S. João da Cruz | 1576-1591
[Incluímos sob tal denominação, por ordem cronológica, os escritos breves de São João da Cruz que desenvolvem um tema espiritual concreto, seja de índole ocasional, seja como uma nova etapa de seu magistério espiritual. Quando não possuímos os textos do Santo, damos, ao menos, uma informação sucinta e, se possível, um apanhado dos mesmos].
[a] [Explicação das palavras “Busca-te em mim”, a pedido de Santa Teresa – No concurso promovido pela Santa, entre seus amigos, em Ávila, pelos fins de 1576, para a explicação das palavras “Busca-te em mim”, que Nosso Senhor lhe havia dito na oração, tomou parte também, com sua respectiva resposta, São João da Cruz, então confessor da Encarnação. Ainda que o escrito original não haja chegado até nós, conservou-se, contudo, a seguinte crítica, finamente burlesca que Santa Teresa fez do relatório apresentado por Fr. João da Cruz, em seu célebre “Vejamen”. Através dela podemos vislumbrar, de algum modo, a índole e o conteúdo desse trabalho].
… “Contudo, perdoo-lhe seus erros (a Julião de Ávila), porque não foi extenso como meu Pai Fr. João da Cruz.
[Do Pai Fr. João da Cruz]
Muito boa doutrina dá em sua resposta para quem se quiser entregar aos Exercícios que fazem na Companhia de Jesus; não, porém, para o nosso propósito. Caro custaria se não pudéssemos
– buscar a Deus a não ser depois de mortos ao mundo.
Não o estava a Madalena, nem a Samaritana, nem a Cananéia quando o acharam;
– também insiste muito em fazer-se a alma uma mesma coisa com Deus em união; mas, quando isto se dá, quando faz Deus esta mercê, não lhe dirá que o busque, pois já o encontrou.
Deus me livre de gente espiritual que de tudo quer fazer contemplação perfeita, – dê no que quer der!
Contudo, lhe agradecemos por nos ter feito compreender tão bem o que não perguntamos. Por isso é bom falar sempre de Deus, pois donde não esperamos nos vem o proveito.
… São todos tão divinos esses senhores, que acabaram perdendo o jogo por excesso de cartas; pois, como disse, a quem Deus concedeu esta mercê de ter a alma unida a si, não lhe dirá que o busque, uma vez que já o possui” (BMC, 6, p. 67-68).
[b] Cautelas a serem usadas contra os três inimigos da alma, ensinadas por nosso santo Pai. Fr. João da Cruz às monjas de Beas. [Nota da Vozes (N.d.V.): Nós as publicamos segundo o Ms. 6.296 BNM, f. 43r-47r, cópia autêntica mandada tirar por André da Encarnação, de um antigo manuscrito do convento de carmelitas descalços de Málaga. Procuramos suprir as deficiências colocando as adições entre colchetes, com o auxílio de outra cópia existente no Ms. 7.741 BNM, t. [104]r-[108]v Não abordamos, por enquanto, o problema de uma segunda redação das Cautelas, que teria sido destinada aos religiosos em geral.]
[O Calvário, 1578-1579]
1. O religioso que deseja chegar rapidamente ao santo recolhimento, silêncio espiritual, desnudez e pobreza de espírito, em que se goza o pacífico refrigério do Espírito Santo e chega a alma a unir-se com Deus e se liberta dos entraves das criaturas deste mundo, se defende das astúcias e engodos do demônio e se desembaraça de si mesmo, deve exercitar-se nos pontos que vão ser apresentados.
* 2. É, pois, de advertir que todos os danos recebidos pela alma procedem de seus já citados inimigos, isto é: mundo, demônio e carne. O mundo é o inimigo que menos dificuldades oferece. O demônio é o mais obscuro de entender. A carne é o mais tenaz deles e suas arremetidas duram enquanto durar o homem velho.
* 3. Para vencer qualquer destes inimigos é mister vencê-los os três, e, enfraquecendo um, se enfraquecem os outros dois, e, vencidos estes três, cessa a guerra para a alma.
CONTRA O MUNDO
* 4. Para conseguires libertar-te perfeitamente do dano que o mundo te pode causar, hás de usar de três cautelas.
Primeira cautela
* 5. A primeira é que a respeito de todas as pessoas tenhas igual amor e igual esquecimento, quer sejam parentes, quer não o sejam, desprendendo o coração tanto de uns como de outros; e até, de certo modo, mais dos parentes pelo receio de que a carne e o sangue venham a exacerbar-se com o amor natural que costuma existir entre os parentes e que convém mortificar sempre para atingir a perfeição espiritual.
* 6. Considera a todos como estranhos e desta maneira cumprirás melhor o teu dever para com eles do que pondo neles a afeição que deves a Deus. Não ames a uma pessoa mais do que a outra, porque errarás, pois é digno de maior amor aquele que Deus mais ama e tu ignoras a quem ele ama [mais]. Esquecendo-os, porém, igualmente a todos, como te convém fazer para o santo recolhimento, livrar-te-ás do erro do mais e do menos com relação a eles.
Nada penses a respeito deles, nem bem, nem mal. Evita-os, o quanto te for possível. E se fores remisso em observar estes pontos, não saberás ser religioso, nem poderás chegar ao santo recolhimento, nem livrar-te das imperfeições que isso traz consigo. E, se neste particular quiseres permitir-te alguma liberdade, com um ou com outro, enganar-te-á o demônio ou tu a ti mesmo sob [cor de bem ou de mal, mila Se assim procederes, terás segurança, pois, de outro modo, não poderás libertar-te das imperfeições e danos que as criaturas costumam causar à alma.
Segunda cautela
7. A segunda cautela contra o mundo se refere aos bens temporais. Para te livrares, completamente, dos danos desta espécie e refreares a demasia do apetite, faz-se mister aborreceres toda a forma de propriedade. Não deves ter cuidado algum a esse respeito, nem de comida, nem de vestido, nem de outras coisas criadas, nem do dia de amanhã, empregando essa solicitude em outra coisa] mais elevada, que é buscar o reino de Deus, ou seja, em não faltar a Deus, porque o demais, como disse Sua Majestade (Mt 6,33), ser-nos-á dado por acréscimo, pois não há de esquecer de ti aquele que cuida dos animais. Com isso adquirirás silêncio e paz nos sentidos.
