O HUMANISMO CONCILIAR

Pe. Álvaro Calderón, F.S.S.P.X. | 2010

UM HUMANISMO CATÓLICO (CAUSA MATERIAL [DO CONCÍLIO VATICANO II])

1° As supostas raízes evangélicas do humanismo conciliar

Podemos considerar como um fato histórico a afirmação de que o humanismo, novo ou velho, tem origem no cristianismo, porque é dele que tira suas ideias e sua força. Gilson destaca em L’esprit de la philosophie médiévale [Etienne Gilson, L’esprit de la philosophie médiévale, 7ª edição, Vrin, Paris 1948. Ct. c. X : “Le personalisme Chrétien” (p. 194-213)]que, embora a teologia cristã, para poder constituir-se, tenha requerido a contribuição da sabedoria grega, todavia a estima da dignidade do homem na própria individualidade de sua pessoa é consequência do Evangelho. E Maritain não se equivoca quando diz:

“Considerando o humanismo ocidental em suas formas contemporâneas aparentemente mais emancipadas de toda metafísica da transcendência, salta aos olhos que, se nele subsiste um resto de concepção comum da dignidade humana, da liberdade, dos valores desinteressados, é como legado de ideias antigamente cristãs e de sentimentos antes cristãos, hoje secularizados”. [Jacques Maritain, Humanism integral, Aubier, Paris 1936, p.14.]

O que não impede que na avaliação deste fato e na explicação de suas causas haja grande discordância.

Entre os homens antigos – o melhor seria dizer homens pré-cristãos, pois o que diremos aqui segue valendo para todos os povos que permaneceram alheios à influência do cristianismo – a pessoa individual não tem valor algum e é como se nem existisse, a não ser na medida em que se integra na “grande família”, isto é, naquela ordem social na qual ingressa pelo nascimento. Isso não se deu só na Grécia e em Roma, mas também nos povos antigos da Ásia, África e América, assim como no próprio povo de Israel. E é natural que seja assim, já que o homem é um animal político por natureza, que não pode subsistir, nem aperfeiçoar-se, nem agir, nem prolongar-se no tempo senão como parte da sociedade familiar, entendida em sentido mais amplo. De certo modo que é muito verdadeiro, tudo no homem é bem comum, pois apesar de existir como substância individual,. deve sua existência aos pais, e esta dívida de piedade leva-o a dar a vida pela pátria de uma maneira tão espontânea quanto a de quem expõe a mão para proteger a cabeça. Ora, o que é natural ao homem, como a etimologia da palavra indica, é o que vem primeiramente por nascimento e não por livre escolha.

O pertencimento do homem à família é algo tão constitutivo, que Deus o quis respeitar quando elevou o homem à ordem sobrenatural, associando o dom gratuito da justiça original à própria natureza humana, de modo que esse dom também fosse transmitido pelo nascimento. Por isso, perdido este tesouro por causa do primeiro pecado, transmitia-se pelo nascimento não a graça, mas o pecado original.

No povo eleito por Deus aparecem elementos que remontam ao antigo conceito do homem. É bem verdade que sua eleição repousa na vocação de Abraão e na fidelidade de sua resposta, e os títulos sobre sua posse territorial não virão do nascimento, mas da promessa divina. Mas o pertencimento ao povo eleito não deixa de estar ligado ao nascimento, ainda que deva ser selado com a circuncisão e fique muitas vezes sujeito à livre vocação de Deus, como quando escolhe Jacó no lugar de Esaú.

O regime antigo será profundamente alterado com a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e a instituição da Igreja. Porque nesta Sociedade, oferecida a todas as nações como única Arca de salvação, não se ingressa pelo nascimento natural, mas pelo Batismo, que é um nascimento espiritual ao qual se chega por uma resposta livre e pessoal à vocação divina. Hoje custa-nos imaginar a novidade que isso significou para as sociedades antigas. Uma jovem romana não tinha outro nome pessoal além do gentílico de sua família, e pertencia de corpo e alma à sua gens até o momento de ser entregue, por meio do matrimônio, a uma outra família. Atitudes como a de Santa Inês, que aos treze anos decidiu pertencer de corpo e alma a Jesus Cristo, recusando assim o casamento que estipulado para ela, era no conceito antigo algo impensável. Mas eis que, incluindo, sem as suplantar, as sociedades civis, aparece a Igreja como uma Sociedade supe-rior, cuja pátria é o mundo inteiro, e na qual não se ingressa pelo nascimento, mas por livre escolha pessoal. É este o fato que faz com que a pessoa e a sua liberdade apareçam sob uma luz muito diferente da que podiam ter na antiguidade.

Embora essa maneira de pertencer a Cristo e à Igreja realce a pessoa e a sua responsabilidade perante Deus e os homens, todavia continuamos no polo oposto ao individualismo personalista. Pois a Igreja se apresenta, justamente, como a Família universal (católica) – cujo Pater é o próprio Deus e cuja Pátria definitiva é o Reino dos céus –, que continua a considerar o indivíduo como um desvalido incapaz de salvar a si mesmo e que, precisamente por isso, não deve ser retirado de seu contexto político. E esta Sociedade familiar apresenta-se com um poder efetivo (sacramental) para curar seus filhos das feridas de ignorância, malícia e demais misérias, para os socorrer diante dos poderes mundanos e do poder satânico por trás deles: “Não temais, Eu venci o mundo” (Jo 16,33). Serão precisos mil anos para que o filho pródigo esqueça tudo o que lhe dera a Casa paterna, na ilusão de poder abandoná-la para gozar individualmente de sua liberdade pessoal restituída. [32 A explicação que damos aqui não é a que encontramos em Gilson. Devemo-la a Rubén Calderón Bouchet (não é a única coisa que lhe devemos), o qual, sublinhando a diferença nas formas de pertencer à sociedade eclesiástica e à civil, fala muitas vezes da Igreja como uma “sociedade de pessoas”. Cf. La Arcilla y el Hierro, Nueva Hispanidad 2002, p. 198. Na obra já referida, Gilson contrapõe uma suposta especificidade grega, muito provavelmente exagerada, a uma discutível valorização cristã da pessoa individual:

