O VATICANO II ENSINOU INFALIVELMENTE?

John S. Daly | 2007

O Magistério Ordinário e Universal

A maioria dos católicos tradicionais sabe que o Vaticano II ensinou heresias e outros erros. Eles corretamente recusam aceitar esse ensinamento falso. Mas, quando questionados sobre como pode ser correto rejeitar o ensinamento de um Concílio Geral da Igreja Católica, eles respondem que o Vaticano II foi um tipo especial de concílio; foi não-dogmático e não-infalível. Como tal, podia errar, e errou, e os católicos podem rejeitar os erros dele sem duvidar da legitimidade da autoridade que promulgou aqueles erros. Eles frequentemente acrescentarão que a autoridade promulgadora – Paulo VI – declarou ela própria que seu concílio foi não-infalível e não-dogmático.

Essa explicação popular faz violência à doutrina católica e à realidade clara. A verdade é que o Vaticano II cumpretão patentemente as condições para a infalibilidade, que nem mesmo Paulo VI jamais ousou negar isso. Portanto, se o seu ensinamento contém erros egrégios contra a fé, esse fato necessariamente põe em questão o status papal do próprio Paulo VI. Para mostrar que isso é assim, vejamos mais de perto as maneiras pelas quais a Igreja infalivelmente ensina a verdade divina aos seus filhos. Eis o que o Concílio do Vaticano, de 1870, ensinou:

“Deve-se crer com fé divina e católica tudo aquilo que está contido na Palavra de Deus, escrita ou transmitida, e que a Igreja, querem declaração solene, quer por seu magistério ordinário e universal, propõe a crer como revelado por Deus.”

(Constituição Dogmática Dei Filius, capítulo 3, “Sobre a Fé”, Denzinger 1792).

É bastante extraordinário como muitos católicos tradicionais, incluindo alguns sedevacantistas, esqueceram-se completamente de um desses dois meios que a Igreja emprega para nos ensinar. Afirma-se muito frequentemente que somente as definições solenes dos papas e concílios obrigam sob pena de heresia e são protegidas pela infalibilidade. No entanto, vemos aqui exatamente uma tal definição solene afirmando que os católicos têm obrigação idêntica de crer nos ensinamentos da Igreja (sob pena de heresia) independentemente de se esse ensinamento é comunicado por meio de “juízos solenes” ou por meio do “magistério ordinário e universal”. Ambos são igualmente infalíveis. Nem deveria haver qualquer coisa de surpreendente nisso, pois o “magistério ordinário” é precisamente o meio ordinário ou usual pelo qual os católicos recebem o ensinamento da Igreja, e é absurdo sugerir que o conhecimento que eles têm da doutrina não tem garantia de ser verdadeiro, pois, nesse caso, a grande massa de católicos que não recorre diretamente aos textos das definições dogmáticas seria incapaz de fazer um verdadeiro ato de fé divina, já que eles só teriam uma opinião mais ou menos provável sobre o que a Igreja de Cristo de fato ensina.

Escrevendo na Clergy Review de abril de 1935, o cônego George D. Smith, Ph.D., D.D., já estava chamando a atenção para esse mal-entendido, que se agravou entre os católicos tradicionais desde o Vaticano II:

“Ao que se tende a fazer vista grossa é ao ensinamento ordinário e universal da Igreja. Não é de modo algum incomum encontrar a opinião, senão expressa ao menos cultivada, de que nenhuma doutrina deve ser considerada dogma de fé a não ser que tenha sido solenemente definida por um Concílio ecumênico ou pelo próprio Soberano Pontífice. Isso não é necessário de maneira nenhuma.É suficiente que a Igreja a ensine em seu Magistério ordinário, exercido através dos Pastores dos fiéis, os Bispos, cujo ensinamento unânime por todo o orbe católico, seja comunicado expressamente através de cartas pastorais, catecismos emitidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, seja implicitamente através de orações e práticas religiosas permitidas ou encorajadas, ou através do ensinamento de teólogos aprovados, é não menos infalível do que uma definição solene promulgada por um Papa ou um Concílio geral. Se, então, uma doutrina aparece nesses órgãos de divina Tradição como pertencendo diretamente ou indiretamente ao depositum fidei [“depósito da fé”] confiado por Cristo à Sua Igreja, deve ser crida pelos católicos com fé divino-católica ou eclesiástica, ainda que possa nunca ter sido objeto de definição solene num Concílio Ecumênico ou de pronunciamento ex athedra pelo Sumo Pontífice.”

