A CI RIESCE E O DISCURSO DO CARDEAL OTTAVIANI

Na imagem ilustrativa, Sua Santidade Pio XII impondo o barrete cardinalício no Pe. Alfredo Ottaviani.

Mons. Giuseppe di Meglio | 1954

Algumas pessoas, e mesmo alguns católicos, pretendem que haja oposição entre a alocução proferida pelo Santo Padre à União dos Juristas Católicos Italianos, em 6 de dezembro de 1953, e o discurso feito por Sua Eminência o Cardeal Ottaviani na Universidade Lateranense em 2 de março do mesmo ano, por ocasião do aniversário da elevação do Santo Padre ao Pontificado.

Tal julgamento merece ser rejeitado de imediato, dado que é não somente carente de fundamento, mas também desrespeitoso.

Já para começar, deve-se notar que esses dois discursos tratam de dois problemas diferentes.

O Cardeal Ottaviani tratou do Estado Católico, e dos deveres deste para com a religião em sua própria ordem interna. Ele não estava tratando do caso em que esse Estado Católico entrasse, mediante vínculos jurídicos, numa Comunidade de Estados, como, por exemplo, aquela Comunidade de Estados que é os Estados Unidos da América.

O problema religioso abordado pelo Santo Padre refere-se, por sua vez, a uma comunidade jurídica dentro da qual “os Estados, permanecendo soberanos, se unem livremente”, e na qual “conforme a confissão da grande maioria dos cidadãos, ou com base numa declaração explícita de seus Estatutos, os povos e os Estados-membros da Comunidade se dividirão em Cristãos, não Cristãos, religiosamente indiferentes ou conscientemente laicizados, ou ainda abertamente ateus.”

O Cardeal Ottaviani, expondo os princípios que devem guiar o Estado Católico, afirmou que quando o Estado é “Católico” – ou seja, quando ele é quase totalmente ou em sua maioria absoluta composto de cidadãos Católicos –, é dever dos governantes “defender, contra tudo o que possa solapá-la, a unidade religiosa de um povo que unanimemente sabe estar na posse segura da verdade religiosa.”

Com referência a outros cultos, o Cardeal asseverou que tolerância poderia ser usada, mesmo no caso de um Estado Católico, quando houvesse razões gravíssimas para tanto. Afirma ele que também a Igreja reconhece o fato de alguns governantes de países católicos poderem constatar ser necessário, por razões gravíssimas, conceder tolerância a outros cultos. Mas, passando a aplicações concretas, o Cardeal, sem embargo, recorda-nos de que “tolerância não é a mesma coisa que liberdade de propaganda, fomentadora de discórdias religiosas e perturbadora da segura posse da verdade e da prática religiosa em países como a Itália, a Espanha e semelhantes.”

O Santo Padre, no discurso supramencionado, tocou, como já disse, noutro problema: a questão de se outros cultos podem ser tolerados por todo o território de uma comunidade internacional. Considera ele a questão: “pode-se, numa comunidade de Estados, ao menos em determinadas circunstâncias (almeno in determinate circostanze), estabelecer-se como norma que o livre exercício de uma crença e de uma prática religiosa ou moral, as quais têm valor em um dos Estados-membros, não seja impedido (impedito) em todo o território da Comunidade por meio de leis ou providências coercitivas estatais?” Ou, seguindo o texto da Ci riesce, “em outros termos, pergunta-se se o ‘não impedir’, ou seja, a tolerância (tollerare), seja permitida nestas circunstâncias, e, portanto, a positiva repressão não seja sempre obrigatória.”

O problema da tolerância, tal como foi contemplado no discurso do Cardeal Ottaviani com referência ao Estado Católico e, a fortiori, tal como foi contemplado pelo Santo Padre com referência a uma comunidade de Estados, dentro da qual há muitas religiões, deve ser considerado com aquela pragmaticidade de vistas que o Papa Leão XIII manifestou há tempos já, quando, na Immortale Dei, asseverou ele que, “embora a Igreja julgue ilícito pôr as várias formas de culto divino no mesmo patamar legal que a verdadeira religião, nem por isso Ela condena aqueles governantes que, para assegurarem algum bem maior ou impedirem algum mal maior, pacientemente permitem que o costume ou o uso seja uma espécie de sanção para diversos cultos terem cada qual seu lugar no Estado.” (Acta Leonis XIII, V, 141).

