Brian W. Harrison | 2004
[NOTA: o autor é um sacerdote ordenado na hierarquia novos ordo. Por isso, não o chamamos aqui de “Padre”Brian W. Harrison.]
Assim como Christopher Ferrara, vi o artigo de George Sim Johnston, “Why Vatican II Was Necessary” [Por Que o Vaticano II Foi Necessário], na edição de março de 2004 da revista Crisis, e devo confessar que reagi basicamente do mesmo jeito que o Sr. Ferrara (Remnant [periódico reputado tradicionalista – N. do T.], 15 de março de 2004). A tentativa de Johnston de convencer-nos do porquê de o Concílio ter sido tão necessário, valioso e importante, a despeito de seus resultados generalizadamente caóticos, impressionou-me como consistindo predominantemente de generalizações ocas, requentadas e não corroboradas. Dou meu assentimento aos ensinamentos doutrinais do Vaticano II (interpretados, no caso de obscuridades e ambiguidades, à luz da Tradição). Estou, porém, inclinado a concordar que há fortes argumentos em favor da acusação, com o benefício de quase quarenta anos de recuo histórico, de que foi, no geral, inoportuno.
Receio que a visão nada entusiástica que o Sr. Ferrara tem do Concílio tende a ser respaldada por certos outros esqueletos no armário conciliar [ou, como se diz em português, podres ocultos do concílio – N. do T.] que descobri pessoalmente nas últimas semanas. Encontram-se “enterrados” nas dezenas de volumes gigantescos (e amplamente inacessíveis) em latim que contêm o registro completo de tudo o que foi dito e feito oficialmente no Concílio (as Acta Synodalia), e tenho minhas dúvidas se já foram trazidos ao conhecimento do público em geral.
[Dignitatis Humanae
e os “direitos” da má consciência]
Uma das muitas dificuldades em interpretar a Declaração sobre a Liberdade Religiosa, do Vaticano II, e em reconciliá-la com a doutrina tradicional, consiste no fato de que, embora o crucial artigo 2 deste documento, Dignitatis Humanae (DH), comece afirmando que o direito à liberdade religiosa tem a ver com crenças religiosas sustentadas conscienciosamente, termina afirmando que esse mesmo direito é desfrutado inclusive por quem não está em boa consciência (isto é, aqueles que “não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à verdade”). Curioso a respeito de se esse confuso, e à primeira vista contraditório, tratamento da consciência em DHn.º 2 foi explicado oficialmente aos Padres Conciliares antes de eles votarem sobre isso, comecei a procurar informações nas Acta Synodalia (AS) em nossa biblioteca da universidade. E o que desenterrei impressionou-me como um exemplo de escol de como aquele famoso “Reno” se lançou no “Tibre” durante o Vaticano II: manipulação da maioria mais conservadora, mas um tanto complacente e ingênua, pelos poderosos e “progressistas” bispos norte-europeus e seus peritos.
A passagem acima, reconhecendo imunidade de coerção para aqueles cuja propaganda religiosa não é feita com boa consciência, estava ausente das três primeiras redações da DH. Apareceu, por fim, na quarta (penúltima) redação, apresentada em 25 de outubro de 1965, apenas poucas semanas antes do término do Concílio (cf. AS IV, V, p. 79). O bispo holandês Emílio De Smedt, o relator (porta-voz oficial da Comissão de Redação), fez então sua relatio (discurso) aos Padres em concílio, explicando oficialmente essa quarta redação e suas mudanças com relação à redação anterior. Todavia, ao fazê-lo, ele nem sequer mencionou esse importante acréscimo ao texto! Pelo contrário, ao comentar a nova versão do artigo 2, De Smedt frisou repetidamente a importância da consciência, citando as palavras (inalteradas) no primeiro parágrafo do n.º 2 que afirmam que a pessoa humana não deve ser constrangida a agir contra (nem impedida de agir em conformidade com) a “sua consciência” (“suam conscientiam” – ver ibid., pp. 101-102). É verdade que todos os Padres tinham sobre a escrivaninha cópias impressas da antiga e da nova redação em colunas paralelas, mas chega a parecer que De Smedt esperava que, se ele não chamasse a atenção deles para essa mudança, muitos deles ou não a perceberiam ou não lhe atribuiriam muita importância.
Noutro extenso impresso, distribuído mas não lido em aula conciliar, descobrimos nas letras miúdas que essa mudança fora requerida “em nome de mais de uma centena” de Padres (ibid., p. 116, n. 25). Só que o leitor não é informado de quem foram esses mais de cem Padres; e ainda não há a mínima explicação por De Smedt sobre como o papel da consciência na liberdade religiosa deveria ser entendido agora, à luz dessas declarações contrastantes no mesmo artigo do documento.