Quando dizemos que muitos católicos tradicionais fracassaram totalmente em entender esse ponto, um exemplo óbvio é fornecido pelo finado Sr. Michael Davies. Em seu The Second Vatican Council and Religious Liberty [O Concílio Vaticano Segundo e a Liberdade Religiosa], (p. 257) ele escreveu: “Os testemunhos a seguir devem ser mais do que adequados para convencer qualquer pessoa razoável de que os documentos do Vaticano II não pertencem ao Magistério Extraordinário e portanto não são infalíveis, e portanto não são divinamente protegidos contra o erro“. (Grifo nosso). Essa sentença equivale a negação completa da infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal, a qual, como acabamos de ver, é dogma de fé! Dever-se-ia notar também que, quando os Padres do Concílio do Vaticano, de 1870, discutiam o esquema da Dei Filius antes da votação, foram levantadas questões sobre o sentido da palavra “universal” na expressão “Magistério Ordinário e Universal”, e o relator oficial do Concílio, Dom Martin, remeteu-os à Tuas Libenter (de 21 de dezembro de 1863), do Papa Pio IX. Esse documento (Denzinger 1679-84) esclarece magnificamente bem as obrigações dos fiéis quanto aos atos pelos quais os representantes da Igreja docente comunicam-lhes a doutrina. Eis a parte mais relevante, que confirma as palavras de Dom Martin:

“Mesmo em se tratando somente da submissão que se deve prestar pelo ato de fé divina, esta não pode ser limitada àquilo que foi definido pelos decretos expressos de concílios ecumênicos ou pelos decretos desta Sé, mas deve ser estendida também àquilo que é transmitido como divinamente revelado pelo Magistério Ordinário da Igreja inteira espalhada pelo mundo…” (Denzinger 1683).

Assim, o “Magistério Ordinário e Universal” designa o poder de ensinar do papa e bispos do mundo inteiro juntos. Nenhum tipo especial de ensinamento é exigido. Nem é necessário que o ensinamento seja dado ao longo de um extenso período de tempo. Se a autoridade docente universal, i.e. o papa e os bispos com unanimidade moral, transmitem aos fiéis um ensinamento como revelado, os fiéis são obrigados, sob pena de heresia, a crer com fé divina nessa doutrina. É uma negação do significado certo desse dogma rejeitar algum ensinamento que o papa e os bispos estejam transmitindo aos fiéis hoje sob pretexto de que o mesmo consenso não pode ser encontrado no passado.

