magistério, é um apócrifo, tão seguramente quanto um texto pretensamente evangélico em contradição aberta com outro texto do Evangelho. E o primeiro caso é, com efeito, tanto mais inimaginável na medida em que o Evangelho é muitas vezes misterioso, nem sempre tendo como objetivo dar a conhecer o mais clara e explicitamente possível a verdade, ao passo que tal é sempre o objetivo a que o Magistério se propõe.

Apresentais a seguinte questão: “Em suma, não poderíamos, à luz de ‘novos’ ensinamentos, modificar não a doutrina revelada, mas a interpretação feita até então dos ensinamentos precedentes?”

A dificuldade aqui seria que a infalibilidade do Magistério não garante somente uma doutrina fundamental que a Igreja viesse revestir de palavras humanas necessariamente inadequadas a essa tarefa. São as próprias palavras escolhidas pela Igreja que são garantidas como sendo apropriadas para comunicar a verdade revelada (ou conexa com a Revelação). Dado que a palavra (e excepcionalmente o símbolo) é o único meio de que a Igreja dispõe para comunicar a seus filhos a verdade divina, uma infalibilidade que não se estendesse às palavras não seria verdadeira infalibilidade.

Se Deus, Verdade substancial, impôs a todos os homens crer nas doutrinas que Ele revelou, não é simplesmente para provar a fé deles e, assim, aumentar os méritos deles. Nesse caso, um assentimento puramente nocional ou verbal poderia bastar e, perante um novo ato do Magistério, teríamos somente de nos curvar sem questionar inclusive quando isso significasse aceitar uma contradição ou mesmo uma série das contradições mais flagrantes. Mas uma tal concepção seria uma caricatura do projeto divino de estabelecer Sua vida e Seu reino no homem. Pois essas verdades importam. Trata-se não somente de crer nelas de maneira teórica, mas de assimilá-las, de nutrir-se delas, de viver delas. Os próprios textos do Magistério são reflexos da luz da Verdade eterna e imutável.

São Paulo, mestre da audácia literária, parece se superar quando nos ensina como devemos agir se um anjo do céu ensinar-nos um evangelho diferente daquele que aprendemos. Isso jamais poderá acontecer. Mas, admitindo a hipótese, por impossível, sua resposta “que ele seja anátema” chega a ser de necessidade absoluta até mesmo – se ouso dizê-lo – na ordem natural. Cumpre recusar a alteração na crença certíssima e divina, não somente para proteger a fé contra o pecado de heresia, mas também porque quem transfere seu assentimento de uma proposição à sua contraditória sem admitir que a primeira não era, então, nem verdadeira, nem divina, nem infalivelmente garantida, perdeu a razão assim como a fé. Não chega mais a ser nem sequer um homem na ordem natural: é um destroço. Será definitivamente incapaz de conhecer realmente o verdadeiro, pois o verdadeiro enquanto tal, exprimido em palavras humanas, exclui necessariamente e eternamente toda a proposição que lhe seja contraditória. Uma vez espezinhada essa exclusão, nem a palavra “credo” [“creio” – ndt] nem a palavra “scio” [“conheço” – ndt] poderão jamais ter sentido mais forte que “opinor” [“opino” – ndt].

Eis por que o Concílio do Vaticano, de 1870, fez dogma o seguinte: “Se alguém disser que pode acontecer que se deva atribuir aos dogmas propostos pela Igreja, por causa do progresso da ciência, um sentido diferente daquele que a Igreja entendeu e entende, seja anátema.” (Denzinger-Rahner 1818).

Eis por que o juramento antimodernista (verdadeiro Símbolo de Fé católico) fulmina a “haereticum commentum evolutionis dogmatum ab uno in alium sensum transeuntium diversum ab eo quem prius habuit Ecclesia [invenção herética de que os dogmas podem evoluir de um sentido a outro diferente daquele que a Igreja antes manteve – ndt]” e prescreve que “nunquam aliter credatur, nunquam aliter intelligatur absoluta et immutabilis veritas… [nunca se creia nem se entenda diferentemente a verdade absoluta e imutável… – ndt]” (Dz 2145,7)

Voltando ao texto de São Paulo (Gál. I, 8), pergunta-se, diz Cornélio a Lapide, por que São Paulo falou de quem pregasse “outro evangelho”, e não “um evangelho contrário”, como merecedor de anátema. “Crisóstomo responde que foi para mostrar que seria anátema inclusive quem fizesse balançar indiretamente o menor dogma do Evangelho.”