Terceira cautela
8. A terceira cautela é muito necessária para saberes te guardar, no convento, de todos os danos a respeito dos religiosos, pois, por não haverem observado, muitos não apenas perderam a paz e o bem da sua alma, como vieram e vêm, ordinariamente, a cair em muitos males e pecados. Consiste essa cautela em evitares com todo o cuidado o pensamento e mais ainda falar sobre o que se passa na comunidade; o que acontece ou aconteceu com qualquer religioso em particular; não te ocupes da sua maneira de ser, do seu trato, das suas coisas, por mais graves que sejam. Nem a pretexto de zelo, de remédio a dar, [digas coisa alguma], a não ser a quem de direito convém dizê-lo a seu tempo. Não te escandalizes jamais nem te admires de coisas que vejas ou percebas, procurando guardar a tua alma no esquecimento de tudo isso. Porque se quiseres reparar em alguma coisa, mesmo que vivas entre anjos, muitas coisas não te parecerão bem por não compreenderes a substância delas.
* 9. Sirva-te de exemplo a mulher de Ló (cf. Gn 19,26), que por se ter perturbado com a perdição dos sodomitas e voltado a cabeça para observar o que se passava, a castigou o Senhor transformando-a em estátua de sal. É para que entendas que, ainda no caso de viveres entre demônios, Deus quer que vivas de tal modo no meio deles que não desvies a cabeça do pensamento às suas coisas, mas que as deixes totalmente, procurando conservar a alma pura e inteira em Deus, sem que qualquer pensamento, a respeito disso ou daquilo, te possa estorvar.
E para isso, tem por fato comprovado que nos conventos e comunidades nunca há de faltar empecilhos, pois nunca faltam demônios que procuram derrubar [os] santos, e Deus assim o permite para os exercitar e provar.
E, se não tomares precaução, segundo ficou dito, fazendo como se não estivesses em casa, não poderás ser religioso, por mais que te esforces, nem chegar à santa desnudez e recolhimento, nem libertar-te dos danos que isso acarreta. Porque, não fazendo assim, por melhor intenção e zelo de que estejas animado, numa ou noutra coisa te colherá o demônio, e bastante envolvido já te encontras quando dás ensejo a que a tua alma se distraia em qualquer dessas coisas. Recorda-te do que disse o apóstolo São Tiago (1,26); Se alguém julga que é religioso, não refreando a língua, é vã a sua religião. E isto entende-se não menos da língua interior que da exterior.
CONTRA O DEMÔNIO
10. Destas três cautelas deve lançar mão quem aspirar à perfeição, a fim de livrar-se do demônio, seu segundo inimigo. Para isso, é de advertir que, entre os numerosos ardis usados pelo demônio para enganar os espirituais, o mais comum é enganá-los sob a aparência de bem e não sob aparência de mal; pois sabe que, conhecido o mal, dificilmente o abraçariam. E, assim, hás de acautelar-te sempre do que te parece bem, máxime não intervindo nisso a obediência. A segurança e o acerto nestas coisas reside no conselho daquele que o deve dar.
Primeira cautela
11. Seja, pois, a primeira cautela no sentido de que jamais te movas a coisa alguma, ainda que te pareça boa e cheia de caridade, quer para ti quer para qualquer outra pessoa, dentro e fora de casa, sem ordem de obediência, a não ser para aquilo a que por ordem estás obrigado. Com este modo de proceder, adquirirás mérito e segurança. Livra-te de propriedade e fugirás do demônio e evitarás danos que nem imaginas e de que, a seu tempo, Deus te pedirá contas. Mas, se não observares esta cautela, tanto no pouco como no muito, por mais que te pareça acertar, não deixarás de ser enganado, em pouco ou em muito, pelo demônio. E se não te regeres em tudo pela obediência, já não estarás isento de erro culposo, pois Deus quer antes a obediência que sacrifícios (1Sm 15,22). As ações do religioso não lhe pertencem, mas são da obediência e se dela as subtraíres, delas te pedirão contas, como se fossem perdidas.
Segunda cautela
12. Seja a segunda cautela no sentido de jamais considerares o prelado menos que Deus, seja ele quem for, pois foi constituído em seu lugar. Acautela-te neste ponto, pois o demônio, inimigo da humildade, mete muito aqui a mão. B considerando o prelado do modo acima dito, será grande o bem e o aproveitamento que te advirão, e não sendo assim, grande a perda e o dano. E, portanto, põe-te cuidadosamente de sobreaviso para não considerares a sua índole, o seu trato, a sua aparência, nem outras maneiras suas de proceder; porque com isso far-te-ás tanto dano que virás a mudar a obediência de divina em humana, movendo-te ou não, apenas pelos modos que puderes observar visivelmente. te no prelado, e não por Deus invisível, a quem nele serves. E a tua obediência será vá ou tanto mais infrutuosa quanto mais te magoares com a índole adversa do teu prelado, ou com a sua índole agradável, te alegrares. Asseguro-te que por haver o demônio feito com que considerassem as coisas por este prisma, induzindo a pôr os olhos nestas exterioridades, acerca da obediência, conseguiu arruinar na perfeição a muitíssimos religiosos, e seus atos de obediência são de muito pouco valor diante de Deus.
Se não te esforçares neste ponto, de modo que já pouco te importe que o prelado seja este ou aquele, pelo que pessoalmente te diz respeito, não poderás, de forma alguma, ser espiritual nem observar bem os teus votos.
Terceira cautela
13. A terceira cautela, diretamente contra o demônio, é que do íntimo do coração procures sempre humilhar-te em palavras e em obras, regozijando-te do bem dos outros como se fosse teu e querendo que sejam preferidos a ti em todas as coisas e isto com inteira sinceridade. Assim agin-do, vencerás o mal com o bem, expulsarás o demônio para longe e andarás com alegria no coração; e procura exercitar mais isto com os que menos te caírem em graça.