A infalibilidade da Igreja também se estende, é claro, a matérias conexas com a Revelação mas não incluídas nela, e que devem ser cridas com fé eclesiástica em vez de divina, mas por ora não temos necessidade de nos alongar sobre essa distinção. Devemos reter somente o fato de que, quando o papa e os bispos concordam em comunicar aos fiéis determinadas afirmações sobre a fé e a moral como pertencentes ao ensinamento da Igreja, o Espírito Santo protege essa doutrina de todo e qualquer perigo de erro, e todos os católicos são tão obrigados a adotar esse ensinamento como se ele fosse ensinado por um juízo solene ex cathedra. É tudo que precisamos para validar a alegação de que o Vaticano II cumpriu as condições para a infalibilidade… se Paulo VI era um papa verdadeiro. Pois foi certamente uma ocasião na qual, em toda a aparência, o papa e os bispos uniram-se na transmissão aos fiéis de um corpo substancial de princípios religiosos apresentados como sendo autêntica doutrina católica. Assim, ainda que o Concílio não tenha emitido esses juízos solenes conhecidos como atos do Magistério Extraordinário, as suas doutrinas necessariamente pertencem ao ensinamento infalível do Magistério Ordinário e Universal… sempre pressupondo que foram promulgadas por um verdadeiro papa, pois os bispos sem o seu cabeça não têm essa proteção. Como já observamos, a resposta inevitável que se dá a esse argumento é que Paulo VI, e o próprio Vaticano II, afirmaram o contrário. Seria isso um paradoxo extraordinário se assim o fosse, pois a infalibilidade não é uma opção que os papas podem ligar e desligar à vontade: quando um verdadeiro papa e verdadeiros bispos católicos ensinam doutrina aos fiéis, o Espírito Santo protege-os de erro gostem eles ou não, se assim o podemos expressar. Mas o fato é que aquilo absolutamente não é verdade. Examinemos as provas tão frequentemente aduzidas. Para o fazer, temos de voltar ao nosso excerto tirado do Sr. Michael Davies. Em apoio à sua afirmação, Davies cita as palavras seguintes de Paulo VI numa audiência geral de 12 de janeiro de 1966:

“Em vista da natureza pastoral do Concílio, este evitou quais quer declarações extraordinárias de dogmas dotados da nota de infalibilidade, mas ele, contudo, proporcionou ao seu ensinamento a autoridade do Magistério Ordinário que deve ser aceito com docilidade segundo a mente do concílio acerca da natureza e finalidades de cada documento.”

O Sr. Davies indaga exultantemente: “O que poderia ser mais claro? O Papa Paulo declara inequivocamente que os documentos do Vaticano II não dizem respeito ao Magistério Extraordinário e que não são dotados da nota de infalibilidade.” Porém, ao mesmo tempo que concordamos com Davies que essa sua primeira alegação é clara – nenhum ato do Magistério Extraordinário –, somos forçados a negar a segunda alegação dele – nenhuma infalibilidade.

Sem dúvida que as palavras de Giovanni Battista Montini (Paulo VI) são um tanto tendenciosas aqui, mas ele mui definitivamente não afirma que nenhum ensinamento do Concílio foi protegido pela infalibilidade. Ele meramente afirma que nenhum ensinamento do concílio pertenceu ao Magistério Extraordinário infalível (aquilo que o Vaticano I chama de “juízos solenes”). Ele acrescenta então que o concílio todo pertenceu ao Magistério Ordinário, sem comentar sobre se este também é infalível. Conviria notar também que Davies enfraquece e desarma um pouco a força do original, que diz: “ele muniu os seus ensinamentos com a autoridade do supremo Magistério Ordinário”. Além disso, em sua carta de 21 de setembro de 1966 ao Cardeal Pizzardo sobre esse assunto, Paulo VI afirma que o ensinamento do Vaticano II em questões de fé e moral “constitui norma próxima e universal da verdade, da qual nunca é lícito aos teólogos se afastar…”. Isso é evidentemente mais do que pode ser alegado indiscriminadamentede toda encíclica ou ato do Magistério Ordinário que não preencha a condição da universalidade. Isso só pode ser dito do ensinamento protegido pela infalibilidade. As pesquisas do Sr. Davies parecem não o ter direcionado a essa citação.

A segunda e “decisiva” autoridade dele é a notificação formal publicada em março de 1964 pelo secretário do concílio Arcebispo Felici e, mais tarde, anexada à Constituição Dogmática Lumen Gentium. Ela afirma que “tendo em conta a praxe conciliar e a finalidade pastoral do presente concílio, este sagrado Sínodo define coisas relativas à fé e moral como obrigatórias à Igreja somente quando o próprio Sínodo abertamente o declarar.” Novamente, porém, esse texto só exclui definições solenes (já que o Concílio, de fato, nunca pretendeu fazer uma), mas de modo nenhum exclui a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal que ensina sem definições. E, pelo mesmo tipo de descuido infeliz que levou o Sr. Davies (que ele descanse em paz) a esquecer a palavra“supremo” na primeira citação dele, ele omitiu inteiramente, nessa segunda citação, desleixadamente traduzida, a crucial sentença seguinte: “Outros pontos que o Concílio propõe como sendo a doutrina do Magistério Supremo da Igreja devem ser acatados e seguidos por todos e cada um dos fiéis conforme as intenções do próprio Sagrado Sínodo, que são manifestadas quer pela matéria versada quer pelo modo de expressão, segundo as normas da interpretação teológica.”

