S. Tomás de Aquino | 1269-1272
PROÊMIO
1. Assim como ensina o Filósofo [Aristóteles] na sua Politica [sem acento, no original em latim], quando muitos se ordenam a um, é preciso que um deles seja regulador ou regente, e os demais os regulados ou regidos. Isso fica claro na união da alma com o corpo, pois a alma naturalmente impera e o corpo obedece. [Politica, I, c. 5, 1254a34-36] De modo semelhante ocorre entre as almas dos homens, pois o irascível e o concupiscível são regidos pela ordem natural da razão. Ora, todas as ciências e artes estão ordenadas a um fim, que é a perfeição do homem, a saber, a sua felicidade. [Ethica Nicomachea, I, c. 1, 1094a1; c. 4, 1095a15-20] Por isso é necessário que uma delas seja a ciência reitora de todas as outras e, retamente, reivindique o nome sabedoria, pois é próprio do sábio ordenar os outros. [Metaphysica, I, c. 2, 980a18]
2. Pode-se considerar qual ciência é essa e acerca de quais coisas ela trata se cuidadosamente se examina o modo como alguém é idôneo para governar Na verdade, tal como diz o Filósofo no referido livro [Politica, III, c. 1, 1254a31; 1254b29], os homens de intelecto vigoroso naturalmente são senhores e reitores dos outros; segue-se disso que os homens que são fortes no corpo, mas, de fato, deficientes no intelecto, são naturalmente servos. Do mesmo modo, essa ciência deve ser naturalmente reguladora das outras, pois ela é maximamente intelectual. Ora, essa ciência é a maximamente versada sobre os inteligíveis.
3. É triplo o modo como podemos, ao máximo, tratar dos entes inteligíveis. Primeiro, pela ordem do saber. De fato, as coisas, das quais o intelecto tem certeza, parecem ser as mais inteligíveis. E porque a certeza da ciência que se adquire pelo intelecto se dá mediante o conhecimento das causas, parece que o conhecimento das causas é maximamente intelectual. Por isso, aquela ciência que considera as primeiras causas maximamente parece ser reguladora das outras.
4. Segundo, pela comparação do intelecto com os sentidos. De fato, porque o conhecimento dos sentidos é sobre os particulares, parece que o intelecto difere dele porque conhece os universais. Então esta ciência também é ao máximo intelectual, pois versa maximamente sobre os princípios universais, que são o ente e os que seguem o ente, como o uno e o múltiplo, a potência e o ato. Contudo, tais coisas não devem permanecer completamente indeterminadas, como se não fosse possível ter o conhecimento completo dessas coisas que são próprias de algum gênero ou espécie. Nem devem ser consideradas por qualquer ciência particular, porque cada uma das ciências particulares precisa conhecer o seu gênero de entes. Então, pela mesma razão, em qualquer ciência particular seriam considerados os entes particulares. Resta, portanto, que aqueles entes inteligíveis sejam considerados por uma ciência comum que, sendo maximamente intelectual, seja reguladora das outras.
5. Terceiro, pelo próprio conhecimento do intelecto. Como cada coisa tem aptidão de ser inteligível, enquanto separada da matéria, é preciso que ela trate ao máximo dos inteligíveis, que ao máximo são separados da matéria. Mas é preciso que o inteligível seja proporcional ao intelecto e de um único gênero, pois o intelecto e o inteligível são unos em ato. Elas, que ao máximo são separadas da matéria, não só abstraem a matéria signada, como as formas naturais consideradas no universal, das quais trata a ciência natural, [sciencia naturalis, referindo-se à filosofia natural ou física geral aristotélica] mas são abstraídas de toda matéria sensível. E não só segundo a razão, como a Matemática, mas também segundo o ser, como Deus e as inteligências. Por isso, a ciência que considera essas coisas parece ser maximamente intelectual, e primeira ou senhora das demais.
6. Contudo, esta tríplice consideração não deve ser atribuída a diversas ciências, mas a uma mesma ciência. De fato, as referidas substâncias separadas são universais e são as primeiras causas do ser. Ora, é próprio dessa ciência considerar as causas próprias de algum gênero e do próprio gênero, assim como a ciência natural considera os princípios do corpo natural. Por isso, é preciso que pertença a essa mesma ciência considerar as substâncias separadas, o ente comum, o que é o gênero, quais são as referidas substâncias comuns e as causas universais.
7. Do que se evidencia que, ainda que essa referida ciência considere aquelas três coisas, ela, porém, não considera qualquer uma delas como sujeito, mas o seu próprio, que é somente o ente comum. Esse é, pois, o sujeito desta ciência, cujas causas e afecções investigamos, não, porém, as próprias causas de algum gênero investigado. De fato, o conhecimento de algum gênero de causas é o fim que a consideração da ciência alcança. Ora, dado que o sujeito dessa ciência é o ente comum, diz-se, pois, de tudo que é separado da matéria, segundo o ser e a razão. Na verdade, dizem-se separadas segundo o ser e a razão não só aquelas coisas que nunca podem existir na matéria, como Deus e as substâncias intelectuais, mas também aquelas que podem existir sem a matéria, tal como o ente comum. Entretanto, isto não aconteceria se dependessem da matéria segundo o ser.