E fica sabendo que, se assim não exercitares, não chegaras a verdadeira caridade, nem nela aproveita nas. E sê sempre mais amigo de ser por todos ensinado do que de querer ensinar ao menor entre todos.
CONTRA A CARNE
14. De mais três cautelas há de usar aquele que quiser vencer-se a si mesmo e à sua sensualidade, seu terceiro inimigo.
Primeira cautela
15. A primeira cautela é que compreendas que não vieste para o convento senão para que todos te instruam e exercitem. E, assim, para te livrares das imperfeições e perturbações que te podem oferecer a índole e o trato dos religiosos e tirar proveito de todos os acontecimentos, convém pensar que todos os que se encontram no convento são agentes encarregados de te exercitar, como o são na realidade: que uns te hão de aperfeiçoar por palavras, outros por obras, outros pensando mal de ti e que a tudo hás de estar sujeito, como a estátua o está ao que a lavra, pinta e doura. E se não observares esta norma, não conseguirás vencer tua sensualidade e sentimentos, nem saberás conviver em harmonia no convento com os religiosos, nem alcançarás a santa paz, nem te livrarás de muitos tropeços e males.
Segunda cautela
16. A segunda cautela é que jamais deixes de fazer as obras por não encontrar nelas gosto e prazer, se convier ao serviço do Senhor que se façam; nem as executes apenas pelo prazer e gosto que te proporcionarem, senão [que] deves fazê-las tanto como as desagradáveis. Porque sem isso é impossível adquirires constância e venceres a tua fraqueza.
Terceira cautela
17. A terceira cautela seja que nunca o varão espiritual ponha os olhos no prazer dos exercícios para a eles se apegar, vindo a fazê-los só pelo gosto que lhe proporcionam; nem fuia do amargo deles, mas antes, procure de preferência o trabalhoso e o desagradável.
Com isso põe-se freio à sensualidade, pois, de outra forma, não perderás o amor-próprio, nem ganharás o amor de Deus.
[c] [Quatro avisos a um carmelita descalço para alcançar a perfeição] [N.d.V.: No Ms, 6.296 BNM se conservam quatro cópias autenticadas desse trabalho de São João da Cruz: a primeira (f. 9r-12r) de “um caderninho manuscrito, contendo cinco vias, primorosamente encadernado em veludo carmezim, com fecho e cantoneiras de prata” existente nas carmelitas descalças de Bujalance (Córdoba) até a Guerra Civil de 1936, quando desapareceu; as outras três (f. 29r-42r), de um manuscrito antigo conservado no Colégio de carmelitas descalços de Baeza. Todas elas transcrevem esta pequena obra do Santo, sem solução de continuidade, nas duas partes de que se compõe – Avisos e Graus de Perfeição – como a apresentamos aqui, pela primeira vez. Seguimos a transcrição do código de Bujalance, ainda que tenhamos acrescentado também, em lugar conveniente, alguns “graus de perfeição” existentes no de Baeza, que não se encontram naquele.]
Jesus Mariae Filius
1. Sua santa Caridade [N.d.V.: tratamento que, entre os carmelitas descalços, se dava aos religiosos que não eram sacerdotes] me pediu muita coisa em poucas palavras. Para satisfazer-lhe o desejo, ser-me-ia necessário muito tempo e papel. Como não disponho de uma nem de outra coisa, procurarei sintetizar meu pensamento é indicar somente alguns pontos e avisos tão densos em conteúdo que, quem se esmerar em observá-los, atingirá uma elevada perfeição.
Aquele que quiser ser verdadeiro religioso, cumprir as obrigações inerentes ao estado que prometeu a Deus, progredir nas virtudes e gozar das consolações e suavidade do Espírito Santo, não conseguirá, a não ser que procure observar com suma diligência os quatro avisos seguintes, a saber: renúncia, mortificação, exercício de virtudes, solidão corporal e espiritual.
2. Para observar o primeiro, que diz respeito à renúncia, convém viver de tal maneira no convento, como se aí não existisse mais ninguém. Assim, não imiscuir-se jamais, seja por palavras, seja por pensamentos, naquilo que se passa na comunidade ou no que sucede a algum religioso em particular, fazendo abstração dos bens, dos males, dos temperamentos e, mesmo que o mundo desabe, esforçar-se por não se deter nem se envolver nisso, a fim de conservar a tranquilidade da alma. Lembre-se da mulher de Ló, que, por haver voltado a cabeça para observar os clamores e ruído dos que pereciam, converteu-se em dura pedra (Gn 19,26).
Empregue suma diligência em observar este ponto, porque com isso ver-se-á desvencilhado de muitos pecados e imperfeições e conservará a paz e a tranquilidade de sua alma com grande aproveitamento diante de Deus e dos homens.
E tenha isso muito a peito, como coisa de capital importância, pois por terem sido remissos neste ponto, muitos religiosos não apenas nunca brilharam na virtude é na observância como foram sempre retrocedendo de mal a pior.
3. Para observar o segundo conselho, acerca da mortificação e fazer progressos nesta matéria, convém que procure assimilar perfeitamente, e gravar no coração a seguinte verdade: que não veio ao convento senão para que o aperfeiçoem e exercitem na virtude, à semelhança da pedra que deve ser polida e lavrada antes de ser assentada no edifício.
E, assim, procure considerar a todos os que se encontram no convento como outros tantos agentes que Deus aí colocou especialmente para o desbastarem e polirem na mortificação. Uns hão de aperfeiçoá-lo por meio da palavra, dizendo aquilo que não quisera ouvir; outros, pelas ações, fazendo contra ele o que não quisera sofrer; outros o mortificarão com a sua própria maneira de ser, mostrando-se sempre molesto e pesado, tanto no porte como na atitude; outros ainda, através do pensamento, dando a entender ou a experimentar que eles não o apreciam nem amam.