[ADV.:]

Na citação que fazeis do Vaticano I: “Se alguém disser etc.”, trata-se de um “alguém”. Com efeito, um qualquer não pode atribuir aos dogmas outro sentido que não aquele que a Igreja entendeu; mas, no caso da doutrina da liberdade religiosa, não é qualquer um, mas é a própria Igreja por meio de um ensinamento conciliar quem dá outro sentido diferente daquele entendido até então. Não reside aí toda a diferença?

[JSD:]

A doutrina da Igreja seria então mutável com a condição de que fosse a Igreja mesma a mudá-la? Ora, é exatamente isso o que todo o meu texto dedicou-se a refutar. Não poderíeis levá-lo em consideração por inteiro? Concretamente, meu caro, poderíeis, com boa consciência, fazer o juramento antimodernista, com a passagem que citei?

[ADV.:]

Estais a dizer-me que jogo com as palavras, mas eu não disse que a Igreja podia mudar a própria doutrina, mas, sim, mudar o sentido que ela dá a essa doutrina, por vezes, ou ainda o peso no tempo que essa doutrina tem.

Creio sinceramente que a doutrina da liberdade religiosa da Dignitatis Humanae é autêntica, mas que, em um tempo, a Igreja aplicava-a de maneira mais restritiva, por razões que não me permitirei julgar.

Dito de outro modo, e contrariamente a certos tradicionalistas que tentam ler o Vaticano II “à luz da tradição”, exercício muito perigoso e por vezes um tanto forçado, eu faço o inverso: tento compreender o ensinamento pré-conciliar à luz dos textos, para mim eminentemente satisfatórios, do Vaticano II.

Em todo o caso, é a única explicação que consigo encontrar daquilo que, de outro modo, seria um impasse que não posso admitir. Para dizer tudo, a razão de eu tentar essa explicação não é talvez muito legítima e é um tanto pessoal, vindo, com efeito, do fato de que considero essa doutrina da Dignitatis Humanae muito satisfatória, lógica e tão digna para o homem. Mas compreendo muito bem que vossa honestidade vos faça tirar dela as consequências que dela tirais.

[JSD:]

Ao menos, sabeis pensar. É uma vantagem, essa, de saber pensar e não ter medo do esforço que isso custa. É porém, mesmo assim, muito pouco, meu caro, se se usa o cérebro para privar o homem de sua capacidade de conhecer a verdade com certeza, pela razão na ordem natural e pela fé na ordem sobrenatural. E é bem isso que estais fazendo.

Pois, para contornar a acusação de heresia contra o Vaticano II, apresentais uma ainda mais grosseira, a saber: a de que a Igreja teria o direito de mudar o sentido de suas doutrinas. E, para promover a dignidade do homem, vós o condenais à obrigação de dizer “credo” [“creio” – ndt] a tudo o que lhe apresente autoridade “infalível” mas tendo o direito de mudar o sentidos de seus dogmas; ou seja, vós o condenais a aceitar como objeto próprio de sua inteligência não uma verdade vista como tal (e portanto imutável) mas uma fórmula de palavras cujo sentido verdadeiro ele não saberá com certeza nunca. Que perda de dignidade!

Sim, foi o que eu disse: ele não o saberá nunca. Pois uma Igreja que pode mudar uma só vez o sentido de suas doutrinas pode fazê-lo ainda outra vez. Que a Igreja mude seus dogmas em seu sentido não é menos aberrante que mudar-lhes a formulação e o nome. Seria a admissão de que a infalibilidade não passaria de vento. Nunca uma Igreja assim poderia fazer-nos enxergar a verdade. Nunca o direito que ela reivindica à adesão de nossa inteligência poderia ser algo além de usurpação tirânica, como dizem os protestantes.