Vemos assim que o Concílio, na realidade, alega formalmente ter exercido o supremo Magistério da Igreja e remete-nos, para o reconhecimento do status e autoridade de seus vários ensinamentos, aos seus próprios textos e às normas tradicionais de interpretação teológica. Ele não fez nenhuma “definição solene” (Magistério Extraordinário), mas seus ensinamentos possuem a autoridade do supremo Magistério Ordinário e todos os fiéis são obrigados, alega ele, a acatá-los e segui-los. É muito difícil de ver como o “supremo Magistério ordinário” pode ser qualquer outra coisa além do “Magistério Ordinário e Universal” do Vaticano I e da Tuas Libenter do Papa Pio IX, o qual é necessariamente infalível em todos os seus ensinamentos sobre fé e moral. Isso é assim não somente porque atos não-infalíveis do Magistério Ordinário não podem ser “supremos”, mas também porque o critério que distingue o Magistério Ordinário e Universal, que é infalível, dos atos não-infalíveis do Magistério Ordinário é precisamente sua universalidade, e nunca essa condição foi tão evidentemente cumprida como no Concílio Vaticano Segundo, quando quase todos os bispos do mundo estavam reunidos e, no momento da promulgação dos decretos pelo homem reconhecido como papa, nem uma única voz dissidente foi ouvida. Atendo-nos à notificação de 1964 e às palavras de Paulo VI, sejamos instruídos pelo Concílio quanto às próprias intenções dele acerca da qualificação de seus ensinamentos. Dois de seus decretos são nomeados “constituições dogmáticas”, e “dogmático” é uma palavra incomum de ser usada para identificar doutrinas falíveis ou não-obrigatórias. Uma das constituições dogmáticas é a Lumen Gentium, sobre a Igreja, que afirma a seguinte regra teológica:

“Embora os Bispos não gozem individualmente da prerrogativa da infalibilidade, todavia quando, mesmo dispersos pelo mundo, mas guardando a comunhão entre si e com o Sucessor de Pedro, eles concordam em ensinar autenticamente uma mesma doutrina de fé e moral como a ser mantida de modo definitivo, eles expressam infalivelmente a doutrina de Cristo.”

Mesmo que isso já não fosse verdade católica certa, ensinada por todos os teólogos aprovados, essa afirmação mui definitivamente e inegavelmente declara a mente do próprio Concílio Vaticano Segundo quanto às condições para a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal. E, dado que é evidente que os bispos do Vaticano II concordaram em ensinar uma porção de doutrinas de fé e moral como a serem sustentadas definitivamente em virtude do ensinamento do Concílio, segue-se que eles certamente atribuíram, sim, essa infalibilidade ao seu próprio Concílio sempre que este claramente deu um tal ensinamento. Nem há coisa alguma de algum modo inovadora acerca da doutrina acima da Lumen Gentium. É a doutrina padrão dos teólogos e é afirmada muito claramente, de fato, pelo Papa Pio XII num ato do Magistério Extraordinário, a constituição Munificentissimus Deus definindo a Assunção de Nossa Senhora Santíssima. Fazendo referência às declarações dos bispos do mundo feitas antes de o dogma ser promulgado, o Papa diz:

“A singular concordância dos bispos e fiéis católicos em afirmar que a Assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, – dado que nos mostra a doutrina concorde da autoridade doutrinal ordinária da Igreja e a fé concorde do povo cristão que aquela autoridade doutrinal sustenta e dirige, – manifesta, portanto, por si mesma e de modo inteiramente certo e infalível, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou à sua Esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o ensinar. (…) Por essa razão, do consenso universal do Magistério da Igreja deduz-se prova certa e segura para demonstrar que a Assunção corpórea da Bem-aventurada Virgem Maria (…) é verdade revelada por Deus, e por essa razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois, como afirma o Concílio Vaticano, ‘temos obrigação de crer com fé divina e católica todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente, e que são propostas pela Igreja, seja por solene definição ou por seu magistério ordinário e universal, para crer como reveladas por Deus’.” (Itálico acrescentado).