E deve estar disposto a sofrer todas essas mortificações e aborrecimentos com paciência interior, calando por amor de Deus, considerando que não veio à Religião a não ser para que assim o lapidassem e o tornassem digno do céu. Se não fosse para isso, mais lhe valeria ter permanecido no século, correndo ao encalço de prazeres, honrarias, prestígio e buscando as próprias comodidades.um sb sa-midio.
4. Este segundo aviso é imprescindível ao religioso, a fim de que possa observar os compromissos inerentes ao estado abraçado, conseguir a verdadeira humildade, quietação interior e gozo no Espírito Santo. E se a isso não se aplicar, não saberá ser religioso e nem sequer entenderá por que veio à Religião; não estará à procura de Cristo, mas à procura de si mesmo; não encontrará paz para a sua alma e nem deixará de cair em pecado e de sentir-se muitas vezes perturbado.
E que, na Religião, jamais faltarão ocasiões, nem Deus quer que faltem, uma vez que ele ali conduz as almas a fim de que sejam provadas e purificadas, como o ouro sob a ação do fogo e do martelo. Convém, pois, que não lhes faltem provas e tentações, procedentes dos homens e dos demônios, fogo de angústias e desalentos.
Nestes, há de se exercitar o religioso, procurando sempre suportá-los com paciência e conformidade com a vontade de Deus e não levá-los de tal modo que, ao invés de ser aprovado por Deus, venha ele a reprová-lo por se haver recusado a carregar a cruz de Cristo com paciência.
Por não compreenderem que vieram para isso, muitos religiosos suportam mal os outros e, no tempo de prestar conta, ficarão bem confusos e logrados.
5. Para observar o terceiro aviso, referente ao exercício das virtudes, convém ter constância em cumprir as obrigações impostas pela sua Religião e as prescrições da obediência, sem nenhum respeito de mundo, mas visando unicamente a Deus. E para assim agir e não correr o risco de enganar-se, jamais se detenha em considerar o gosto ou o enfado que a execução de uma obra lhe possa oferecer, para empreendê-la ou omiti-la; considere apenas o motivo que existe para fazê-la por Deus. E, assim, há de empreender todas as coisas, agradáveis ou aborrecidas, visando com elas unicamente servir a Deus.
6. E para agir virilmente, e com esta constância, adquirir logo as virtudes, procure sempre inclinar-se mais para o dificultoso do que para o fácil; mais para o áspero do que para o suave e mais para o árduo e enfadonho da obra do que para o saboroso e aprazível dela e cuide de não andar escolhendo o que é menos cruz, porque a carga é ligeira e quanto mais pesa, mais suave se torna quando a levamos por Deus.
Procure, também, que os irmãos lhe sejam preferidos em todas as comodidades, diligenciando por ocupar sempre o lugar mais humilde e isto com todas as veras do coração; pois este é o caminho para se avantajar no espiritual, conforme nos diz Deus em seu Evangelho: Quem se humilha será exaltado (Lc 14,11).
7. Para observar o quarto conselho, relativo à solidão, convém-lhe considerar todas as coisas do mundo como já acabadas para si; assim, quando lhe for forçoso ocupar-se delas, faça-o com tanto desprendimento como se realmente não existissem.
8. Com as coisas que se passam fora do convento, não se embarace, de modo algum, pois Deus já o dispensou delas e do seu cuidado. O que puder ser feito através de uma terceira pessoa, não o faça por si mesmo, porque é de grande conveniência não querer ver nem ser visto.
Pondere bem que, se aos simples fiéis Deus pedirá rigorosas contas no dia do juízo de uma palavra ociosa, com quanto maior razão não o fará ao religioso, cuja vida e obras lhe são inteiramente consagradas.
9. Com isso, não pretendo insinuar que se descuide do ofício de que o encarregaram ou de qualquer outro que a obediência lhe designe, não empregando toda a solicitude requerida. O que quero dizer é que deve executá-lo de modo a ficar nele isento de culpa, pois isto não o quer Deus nem os superiores.
Para consegui-lo, procure estar continuamente entregue à oração e, entre as ocupações exteriores, não a negligen. cie. Quer esteja comendo, bebendo, tratando com seculares ou ocupado em qualquer outra coisa, esteja sempre sus. pirando por Deus e dirigindo para ele o afeto do coração. isso é muito necessário para a solidão interior, na qual se requer da alma não ocupar-se em pensamento algum que não seja endereçado a Deus e ao esquecimento de todas as coisas que existem e de tudo quanto acontece nesta mísera vida, de duração tão efêmera.
Não se interesse em saber coisa alguma, a não ser como há de servir melhor a Deus e observar com mais perfeição as obrigações de seu instituto.
10. Se S. Caridade se esforçar por observar essas quatro coisas, muito em breve chegará à perfeição. São de tal modo interdependentes, que se houver negligência num dos pontos, por aí perderá tudo quanto pelos outros conseguir ir aproveitando e lucrando.
O GRAUS DE PERFEIÇÃO
1. Por nada deste mundo cometer pecado, nem mesmo venial com plena advertência, nem imperfeição conhecida.
2. Procurar andar sempre na presença de Deus, real, imaginária ou unitiva, segundo se coadune com as obras que está fazendo.
[Próprios do Código de Baezal]
3. Nada fazer nem dizer coisa de importância, que Cristo não pudesse fazer ou dizer se estivesse no estado em que me encontro e tivesse a idade e a saúde que eu tenho.
4. Procure em todas as coisas a maior honra e glória de Deus.
5. Por nenhuma ocupação deixar a oração mental que é o sustento da alma.
6. Não omitir o exame de consciência, sob pretexto de ocupações, e, por cada falta cometida, fazer alguma penitência.
7. Ter grande arrependimento por qualquer tempo não aproveitado ou que se lhe escapa sem amar a Deus.
8. Em todas as coisas, altas e baixas, tenha a Deus por fim, pois de outro modo não crescerá em perfeição e mérito.
9. Nunca falte à oração e quando experimentar aridez e dificuldade, por isso mesmo persevere nela, porque Deus quer muitas vezes ver o que há na sua alma e isso não se prova na facilidade e no gosto.