Isso deriva da própria natureza da verdade. Mas é também o que a Igreja nos disse sobre a natureza de seu ensinamento. Ela fez todos os seus ministros jurarem rejeitar para todo o sempre “como invenção herética a ideia de que os dogmas podem evoluir de um sentido a outro diferente daquele que a Igreja antes manteve”. Ela os fez jurar crerem em “um carisma de verdade” na Igreja, fazendo a precisão de que este existe “para que nunca se creia nem se entenda diferentemente da verdade absoluta e imutável que os Apóstolos pregaram desde o início.” (Dz 2145,7)

É verdade, não é mesmo, meu caro, que não poderíeis com boa consciência fazer esse juramento antimodernista?

Contudo, permito-me dizer-vos que, dentre as posições claramente divergentes para explicar as mudanças doutrinárias desde o Vaticano II que são a vossa e a daqueles que tentam reconciliar os sentidos, se a destes é mais conforme à fé e à razão, ela é não somente menos conforme aos fatos que a vossa, como é menos conforme à explicação dada pelo Cardeal Ratzinger ao retirar a condenação magisterial das proposições de Rosmini – como podeis ver no site do Vaticano aqui com o comentário muito justo de Gregory Baum (jamais suspeito de sedevacantismo) aqui.

E recordemos por fim, meu caro, que não se pode, de modo algum, reduzir a ruptura doutrinal entre a Igreja de antes do Vaticano II e aquela que saiu do Vaticano II unicamente à questão da liberdade religiosa. Tendes a prova aqui.

[ADV.:]

Obrigado pelas explicações claras e pelos links que me propondes. Percorrê-los-ei com bastante interesse.

Permiti-me de nuançar um pouco isto. Eu não pretendo que a Igreja seja capaz de mudar o sentido de uma doutrina, mas antes que ela é capaz de nuançar a maneira como “nós” compreendemos dita doutrina. Nuançá-la a partir do fato de que a Igreja percorreu um pouco mais do caminho rumo à Verdade (pois a Igreja não acaba nunca de progredir e, por conseguinte, enriquece sempre um pouco mais sua compreensão dessa Verdade). Se tudo estivesse fixado, a Igreja teria terminado sua missão: seria, então, o fim do mundo.

Aplicando isso à liberdade religiosa, poder-se-ia ter o seguinte: “Havíamos compreendido até aqui que a Igreja ensinava-nos que era sempre necessário impedir todo o culto público que não o católico; mas a Igreja nos diz hoje que não se deve entendê-lo dessa maneira, somente as circunstâncias de outrora podendo legitimar uma tal coerção”.

Enfim, à questão de saber se eu poderia pronunciar o juramento antimodernista, não posso responder-vos pois, também aqui, por trás das palavras há aquilo que prometeis verdadeiramente com a alma e em consciência. Quero crer que se a Igreja, hoje, me exigisse fazê-lo, eu o faria, e o faria de modo a fazê-lo com sinceridade e não da boca para fora. Mas ela não me exige mais isso. Tanto melhor.

[JSD:]

Não consigo me impedir de admirar vossa franqueza e vossa integridade, meu caro… ao mesmo tempo que deplorando vossa teologia.

Empurrais cada vez para mais longe o ponto de interpretação capaz de ser mudado, mas não evitareis jamais de inculpar a Igreja, pois o ensinamento da Igreja não é meramente tentativa de comunicar a verdade a seus filhos: é resultado bem-sucedido. Infallibilitas in credendo.

É preciso ter confiança na Igreja, mas, se é esta que o Vaticano II nos apresenta, não o podemos.

Credo nisi fallitur Ecclesia quoad doctrinam 
Credo nisi fallitur Ecclesia quoad sensum doctrinae 
Credo nisi fallimur catholici quoad doctrinam 
Credo nisi fallimur catholici quoad sensum doctrinae 

[N.d.T. (tradução livre, e por um não latinista):
“Creio contanto que a Igreja não falhe quanto à doutrina
Creio contanto que a Igreja não falhe quanto ao sentido da doutrina
Creio contanto que os católicos não falhemos quanto à doutrina
Creio contanto que os católicos não falhemos quanto ao sentido da doutrina”]

Quatro maneiras de contornar o sentido único da palavra “credo”, a que não podemos acrescentar condição nunca. A última é a mais complexa e, portanto, a menos flagrante, mas não é mais ortodoxa que a primeira. Honra o Q.I. de seu inventor, mas não a sua fé.

Lamento se pareço brutal.

Trad. de Felipe Coelho

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