Sua Santidade Pio XII, confirmando o princípio explanado por Leão XIII, afirmou: “O dever de reprimir os erros morais e religiosos não pode, portanto, ser uma última norma de ação. Ele deve estar subordinado a normas mais altas e mais gerais, as quais, em algumas circunstâncias, permitem, e mesmo fazem talvez aparecer como partido melhor, a tolerância do erro para promover um bem maior.”

O Santo Padre falou em “tolerância” e em “impedir”. O conceito de “tolerância” efetivamente pressupõe o de “males”, inerentes à coisa que é tolerada ou não é impedida. Esse é o ensinamento de Santo Agostinho: “Tolerantia quae dicitur . . . non est nisi in malis” (Enarrat. in Ps. 31. MPL, 36:271).

A natureza de tal tolerância, o “princípio teórico fundamental”, foi já, destarte, aplicado pelo Soberano Pontífice à Comunidade dos Estados. Consiste em, “dentro dos limites do possível e do lícito, promover tudo o que facilita e torna mais eficaz a união; podar tudo o que a perturba; tolerar por vezes o que é impossível de corrigir mas que, por outro lado, não deve ser permitido que faça naufragar a comunidade, em razão do bem maior que dela se espera.”

Essas considerações, na medida em que se referem a uma comunidade de Estados de muitas religiões, não são, por seu turno, verificadas no caso contemplado no discurso do Cardeal Ottaviani. Esse discurso fez referência a um Estado Católico individual, não vinculado por laços jurídicos de uma comunidade de Estados dentro da qual diversas religiões existem.

Com referência a todos os Estados, todavia, quer considerados fora dos laços jurídicos ou no interior da ordem jurídica internacional, o Santo Padre confirmou os princípios expostos pelo Cardeal Ottaviani concernentes aos direitos da verdade religiosa, que é a verdade católica. Eis as palavras de Sua Santidade, na alocução Ci riesce:

“Nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for o seu caráter religioso, pode dar um mandato positivo ou uma autorização positiva para ensinar ou fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral. Um mandato ou uma autorização desse gênero não teriam força obrigatória e permaneceriam sem efeito. Nenhuma autoridade poderia dá-los, pois é contra a natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal ou a considerar um e outro como indiferentes. Nem Deus sequer poderia dar tal mandado positivo ou tal autorização positiva, porque estariam em contradição com sua absoluta veracidade e santidade.”

Pio XII resumiu toda a questão nestes termos:

“Assim se esclarecem os dois princípios aos quais é preciso recorrer nos casos concretos para responder à gravíssima questão referente à atitude que o jurista, o homem político e o Estado soberano católico devem adotar em consideração da Comunidade dos Estados quanto a uma fórmula de tolerância religiosa e moral da maneira acima descrita. Primeiro: o que não corresponde à verdade ou à norma da moral objetivamente não tem direito algum, nem à existência, nem à propaganda, nem à ação. Segundo: o fracasso em impedi-lo por meio de leis estatais e disposições coercitivas pode, não obstante, ser justificado no interesse de um bem superior e mais geral.”

Com referência, então, à questão de fato, a questão sobre se em concreto as condições para a tolerância de outras religiões existem, o Santo Padre declarou que a decisão pertence principalmente ao político católico, e que, “no que diz respeito à religião e à moralidade, ele [o político católico] pedirá também o juízo da Igreja”.

Como vemos, a despeito do fato de que ele estava lidando com um problema diferente, a alocução do Santo Padre constitui confirmação magnificentíssima e selo de aprovação soleníssimo do discurso do Cardeal Ottaviani. E, afinal de contas, tal discurso não fez mais que recordar os princípios expostos nas Encíclicas e nos demais documentos pontifícios sobre a questão delicada e grave da relação entre a Igreja e o Estado.

Giuseppe di Meglio
Roma

Trad. por Felipe Coelho, de: “Ci Riesce and Cardinal Ottaviani’s Discourse”, in The American Ecclesiastical Review, n.º 130, de junho de 1954, pp. 384-387.

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