10. Do céu e da terra sempre o mais baixo e o lugar e o ofício mais ínfimo.
11. Nunca se intrometa naquilo de que não te encarregaram, nem discuta sobre alguma coisa, ainda que esteja com a razão. E, no que lhe for ordenado, se lhe derem a unha (como se costuma dizer) não queira tomar também a mão, pois alguns, nisto se enganam, imaginando que têm obrigação de fazer aquilo que, bem examinado, nada os obriga.
12. Das coisas alheias não se ocupe, sejam elas boas ou más, porque além do perigo que há de pecar, essa ocupação é causa [é causa, ms. escusa] de distrações e amesquinha o espírito.
13. Procure sempre confessar-se com profundo conhecimento de sua miséria e com sinceridade cristalina.
14. Ainda que as coisas de sua obrigação e ofício se lhe tornem dificultosas e enfadonhas, nem por isso desanime, porque não há de ser sempre assim, e Deus, que experimenta a alma simulando trabalho no preceito [cf. Sl 93,20], daí a pouco lhe fará sentir o bem e o lucro.
15. Lembre-se sempre de que tudo quanto passar por si, seja próspero ou adverso, vem de Deus, para que assim nem num se ensoberbeça nem no outro desanime.
16. Recorde-se sempre de que não veio senão para ser santo e assim não consinta que reine em sua alma algo que não leve à santidade.
17. Seja sempre mais amigo de dar prazer aos outros do que a si mesmo é, assim, com relação ao próximo, não terá inveja nem predomínio. Entenda-se, porém, que isso se refere ao que for segundo a perfeição, porque Deus muito se aborrece com os que não antepõem o que lhe agrada ao beneplácido dos homens.
Soli Deo honor et gloria
[d] [Propriedades do Pássaro Solitário]
“Sei que o Santo Pai Fr. João da Cruz escreveu os livros a que se refere a pergunta em questão, dos quais me foi dado manusear alguns dos cadernos originais, em Granada, e tenho certeza de que são da sua autoria; vi, também, outro pequeno tratado composto por ele, intitulado:
“Propriedade do Pássaro Solitário”, onde, ,dirigindo-se aos espirituais, explicava como a alma, no caminho da per-feição, há de anelar pelo céu e tê-lo sempre presente” (ISABEL DA ENCARNAÇÃO: Declaração autógrafa, Arquivo das Carmelitas Descalças de Jaén, f. [7]r)
[e] [Pequeno Tratado sobre a Fé]
“Esta testemunha teve ocasião de ver um pequeno tratado escrito de próprio punho pelo servo de Deus que o compôs a pedido de certas religiosas chamadas as de Armeña,
– no qual discorria sobre a virtude da fé, de modo sublime” (LUÍS DE S. JERÔNIMO, Ms. Vaticano, proc. apost. de Baeza, Sig 51, f. 60).
[f] [Os primeiros comentários avulsos sobre o “Cântico”
– Antes que o “Cântico espiritual” se cristalizasse no comentário extenso e orgânico que hoje conhecemos, deve ter passado por um período de comentários avulsos e de circunstâncias, relativas a uma ou a outra de suas estrofes, e que mais tarde teriam sido incorporados ao tratado geral. Possuímos indícios da existência de tais fragmentos].
“Em nossas religiosas de Ocaña há uma pequena folha em 8° do ‘Cântico’ do Santo que explica o verso: A ceia que recreia e enamora. Têm-no por original e quero crer que o seja como esses de Madri. Existe também outra, em casa de uma senhora a que chamam ‘A surda do Tineo’, que segundo dizem se refere à primeira canção”.
“Na Peñuela há uma folha em 8° tida por original de nosso Santo Pai. E a explicação daquele verso do seu ‘Cântico’: Ali lhe prometi ser sua esposa. Duvido se coincide com as 4 de Madri”.
“No convento de religiosas de São Clemente se encontram dois fragmentos do original do ‘Cântico’ de nosso Santo Pai, não sei se serão da mesma espécie do nosso convento de Madri”.
“Em nossos conventos de Daimiel, de religiosos e religiosas, há três folhas em 8° do Cântico’ de nosso Santo Pai, veneradas como originais. Creio que são como as de Madri” (ANDRÉ DA ENCARNAÇÃO, Memórias Históricas, letra C, n. 29, 34, 57, 59. Ms. 13.482. BNM, f. 35r–v).
[g] [Sobre a História e Milagres de Nossa Senhora da Caridade e do Santo Cristo de Guadalcázar – Tratado que foi perdido e que, segundo uns, teria sido escrito em Guadalcázar em 1586, e, segundo outros, na Peñuela, pouco antes de sua morte, no ano de 1591].
“Chegando o varão do Senhor certo dia em Guadalcázar foi acometido de febre e de uma dor de lado, muito forte… Na convalescença dessa enfermidade,
– parece que o Santo escreveu aqui em Guadalcázar a história de Nossa Senhora da Caridade e do Santo Cristo de Guadalcázar com seus milagres.
Este tratado se perdeu, apesar das cuidadosas buscas de D. Luís de Córdoba, bispo de Málaga, que tinha um túmulo reservado na igreja dessas sagradas imagens e das diligências que pessoalmente empreguei, a seu pedido, quando assisti às informações para o processo do Santo [1616-1618], a história de Nossa Senhora da Caridade e do Santo Cristo de Guadalcázar, com seus milagres.
“… Aconteceu vir a Peñuela, onde, estando com grande edificação e recolhimento
– e escrevendo um livro sobre os milagres das imagens de Guadalcázar (que, se não se perdesse, teria sido de grande proveito, pois tratava de como os milagres podiam ser fal. sos ou verdadeiros e falava acerca do espírito verdadeiro e do falso. Um padre que teve ocasião de ler alguns cadernos originais deste livro – trata-se de Fr. Alonso da Mãe de Deus, natural de Linares – me disse ser coisa admirável), digo que encontrando-se na Peñuela foi acometido de umas terçazinhas…” (Declaração de AGOSTINHO DE SÃO JOSÉ, súdito do Santo em Granada: Ms. 8568, BNM, f. 291r).