Será que o bispo De Smedt talvez honestamente pensou que esse acréscimo textual não fosse suficientemente importante para merecer explicação oficial? Essa desculpa parece esfarrapada logo de cara, e parece ainda mais esfarrapada à luz do que finalmente veio à tona. Pois ao longo das poucas semanas seguintes, quando a quinta e última redação da DH ia sendo elaborada, três Padres submeteram requerimento à Comissão de que esse acréscimo perplexitante favorecedor de pessoas em má consciência fosse simplesmente omitido. Numerosos outros Padres pediram que fosse significativamente emendado. Porém, em sua relatio final, De Smedt acusou recebimento desses requerimentos apenas para descartá-los sumariamente, declarando que o acréscimo era importante demais e substancial demais para ser omitido e, além disso, já havia sido aprovado pela grande maioria na votação sobre a quarta redação em outubro! Mas o prelado holandês deu, afinal, aos Padres pelo menos alguma explicação dessa mudança “substancial” que ele agora declarava imutável? De jeito nenhum. Ainda nem uma única palavra. A emenda inexplicada fora rápida, silenciosa e despistadoramente forçada sem debate algum e sem chamar a atenção pública para ela. Em seguida, porém, quando alguns Padres mais conservadores enfim expressaram discordância com a emenda, respondeu-se-lhes abruptamente que ela agora estava gravada na pedra.
[Nostra Aetate
e o “dever” de não converter os judeus]
Outra descoberta que fiz nas Acta Synodalia tem relevância para o escândalo provocado, há quase dois anos, quando o Cardeal William Keeler anunciou que, segundo ele e importante comitê de teólogos americanos, a Igreja Católica não crê mais necessário, ou mesmo legítimo, tentar converter os judeus ao Cristianismo. O Cardeal Keeler foi logo respaldado (com talvez uma ou duas nuanças menores) pelo mais alto oficial do Vaticano encarregado do ecumenismo e do diálogo com os judeus, o Cardeal Walter Kasper.
Ora, o que foi que o Concílio mesmo disse, se é que disse algo, nessa matéria? Ao pesquisar a história textual da Declaração sobre as Religiões Não Cristãs do Vaticano II, Nostra Aetate (NA), descobri que a redação original do artigo 4 naquele documento era, na realidade, bastante direta e assertiva sobre as esperanças católicas de conversões judaicas à fé verdadeira. Incluía a seguinte passagem: “É importante recordar que a integração do povo judeu ao seio da Igreja faz parte da esperança cristã. Pois, conforme o ensinamento do Apóstolo (cf. Rom. 11: 25), a Igreja aguarda com fé inabalável e anseio profundo a entrada desse povo na plenitude do Povo de Deus, restaurado por Cristo” (AS III, VIII, p. 640, tradução minha). No versículo bíblico aqui citado, o Espírito Santo, através de São Paulo, fala da “cegueira” dos judeus incréus como algo temporário e profetiza no versículo seguinte a salvação de Israel como nação, após a “plenitude dos gentios” ter entrado no seio da Igreja.
Agora, os leitores provavelmente concordarão que essa redação original da NA n.º 4, juntamente com sua citação bíblica, não soa exatamente dentro do “espírito” de Suas Eminências Keeler e Kasper. A propósito, já se ouviu algum Papa pós-conciliar ou oficial do Vaticano pós-conciliar declarar que está aguardando com “fé inabalável e anseio profundo” (fide inconcussa ac desiderio magno) a entrada em massa de judeus na Igreja Católica? E, quanto à presente “cegueira” deles, ora, qualquer menção oficial disso estaria agora fora de questão! Pois seria, é claro, imediatamente afogada por uivos mundiais de protesto midiático indignado perante tal recrudescência do “antissemitismo” católico de alto escalão.
Para ser justo, dever-se-ia acrescentar aqui que o novo Catecismo da Igreja Católica de fato apresenta-nos São Pedro, em Pentecostes, pregando aos judeus a necessidade que eles têm de conversão, e continua a ensinar a verdade revelada de que Israel, depois de seu presente “endurecimento”, eventualmente reconhecerá Cristo como o seu Messias (ver n.º 674). Além disso, a Igreja, em sua Liturgia das Horas, ou Ofício Divino, pós-conciliar ainda reza pela conversão dos judeus diversas vezes ao longo do ano (ao menos a edição original em latim que uso; não posso garantir a versão em inglês, que é geralmente mais modernista). Mas claro que nunca ouvimos nenhum líder da Igreja moderna chamar a atenção publicamente para esses textos oficiais pouco conhecidos que respaldam a doutrina tradicional. Nem ouvimos algum louvor ou encorajamento qualquer do Vaticano àqueles poucos indivíduos e grupelhos católicos remanescentes que efetivamente fazem algum esfoço concreto para evangelizar os judeus.