8. Portanto, segundo aquelas três referências, pelas quais se atinge a perfeição dessa ciência, derivam-se três nomes. Diz-se ciência divina ou teologia, enquanto considera as referidas substâncias (que nunca podem existir na matéria). Metafísica, enquanto considera o ente e as coisas que são conseguintes ao ente. Essa ciência transfísica se encontra na via de resolução, como a mais comum, depois da menos comum. Diz-se filosofia primeira, enquanto considera as primeiras causas das coisas. Fica claro, pois, qual é o sujeito desta ciência, como se relaciona com as outras ciências e com qual nome deve ser denominada.
LIVRO I
LIÇÃO 1
1. Aristóteles antecipa na introdução [Metaphysica, I, c. 1, 980a21-983a3] as duas coisas de que trata esta ciência. Primeiro, mostra sobre o que versa esta ciência. Segundo, mostra que ciência é esta, onde diz: “de fato, não é uma ciência prática” [livro I, lição 3]. Acerca do que versa esta ciência ele propõe duas coisas. Primeira, mostra que o próprio desta ciência, que se denomina sabedoria, é considerar as causas. Segunda, considera quais são as causas ou os tipos de causas, onde diz: “ora, porque buscamos esta ciência” [livro I, lição 2]. Sobre o que é próprio desta ciência, primeiro argui acerca de certos pressupostos necessários para a demonstração do que ele propôs. Segundo, tira desses pressupostos a razão de sua argumentação, onde diz: ora, o raciocínio que agora propomos. Sobre a arguição acerca dos pressupostos ele propõe duas coisas. Primeira, demonstra de um modo geral a dignidade da ciência. Segunda, demonstra a ordem do conhecimento, onde diz: “por isso, os animais”, etc. Ele demonstra a dignidade da ciência pelo fato de que ela é naturalmente desejada por todos, como um fim. Por conseguinte, acerca disso propõe duas coisas. Primeira, propõe a sua intenção. Segunda, demonstra a dignidade desta ciência, onde diz: “ora, sinal disso”. Por isso, ele propõe no início que o desejo de conhecer é naturalmente inerente a todos os homens.
2. Três podem ser as razões desse desejo natural de saber.
Primeira, que toda coisa deseja naturalmente a sua perfeição. Assim, diz-se que a matéria deseja a forma, como o imperfeito deseja a sua perfeição. Desta maneira, o intelecto, pelo qual o homem é aquilo que é, considerado em si mesmo, é, em potência, todas as coisas, mas não é conduzido ao ato senão pelo conhecimento, pois, antes de as inteligir, nenhuma das coisas existe nele, como se diz no livro II do Sobre a alma. [De anima, III, c. 4, 429a22-25] Assim, cada um naturalmente deseja a ciência, como a matéria deseja a forma.
3. Segunda, porque qualquer coisa tem uma inclinação natural para a sua própria operação, [“o agir segue o ser”, In III Sent., d. 3, q. 2, a. 1 co.] como o que tem calor tem inclinação para aquecer, e o que tem peso para mover-se para baixo. Entretanto, a operação própria do homem, enquanto homem, é conhecer. Com efeito, é por causa disso que ele se distingue de todas as demais coisas. Deste modo, o desejo do homem naturalmente se inclina ao conhecer e, por conseguinte, ao saber.
4. Terceira, porque cada coisa é desejável para que se una ao seu princípio, pois é nisso que consiste a perfeição de cada coisa. Por isso, o movimento circular é perfeitíssimo, como se prova no livro VIII da Física, [Physica, VIII, c. 9, 265a13-266a9] porque o fim se une ao princípio. Ora, as substâncias separadas, que são como princípios do intelecto humano, e com relação a elas se tem o intelecto humano como imperfeito ao perfeito, não se unem ao homem senão pelo intelecto. E por isso, nisso consiste a felicidade última do homem. E, por causa disso, o homem naturalmente deseja a sabedoria. E não obsta esse desejo, se alguns homens não se dedicam ao estudo desta ciência, pois sempre desejam aquele fim, embora sejam desviados da busca desse fim por algum motivo, como por causa da dificuldade de alcançá-lo, ou mesmo por causa de outras ocupações. Desse modo, embora seja legítimo a todos os homens o desejo da sabedoria, nem todos se dedicam ao estudo desta ciência, pois são impedidos por outras coisas, como pelos prazeres ou necessidades da vida presente, ou mesmo por causa da preguiça advinda de uma vida de trabalho. Isso é o que propõe Aristóteles quando demonstra que se deve investigar esta ciência não por causa da sua utilidade, mas para saber que ciência é esta, pois isso não é em vão, uma vez que não pode ser em vão este desejo natural. […]
RECOMENDAÇÃO COMPLEMENTAR: A DEMONSTRAÇÃO E A CIÊNCIA
Excerto de TOMÁS DE AQUINO; Comentário à Metafísica de Aristóteles I-IV (volume 1), Vide Editorial, 2016, pp. 23-25 e 30-32.
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