[h] [Censura e parecer sobre o Espírito e o modo de proceder na oração de uma carmelita descalça – Provavelmente em Segóvia entre os anos 1588-1589. Chegou até nós, através do seguinte testemunho]:
“… A uma religiosa dada à oração, sem base de humildade e animada de desejos curiosos de penetrar grandes segredos do espírito, saiu-lhe o demônio ao encalço simulando efeitos de bom espírito, tanto de suaves sentimentos como de re-velações, e isso pelo caminho da fraude, com que costuma ter êxito entre os poucos humildes e nada discretos. E tão cauteloso andava ele em encobrir o deletério embuste, que, falando essa religiosa acerca de seu espírito e oração com vários letrados de diferentes ordens, todos o tiveram por bom. Contudo, o venerável Pe. Fr. Nicolau de Jesus Maria… então prelado superior de todos os descalços…, não acabava de assegurar-se do caminho dessa religiosa..; para examiná-lo com mais cuidado, ordenou-lhe que escrevesse sobre a sua oração e os efeitos que produzia. Entregou depois esse papel ao Pai Fr. João da Cruz, que na ocasião era primeiro definidor da Ordem, pela grande segurança que seu espírito lhe inspirava e por sabê-lo muito esclarecido por Deus em coisas deste gênero; pediu-lhe, então, que lesse atentamente aquela relação e colocasse no rodapé da folha o seu parecer. Lendo nosso venerável Pai o escrito, percebeu logo de que foco procedia aquela luz e deu sua opinião com palavras tão proveitosas e substanciais que bem revelam quão esclarecido estava por Deus para discernir entre a verdadeira e a falsa luz.
E pela luz que tais palavras podem comunicar aos espirituais, pareceu-me bem referi-las aqui em sua pureza, e são as seguintes:
No comportamento afetivo desta alma parece-me haver defeitos que impedem um parecer favorável acerca do espírito que a anima.
O primeiro é que se nota nela muita avidez de propriedade, ao passo que o espírito verdadeiro se caracteriza sempre por grande desnudez no apetite.
O segundo, que tem excessiva segurança e pouco receio de errar, interiormente, sendo que o espírito de Deus nunca anda sem ele, para proteger a alma contra o mal, segundo diz o sábio (cf. Pr 15,27).
O terceiro, que parece ter a preocupação de procurar persuadir a todos o que creiam ser muito bom tudo quanto se passa nela, enquanto o verdadeiro espírito procura, ao invés, que todos o tenham em pouco e o depreciem, fazendo ele próprio o mesmo.
O quarto e principal, é que, nesta maneira de agir, não se notam efeitos de humildade; ora, quando as mercês são verdadeiras – consoante ela aqui o afirma ordinariamente nunca se comunicam à alma sem primeiro desfazê-la e aniquilá-la em abatimento interior de humildade. E, caso houvesse experimentado este efeito, ela não teria deixado de anotá-lo aqui, escrevendo algo e até estendendo-se bastante sobre isso; porque a primeira coisa que ocorre à alma expressar e ter em grande apreço são os efeitos de humildade cer. tamente tão notórios que não é possível dissimulá-los. E ainda que não costumem aparecer tão claramente em todas as apreensões de Deus, nestas, que ela aqui denomina união, estão sempre presentes: A humilhação precede a glória (Pr 18,12), e Foi bom para mim ser humilhado (SI 118,71).
O quinto, que o estilo e a linguagem empregados não são próprios do espírito que ela pretende aqui significar, porquanto o mesmo espírito sugere estilo mais simples, desprovido de afetação e de exageros, segundo notamos neste. E tudo quanto declara ter dito a Deus e Deus a ela, parece disparate.
O que eu aconselharia é que não mandem nem permitam escrever coisa alguma a esse respeito, nem o confessor mostre complacência em ouvi-la; ao contrário, procure dar pouco apreço e atalhar tais confidências; além disso, submetam-na à prova no exercício das virtudes, com todo rigor, principalmente no desprezo, humildade e obediência; e no som produzido pelo toque manifestar-se-á a brandura da alma causada por tantas mercês. E as provas hão de ser boas, porque demônio algum deixará de sofrer algo a troco de manter a sua honra” (QUIROGA, p. 281-284). [N.d.V: Como o leitor terá notado, não incluímos entre os “pequenos tratados espirituais” do Santo os Avisos para depois de Professos, editados com a primeira Instrução de Noviços dos Carmelitas Descalços (Madri, 1591). Pessoalmente, estamos convictos da sua autenticidade sanjuanista e cremos havê-lo provado e defendido em várias ocasiões, aduzindo numerosas e abalizadas razões. Sabemos, entretanto, que outros estudiosos do Santo não pensam do mesmo modo e lhes respeitamos as opiniões. Em atenção a eles, não queremos assumir a responsabilidade de incluir, por iniciativa própria, a referida pequena obra no corpo dos escritos comumente atribuídos a São João da Cruz. Publicamo-la em apêndice, no fim do volume. Do mesmo modo, não inserimos em nossa edição a Oração à Virgem, que durante algum tempo foi atribuída ao Santo, mas que o Pe. Silvério excluiu do cânon sanjuanista. Quanto ao chamado Autógrafo de Begona, é claro que não pode figurar entre as obras de São João da Cruz, pois, como é sabido, trata-se não de um escrito de sua autoria é sim de uma cópia tirada por ele de um fragmento da autobiografia da Madre Catarina de Jesus (Godínez-Sandoval), e, mesmo sob o aspecto grafológico e ortográfico, seu valor é bastante relativo, precisamente por tratar-se de uma cópia e não de escrito pessoal autônomo e espontâneo.