Estamos, então, inteiramente justificados em nossa conclusão de que os ensinamentos do Vaticano II em questões de fé e moral cumprem todas as condições necessárias para o exercício infalível do Magistério Ordinário e Universal se a autoridade promulgadora fosse verdadeiramente papa. E, longe de ser contradito por qualquer texto de Paulo VI ou do próprio Vaticano II, esse fato é inconfundivelmente afirmado por ambos. Na realidade, isso é tão evidente, e, contudo, tão patentemente inaceitável para muitos tradicionalistas, que frequentes tentativas foram feitas para escapar disso. Essas tentativas foram tão numerosas, a ponto de fazerem lembrar uma das máximas do marinheiro: “Se você não consegue dar um bom nó, dê um monte de nós.” Mas argumentos pobres permanecem não-convincentes para inteligências sérias a despeito de quantos sejam eles. Examinemos alguns deles:

Alega-se às vezes que o ensinamento do Vaticano II foi insuficientemente unânime. Contudo, o que importa não é o dissentimento expressado na Aula Conciliar durante os debates, mas o consentimento na votação e no momento da promulgação. Mesmo então, é a unanimidade moral que importa, não a ausência de algum pequeno número em desacordo. No caso da liberdade religiosa, por exemplo, houve na realidade 70 votos contra (“non placet”) em oposição a 2.308 votos favoráveis (“placet”). Essa proporção já supera o consenso pró-infalibilidade no Vaticano I, que sempre foi considerado moralmente unânime. E, quando a declaração foi promulgada pouco depois, juntamente com três outras, praticamente todos os bispos opositores assinaram o texto, incluindo o Arcebispo Lefebvre e o Bispo De Castro Mayer. Tentativas de negar o fato dessas assinaturas provaram-se fúteis. O debate acerca do significado delas continua, mas patentemente elas ao menos aparentam implicar consentimento e, se algum bispo continuou a rejeitar o ensinamento da Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa depois de sua promulgação e a despeito de sua assinatura a ela, os católicos do mundo todo permaneceram inteiramente não-cientes desse fato durante, pelo menos, os dez anos seguintes.

Argumenta-se que se sabia que o concílio era “pastoral” e, portanto, não “dogmático” – as duas coisas sendo aparentemente opostas uma à outra. Na realidade, duas das constituições do concílio descrevem a si próprias como “dogmáticas” e uma (Gaudium et Spes) como “pastoral”. Mais importante do que isso, porém, pastoral significa “à maneira de um pastor”, e é normal para os pastores alimentarem seu rebanho em pasto saudável. Não há nada de apastoral no ensino de verdades religiosas infalivelmente. Um concílio pastoral, se ensina sobre fé e moral, também tem caráter doutrinal ou dogmático.

Alguns alegaram que a matéria de que tratou o concílio não entrou dentro da esfera da fé e moral. Os que fazem essa alegação parecem nunca ter lido os textos e estão contradizendo a expressa declaração da notificação do concílio de 1964 e a carta de Paulo VI de setembro de 1966 supracitadas. As doutrinas completamente errôneas e escandalosas do Vaticano II abrangeram campos tais como a natureza da Igreja e de seu Magistério, as relações dela com as religiões falsas, a conduta correta da atividade missionária, a condição atual do povo escolhido do Antigo Testamento, os meios de obter a graça e a salvação etc. Tudo isso concerne à fé e moral. Ademais, no celebrado caso da liberdade religiosa, sobre o qual o Vaticano II flagrantemente ensinou, em palavras praticamente idênticas, o direto oposto da Quanta Cura do Papa Pio IX (ato do Magistério Extraordinário), o concílio insistiu que sua doutrina referia-se a um direito humano natural fundado na dignidade da pessoa humana tal como dada a conhecer pela revelação divina.