Voltemos a Nostra Aetate. Descobri que o quase silêncio e a inatividade do establishment da Igreja pós-conciliar sobre a necessidade que os judeus têm de se converter remonta provavelmente a uma decisão consciente do próprio Concílio durante a preparação desta Declaração. Quando a redação revisada da NA foi distribuída, com a redação original em colunas paralelas, os Padres descobriram que a seção no artigo 4 supramencionada sobre a conversão dos judeus, com a citação específica de Romanos 11,25, fora agora totalmente omitida. E (diferentemente do bispo De Smedt) o relator para este documento, o cardeal jesuíta alemão Agostinho Bea, foi bastante declarado sobre a razão pela qual a versão original passara a ser considerada inaceitável: “Grande quantidade de Padres”, anunciou Bea em sua relatio, “requisitaram que, ao falarmos dessa ‘esperança’, dado que ela tem que ver com um mistério, deveríamos evitar toda e qualquer aparência de proselitismo. Outros pediram que a mesma esperança cristã aplicando-se a todos os povos deveria também ser exprimida de algum modo. Na versão presente deste parágrafo, procuramos satisfazer a todos esses pedidos” (ibid., p. 648, itálico acrescentado).
A tática de Sua Eminência e de todos aqueles Padres em “grande quantidade” (mas não nomeados) era, então, estigmatizar a redação anterior com o rótulo pejorativo de “proselitismo” e “promover” a futura conversão dos judeus à etérea condição de “mistério”, destarte insinuando que ela, de algum modo, “simplesmente acontecerá” espontaneamente um dia sem a necessidade de nenhuma atividade missionária humana por parte dos católicos.
A tática, combinada com o grande prestígio pessoal do Cardeal Bea, funcionou perfeitamente. A vasta maioria dos Padres votou de acordo em favor da nova redação, relegando assim à mais marginal das notas marginais esse ponto particular da nossa “fé inabalável” acerca dos judeus. Ele se demonstrou literalmente impronunciável num documento conciliar moderno e, assim, foi “enterrado” em meio a uma passagem bem mais longa da Epístola aos Romanos indicada (mas não citada) entre várias outras referências bíblicas em nota a NA n.º 4. O que aparece agora naquela passagem é uma declaração bem mais fraca referente às esperanças cristãs pela humanidade em geral. E, em conformidade com o espírito irênico dessa Declaração “pastoral”, toda a menção explícita a alguém efetivamente aderindo, entrando ou retornando à Igreja Católica foi cuidadosamente suprimida. Lemos que “a Igreja espera por aquele dia, só de Deus conhecido, em que todos os povos invocarão a Deus com uma só voz e ‘o servirão debaixo dum mesmo jugo’ (Sof. 3,9; cfr. Is. 66,23; Salm. 65,4; Rom. 11, 11-32)”.
Não soa isso um bocado mais… amigável que a redação original? De qualquer forma, a história dessa mudança textual porventura ajuda a explicar por que as declarações do alto escalão depreciando toda e qualquer ulterior evangelização dos judeus não suscitou ainda, após quase dois anos, nenhuma reprimenda seja do Sumo Pontífice ou do Cardeal Ratzinger (ambos os quais, é claro, tiveram participação ativa no Vaticano II). Pois, se fosse contestado sobre essa questão, Kasper, o Parceiro de Diálogo Camarada, poderia apontar direto para o precedente do Koncílio Camarada. Afinal de contas, qual a grande diferença entre a admoestação oficialmente respaldada deste para “evitar toda e qualquer aparência de proselitismo” com os judeus e a doutrina de Keeler/Kasper de que os católicos não devem “ter os judeus como alvo de conversão”? Não é que o Vaticano II tenha ensinado com todas as letras essa falsidade que agora é propagada impunemente até mesmo por Príncipes da Igreja; mas agora podemos ver que o Concílio preparou o caminho para a difusão desse erro ao conscientemente declinar ensinar – ou até mesmo insinuar – a verdade oposta, mas “politicamente incorreta”.
Trad. por Felipe Coelho, de: “Skeletons in the Conciliar Closet”, in: The Remnant, edição de 31 de março de 2004,
[Subtítulos entre colchetes pelo tradutor.]
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