APÊNDICE
AVISOS PARA DEPOIS DE PROFESSOS*
*. [ver a nota acima]
Avisos que ajudarão o noviço, depois de professo, para a quietude de sua vida e bem espiritual de sua alma.
(1590-1591)
Uma vez que já se tratou da oração e dos exercícios espirituais e corporais em que os noviços se devem exercitar, resta dar lhes alguns avisos acerca de como se hão de ha ver com os prelados, com a comunidade é com a sua profis-são, avisos que daí por diante, depois de professos, os auxiliem a manter a quietude de sua vida e o bem espiritual de sua alma; acerca deles, o mestre instruí-los-á explanando o que se diz aqui de modo sucinto; porque tendo de tratar com homens de diferentes temperamentos, será importante receber alguma orientação nesse sentido.
1. Primeiramente, procure manter sempre diante dos olhos de sua alma a razão que o determinou a vir, que foi para dedicar-se ao serviço de Deus na Religião e em tudo quanto a ela se referir, e que escolheu estado de penitência, humildade, obediência etc., a fim de, com isso, tender à perfeição; afaste, pois, de sua alma, o raciocínio e desejo que não se coadunem com isso, ainda que não se trate de pecado, porque o religioso veio à Religião não apenas para procurar não pecar como também para servir ao Senhor e tender à perfeição.
2. Ouça o que for ordenado pelas Constituições e pelos prelados como voz de Deus e obedeça a Deus no homem, que encontrará grande luz nesse exercício e tudo se lhe tornará muito suave.
3. Com relação aos prelados e aos capítulos da Ordem, proceda com muita lealdade; e quando houver uma obrigação neste sentido, ou competir-lhe por dever de ofício, ou for oficialmente interrogado a respeito do que está acontecendo a si próprio, aos outros ou à Religião, declare-o e comunique o que sente e o que se passa, com as razões que tem para o serviço de Deus. E com isso dê-se por satisfeito, submetendo-se ao que eles determinarem, ainda que seja contrário à sua vontade e parecer; este é, com efeito, o ofício do religioso e a sua profissão o obriga a essa submissão; obediência e total adesão, pois foi precisamente para isso que veio para seguir vontade e parecer de outrem; deve estabelecer isso em sua alma como princípio fundamental, por ser coisa importantíssima para a sua tranquilidade; o contrário, além do orgulho e desprezo de sua profissão e obrigações a ela inerentes, poder-lhe-ia ocasionar muitíssimas inquietações e aflições.
4. Com o prior do convento onde viver e com os religiosos que aí habitarem – é com eles que há de tratar mais frequentemente procure ter amor de filho para com o prior e de irmão para com os religiosos. Isso lhe proporcionará muita luz e paz nos relacionamentos que deverá manter com eles. Obedeça ao prior como se fosse a voz de Deus a ordenar-lhe e, caso sinta disposição para isso, trate com ele as coisas de sua alma; revele-lhe seus desejos e tenha-o por confessor; isso obrigará particularmente o prior a velar por si, e, como a prelado e confessor, o Senhor lhe concede-tá maior luz para orientá-lo. Ajude-o no que puder, se isso não implicar em culpa; compadeça-se de suas imprudências e ignorâncias – pois, enfim, é humano – e desculpe-o naquilo que puder, segundo Deus, que tudo isso é ofício de filhos e costuma ser muito agradável ao Senhor. Abstenha-se de murmurar contra ele, revelando-lhe as faltas em público, pois com isso se ofende o Senhor. Com os religiosos faça o papel de irmão, ajudando-os e suportando-os fraternalmente, segundo Deus. E quando houver algo a revelar aos superiores, faça-o com caridade, segundo o espírito das Constituições.
5. Quanto ao que for testemunha ocular do procedimento dos prelados de casa, embora ignorando a causa e os fatos que se passam, aprove-o e não julgue a respeito, nem lhe pareça mal; pois assim como seria temerário alguém se pôr a julgar sem ser juiz e sem examinar o processo, lavrando logo a sentença, assim também acontece com o religioso que age deste modo. E, se tem conhecimento do que se passa, paute-se pelo parecer do prelado, pois foi para isso que veio, e deste modo coibirá a miséria de nossa natureza corrupta que se compraz em desaprovar as ações dos prelados e isto lhe proporcionará uma grande paz.
6. Considere-se como elemento integrante de sua Religião e como tal há de conduzir-se e deixar-se guiar pelos superiores; tenha-se por parte de um todo, amoldando-se ao bem da sua comunidade. Deste princípio lhe advirá grande paz quando não lhe concederem aquilo que deseja e que lhe parece ser conveniente; porque ou se engana, ou o prelado – a quem está obrigado a submeter-se – é de opinião e vontade diversas; ou ainda, considerando o bem comum, isso não deve ser concedido. Pode acontecer, por vezes, que a concessão de alguma coisa a um indivíduo em particular, não se harmonizando com o bem comum, se torne intolerável. E o prelado deve ter sempre em mira o bem comum, fazendo-o prevalecer sobre o bem particular, tanto na observância e correção regulares, como nas atitudes, concedendo ou negando, segundo convier em ordem a isso. Agindo deste modo, o religioso coibirá suas veleidades de transferência, seja de casa ou de província, e mesmo a inconstância nos exercícios e não se afligirá quando não for atendido em qualquer outra eventual pretensão.
7. Não tenha amizades particulares, mas ame a todos no Senhor e, ao prelado, mais que os outros; e nunca, seja qual for o motivo, pessoa ou coisa particular, perca esse maior amor e obediência ao prelado, nem faça coisa alguma contra ele.
8. No exterior, siga vida comum, como os demais; e, no interior, singularize-se quanto puder nas virtudes.
9. Não se admire pelo fato de existirem nas Religiões alguns elementos observantes, outros amigos de liberdade e comodidade, porque serem todos bons é coisa do céu, e serem todos maus é próprio do inferno. Esta vida é um tecido mesclado de maus e bons, e nas Religiões também há de haver essa diversidade: achegue-se ao grupo melhor e deixe a Deus o cuidado de todos.