Outros escapistas, não querendo falsificar fatos facilmente verificáveis sobre o próprio Concílio, preferiram alterar alegremente a doutrina católica. Eles alegam, em particular, que o Magistério Ordinário e Universal é infalível somente quando o ensinamento que ele propõe é não somente ensinado por todos os bispos num dado momento, mas pode também ser demonstrado como tendo sido ensinado por eles ao longo de um período muito extenso. Para justificar essa alegação, eles apelam ao famoso “Cânon Vicentino” ou pedra de toque da doutrina tradicional: “O que foi crido sempre, em toda a parte e por todos.” Essa exigência é também útil para quem nega o ensinamento da Igreja de que o Batismo “in voto” (por desejo) pode ser suficiente para a justificação e, portanto, para a salvação. Mas a exigência é de fato herética! O ensinamento do Concílio do Vaticano, de 1870, sobre o tema é dogmático e claro, e qualquer dúvida de interpretação é resolvida pela consulta às discussões conciliares. O termo “universal” implica em universalidade local, não de tempo. Em termos técnicos, é a universalidade sincrônica, não a universalidade diacrônica, que condiciona a infalibilidade. O que foi crido sempre e em toda a parte é infalivelmente verdadeiro, mas o ensinamento pode ser infalivelmente verdadeiro sem ter sido explicitamente crido sempre e em toda a parte. O ensinamento presente da suprema autoridade docente da Igreja, seja expresso num juízo solene ou por atos ordinários, é necessariamente infalível e, portanto, bem incapaz de apresentar doutrina falsa ou nova, embora possa tornar explícito o que foi até então implícito ou trazer certeza ao que caiu em dúvida. Se uma doutrina flagrantemente falsa é ensinada em condições que deveriam garantir a infalibilidade, é não somente a novidade o que deve ser rejeitado, mas também a autoridade que a impõe, pois a autoridade legítima é impossível que erre em casos tais, e o erro descarado é, portanto, prova certa de ilegitimidade.

O que devemos pensar da alegação de que o Vaticano II falha em cumprir as exigências para a infalibilidade do Magistério Ordinário porque não impõe aos fiéis o dever de crer em seu ensinamento? Esse argumento claudica duas vezes, pois, em primeiro lugar, a teologia não conhece nenhuma exigência dessas para a infalibilidade e, em segundo lugar, o Vaticano II, e, todo o caso, deixou bem claro que os fiéis devem crer em seus ensinamentos. É verdade que a autoridade da Igreja para ensinar deriva do poder dela de comandar assentimento, mas não é de modo algum necessário que ela explicitamente comande o assentimento sempre que ela ensina. Pelo contrário, o fato de ela comunicar a doutrina dela aos fiéis – por quaisquer meios que ela possa escolher – é suficiente para manifestar o dever incumbente aos fiéis de submeter-se àquele ensinamento. É assim que a Tuas Libenter afirma o dever de crer como infalivelmente verdadeiro tudo o que “é transmitido como divinamente revelado pelo Magistério Ordinário da Igreja inteira espalhada pelo mundo…” (Denzinger 1683). Nenhum tom ou modo especial de ensinar é designado – a palavra usada é a genérica “transmitir” (“traduntur”). De fato, já vimos o Papa Pio XII declarar que o acordo unânime dos bispos de que a Assunção é verdade divinamente revelada constitui prova infalível de que isso era assim antes mesmo de essa verdade ter sido comunicada aos fiéis. E vimos o cônego George Smith observar que “…o ensinamento unânime [dos bispos] por todo o orbe católico, seja comunicado expressamente através de cartas pastorais, catecismos emitidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, seja implicitamente através de orações e práticas religiosas permitidas ou encorajadas, ou através do ensinamento de teólogos aprovados, é não menos infalível do que uma definição solene promulgada por um Papa ou um Concílio geral”. É evidente que esses meios de comunicar a verdade religiosa aos fiéis raramente expressam alguma ordem formal para crer naquela verdade, mas o dever é implícito. Por outro lado, a “Notificação” do Vaticano II anexada à Lumen Gentium expressamente declara que todos os pontos, quaisquer que sejam, que “o Concílio propõe como sendo a doutrina do Magistério Supremo da Igreja devem ser acatados e seguidos por todos e cada um dos fiéis”. Ademais, quem quer que se dê ao trabalho de consultar o volume de 1965 dos Acta Apostolicae Sedis pode ver, numa vista de olhos, que Paulo VI promulgou o texto gravemente errôneo da liberdade religiosa e muitos outros em 8 de dezembro de 1965 com todas as formalidades que podiam ser exigidas se ele tivesse sido um verdadeiro papa promulgando verdade sã e obrigatória. Eis um excerto: “…nós mandamos e ordenamos que tudo o que foi decidido sinodalmente pelo Concílio seja observado santa e religiosamente por todos os fiéis, para glória de Deus… Estas coisas nós sancionamos e estabelecemos, decretando que a presente carta deve ser e permanecer sempre firme, válida e eficaz; e que obtenha e retenha seus efeitos plenos e íntegros… Dada em Roma, sob o anel do pescador…” De fato, não se poderia duvidar do caráter obrigatório de doutrina assim proposta, se ao menos tivesse sido proposta por um católico e não fosse manifestamente falsa e herética.