10. Não fique observando se na sua comunidade há quem goze de mais comodidade e conforto nem se entristeça por esse motivo; antes, compadeça-se deles e cuide de olhar para si, pois cada um há de receber o prêmio do que houver feito, e quanto mais observante tiver sido, tanto melhor será para ele.
11. Exercite-se na obediência, simplesmente com a intenção de obedecer e assim afastará mil inconvenientes de sua alma; aquele que busca uma obediência prudente e suave, não busca propriamente obediência e sim prudência e seu prazer em ser governado; ora, isso também os pagãos desejam. A obediência religiosa visa mais alto, e, por meio dela, Deus, nosso Senhor, vai guiando o súdito para o seu bem e perfeição, quando a obediência é prudente e quando é imprudente, quando é suave e quando é rigorosa; desde que não ordene o que implicaria em culpa, ela será sempre para ele a voz de Deus, através da qual o Senhor o conduz para o seu bem espiritual
Assim sendo, para que a obediência se torne suave ao religioso, é de suma importância que ele adquira o hábito de obedecer, porque sempre e em tudo encontra o objeto de seu desejo.
12. Na pobreza, grave em seu coração aquilo que a Religião tão judiciosamente ordenou, ou seja, viver em vida comum e igual para todos; deste modo evitará os trabalhos e inconvenientes que a faculdade de poder ter algo para uso particular costuma trazer consigo. Observe este ponto como coisa muito importante e, assim, viverá completamente livre de cuidados.
13. Na castidade, abra os olhos, pois conta com um cruel inimigo intrínseco que combate e, muitas vezes, chega a ferir mortalmente através de um simples ato interior de deleite, praticado a sós; com quanto maior razão não o fará nas companhias e ocasiões. Por este motivo, requer vigilância, jejuns, austeridade de vida, clausura e os santos exercícios que se observam em nossa Religião. Com este inimigo o religioso não pode ter meio-termo, nem trégua, nem paz de espécie alguma. Trata-se de vencer ou de ser vencido. Por isso, tenha em grande apreço esses exercícios e peleje com essas armas. Na verdade, ser amigo de comodidades e ser casto são coisas que não se coadunam. E a alma que tem tão poucas forças espirituais, a ponto de se deixar vencer pela tentação de comidas e de conforto, que é de menor monta, ainda menos resistirá à sedução da sensualidade, que é mais forte, máxime quando, à corrupção da natureza e aguilhoadas do demônio, vêm juntar-se comidas, comodidades e ocasiões perigosas que encontra a cada passo nas saídas frequentes, em virtude da infidelidade à vida de clausura que professou.
14. Já que veio à Religião para ser obediente, pobre e casto, recorde-se disso quando lhe ordenarem algo contra a sua vontade, quando lhe faltar alguma coisa e para conservar-se em casa e para ser fiel às penitências da Ordem, que são atos dessas virtudes que professou. Procure alegrar-se com isso e esteja atento em não desejar obediência agradável, pobreza regalada, e castidade fácil e em meio a ocasiões, pois cairá nelas.
15. Considere que já renunciou aos afetos do século em coisas mundanas, quando entrou em Religião, tais como: liberdades, fazer a própria vontade, ter abundância e conforto, ser estimado, mandar, ter prestígio etc. Esteja, pois, atento para impedir que entrem de novo em seu coração esses afetos do mundo, em matéria de Religião, que serão, quiçá, piores em si mesmos e mais difíceis de desarraigar.
16. Qualquer pensamento ou coisa que não for de molde a induzi-lo e movê-lo a cumprir a observância de sua profissão, inclinando-o a ser humilde, a mortificar-se, a não desejar ser conhecido nem estimado etc., devem ser afastados como tentação contrária ao estado que escolheu e professou.
17. Se, como miserável, cair em alguma falta, procure a correção regular e ame a quem lha proporciona, pois uma coisa e outra são meios estabelecidos por Deus, nosso Senhor, e por sua Igreja, visando o seu bem: corrigem o passado e previnem o que está para vir, a fim de que não vá adiante em sua perdição; isto aconteceu a muitos que não tiveram no princípio o auxílio dessa medicina espiritual. E, se o ser corrigido com culpa é um grande bem e remédio, o ser corrigido sem ela é grande mercê do Senhor e coroa; por isso, se tal coisa lhe suceder, alegre-se no Senhor por esse motivo.
18. Em todos os ofícios que lhe designarem, procure tirar, primeiramente, proveito espiritual para si; segundo, para a sua Religião; e, terceiro, para os outros, naquilo que nem a si nem à Religião repugne. Esta é a ordem da caridade e o zelo bem ordenado pelas almas.
19. Durante o tempo em que sua alma experimentar tristeza, securas ou paixões, não tome resolução alguma, ainda que lhe pareça tratar-se de coisa evidente, pois, serenada a borrasca, talvez lhe parecerá completamente o contrário e então julgará com mais acerto.
20. Não avalie a virtude de sua alma pelos gostos, ainda que pareçam espirituais, pois talvez não o sejam. E ainda que o fossem, a medida não há de ser essa, e sim a humildade, o desejo de mortificação e o hábito das virtudes.
21. Domine logo, de início, em sua alma, os ímpetos de fervor e os desejos, porque muitas vezes ofuscam a razão e causam inconvenientes. E quando se tratar de coisa conveniente, sem isso, conscientemente, segundo Deus, consegui-lo-á depois melhor.
22. Tudo quanto suceder, exceto o pecado pessoal, receba-o como vindo do Senhor e nada será capaz de entristecê-lo. Conduza-se nisso segundo o que lhe pede o Senhor e em tudo fará aquilo que deve. Submeta-se à vontade do Senhor nas ocorrências e assim há de alegrar-se. Dependa do Senhor em tudo e seja a obediência sua norma de vida; com isso prosseguirá na caminhada para o céu com muita paz.
Excerto de: SÃO JOÃO DA CRUZ; Obras Completas, Vozes, 2002, pp. 112-130, 1029-1035.
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