Isso nos traz à tentativa final de ;evadir a conclusão óbvia: a alegação perfeitamente exasperante, endêmica entre apoiadores da FSSPX, de que para o ensinamento ser infalível ele precisa ser ortodoxo, e, portanto, que o ensinamento do Vaticano II não pode ser infalível. Isso é verdadeiro, claro, no sentido de que nenhuma expressão de erro flagrante pode ter sido protegida pela infalibilidade. Mas é desastrosamente falso se é usado para fazer da ortodoxia da doutrina ensinada uma condição para a intervenção protetora do Espírito Santo que chamamos de infalibilidade, ou um parâmetro pelo qual os fiéis possam julgar o que é infalível e o que não é. A ortodoxia garantida de um dado ensinamento é consequência de sua infalibilidade. Não pode ser critério para detectar essa infalibilidade. Isso destruiria todo o propósito da infalibilidade. Os fiéis não seriam mais capazes de reconhecer a sã doutrina pelo fato de ela ter sido ensinada pelo papa e os bispos em união. Teriam de avaliar o ensinamento do papa e bispos à luz de um critério de ortodoxia extrínseco e não-infalível. Eles não mais seriam dóceis súditos do Magistério, mas os juízes dele e, portanto, superiores a ele. Concedido que as doutrinas do Vaticano II são falsas e perniciosas e, portanto, não foram protegidas pela infalibilidade. A questão aí surge: por que não? Que elas são falsas não é resposta a essa questão. Estamos perguntando porque o Espírito Santo não as protegeu evitando que fossem falsas. Os fatos mostram que as condições para a infalibilidade foram aparentemente cumpridas, pois os bispos de 7 de dezembro de 1965 sob Paulo VI foram moralmente unânimes em apresentar à Igreja o ensinamento deles sobre fé e moral como definitivo e a ser crido como consequência da própria revelação divina. Se eles não foram, na realidade, infalíveis, isso só pode ser porque o sustentáculo do consenso deles, a autoridade de um verdadeiro bispo de Roma, estava faltando.

APÊNDICE (acrescentado por mim)

SOBRE A INFALIBILIDADE DA REGRA PRÓXIMA DA FÉ, 2006

Dois erros opostos na “tradição” de nossos dias

Condição absoluta para a nossa salvação é crer com certeza na Revelação de Deus. Essa condição não é arbitrária: temos necessidade de conhecer com certeza a Revelação de Deus. Ele no-la revelou para ser conhecida e utilizada, e não somente para pôr à prova a docilidade da nossa inteligência. Ora, para crer com certeza na Revelação de Deus, é preciso saber com certeza o que Deus realmente revelou. Todos sabemos que essa Revelação foi confiada à Igreja Católica e Romana, para guardá-la e transmiti-la aos fiéis. Os fiéis devem, portanto, crer em tudo o que a Igreja lhes ensina. Mas a dificuldade se apresenta novamente: como saber com certeza o que a Igreja ensina? Assim como a doutrina da Igreja Católica deve ser a nossa regra da fé, assim também temos necessidade de uma regra próxima da fé, que nos permita conhecer qual é essa doutrina. Essa regra próxima é necessariamente a maneira (ou as maneiras) utilizada(s) pela Igreja para comunicar o seu ensinamento aos fiéis. E essa regra próxima da fé, que comunica o ensinamento católico aos fiéis, deve necessariamente ser infalível, sem o que, ela não é capaz de engendrar senão assentimento condicional, que substituiria a inabalável fé divina pela opinião, como faz o protestantismo. Ora, no mundo da tradição de nossos dias, encontram-se dois erros, opostos um ao outro e opostos ambos a essa infalibilidade da regra próxima da fé. O primeiro erro é o que exige, entre as condições de todo ato infalível da Igreja, a conformidade com a doutrina tradicional. Essa conformidade… é aquilo que a infalibilidade garante. É evidente que, se essa conformidade fosse uma condição a verificar antes de saber se o ensinamento está garantido ou não pelo Espírito Santo, o fiel não poderia mais crer simpliciter aquilo que a Igreja lhe diz. Nenhum ato da Igreja, por mais solene, poderia ser suficiente para autorizar o “credo” do fiel. Antes de crer, o fiel deveria controlar a doutrina do Magistério, para ver se a regra próxima não se teria enganado, por azar. Mas o seu controle nunca poderia ser mais do que um ato de sua própria inteligência, no mínimo tão falível quanto o juízo do Papa sobre o mesmo assunto. Na melhor das hipóteses, somente um grande teólogo, detentor de conhecimento detalhado da tradição, seria capaz de saber se o Magistério teria razão. E, por conseguinte, somente o grande teólogo seria capaz de fazer um ato de fé. O simples fiel seria reduzido a salvar-se pela opinião… a qual não é virtude teologal e nunca salvou ninguém. O erro oposto a esse é o que impõe ao fiel o dever de aderir às doutrinas que emanem do “magistério vivo” sem se incomodar de conciliar as aparentes contradições entre o objeto da fé apresentado hoje e aquele apresentado ontem. Afirma-se, com muita exatidão, que somente o Magistério é competente para esclarecer com autoridade as dúvidas sobre o sentido de seu conteúdo e imagina-se, por conseguinte, que uma mudança radical de doutrina (ecumenismo? liberdade religiosa?) não apresenta nenhuma dificuldade para a consciência católica, a qual só tem de se curvar. É irônico de constatar que o Commonitorium de São Vicente de Lérins, invocado pelos fautores desses dois erros, foi escrito precisamente para opor-se a eles e para inculcar os princípios sãos a aplicar, como todos podem constatar ao lê-lo. Esse segundo erro destrói a fé, ao fazer com que seu ato próprio seja a adesão a uma fórmula, mas não a uma verdade (necessariamente imutável). O ato pelo qual cremos, fundados no ensinamento do Magistério, que a Igreja Católica e Romana tem exatamente a mesma conotação que o Corpo Místico de Jesus Cristo, por exemplo, nunca teria podido ser ato de fé se houvesse a menor possibilidade de rever seja a doutrina seja nosso assentimento a ela.

É por isso que, contrapondo-se a cada um desses erros, a doutrina católica é suficientemente resumida na palavra “Credo”: eu creio, não “eu opino” nem “eu subscrevo”.

Tradução de Felipe Coelho.

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