Numa doutrina como a de Platão o que importa não é tanto aquele Sócrates a quem tanto celebrou, senão o Homem. Sócrates só tem importância por ser uma participação excepcionalmente feliz, ainda que acidental, no ser de uma ideia. […] No sistema de Aristóteles, a irrealidade e o caráter acidental do ser físico individual, quando comparado à necessidade dos atos puros, são igualmente evidentes. […] E, em todo caso, justo dizer que a filosofia de Aristóteles enfatiza muito mais a realidade dos indivíduos do que a filosofia de Platão. Mas o fato é que, tanto em uma filosofia como na outra, é o universal o que importa (p. 195).

A suposta estima pela espécie universal acima dos homens individuais que sobretudo Platão teria, não condiz com a preocupação moral e política que em Platão e Aristóteles tanto reluz, de vez que a busca da justiça individual e social só tem sentido para os homens considerados em sua individualidade. Bem como parece exagerada a suposta estima pela indivíduo presente no cristianismo medieval, que Gilson adorna com uma discussão sobre o princípio de individualidade, onde diminui, sem ter motivo, a solução aristotélica.]

O que dará à pessoa humana uma dignidade, que a fragilidade e miséria de sua existência concreta não poderia fundar, será a revelação do amor misericordioso do Pai por nós, que nos deu seu Filho para nos restabelecer por seu Sacrifício em nossa condição de filhos adotivos, e que nos enviou o Espírito Santo para vivificar a Igreja dentro da qual nossa liberdade pudesse ser efetivamente restaurada: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

É neste fato que se baseiam os “novos cristãos” para afirmar que seu personalismo e humanismo tem raízes no Evangelho. Mas as ideias cristãs transformam-se em humanismo depois que saem dos trilhos. [Rubén Calderón Bouchet, “Religión y sociedad”, em Cuadernos de La Reja, n. 3, p. 20: “Há alguma ideia, por mais revolucionária que nos pareça, no curso diacrônico da nossa civilização, que não seja uma ideia cristã descarrilhada? É esta uma verdade que se impõe tão logo nos ponhamos a estudar com um mínimo de inteligência o desenvolvimento da nossa história, e não serão os revolucionários coerentes a negá-la, já que eles mesmos não se cansam de dizer que as coisas que o cristianismo promete para um céu ilusório são as que eles realizarão aqui mesmo na terra, com uma simples mudança nas estruturas da sociedade.] A dignidade do homem deve pôr-se de acordo com quatro dogmas católicos fundamentais: a elevação ao fim sobrenatural, a queda do pecado original, a redenção pelo sacrifício de Cristo e a necessidade da Igreja:

A elevação do homem ao fim sobrenatural inspira-nos a falar não tanto da dignidade humana quanto da divina: “O poder divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude. Por elas, temos entrado na posse das maiores e mais preciosas promessas, a fim de tornar-vos por esse meio participantes da natureza divina” (2 Pe 1,4).

A queda do pecado original impede-nos de nos gloriar em qualquer dignidade meramente humana, pois deixou a natureza humana ferida e a humanidade inteira destinada à morte eterna: “Por um só homem entrou o pecado no mun-do, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram” (Rom 5, 12).

O dogma da redenção pelo sacrifício de Cristo obriga-nos a exaltar somente a dignidade cristã, i.e., de ungidos no Sangue do Redentor: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gal 6, 14).

O dogma da necessidade da Igreja para a salvação, por fim, faz-nos enxergar que tal dignidade não permanece em nós senão enquanto membros do Corpo Místico: “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade, e sendo tu participe da natureza divina, não queiras, por um indigno modo de viver, recair na antiga baixeza. Lembra sempre de que cabeça e de que corpo és membro. Recorda-te que, resgatado do poder das trevas, foste transportado para a luz e o reino de Deus”. [São Leão, Papa, sermão I De Nativitate Domini, leitura VI de matinas de Natal: “Agnosce, o Christiane, dignitatem tuam, et divinae consors factus naturae noli in veterem vilitatem degeneri conversatione redire. Memento, cuius capitis et cuius corporis sis membrum. Reminescere, quia erutus de potestate tenebrarum translatus es in Dei lumen et regnum”.]

O humanismo conciliar, veremos ao longo deste livro, vai se proclamando promotor dos valores evangélicos da dignidade e liberdade humanas, depois de os ter supostamente curado de seu “sacralismo” invertendo assim a relação entre natureza e graça (consequência direta da guinada antropocêntrica), de seu “pessimismo” , negando as consequências do pecado, de seu “dolorismo”, negando a satisfação vicária de Cristo, e, finalmente, de seu “separatismo”, negando a necessidade da Igreja para a salvação.

2° A necessidade que o humanismo tem de permanecer católico

Poderíamos fazer a seguinte objeção ao humanismo conciliar: Por que falar em “humanismo novo”, quando todas as tendências que o caracterizam já se achavam no humanismo dos séculos XIV e XV? A resposta é muito clara. As tendências humanistas entram em conflito com o catolicismo tradicional, levando o humanismo a apartar-se da Igreja; porém, à medida que se aparta, perverte-se e morre. Trata-se de uma necessidade de uma certa maneira metafísica, que se explica pelo que acabamos de dizer: o homem é animal social, e tem sua natureza ferida tanto na ordem pessoal como na política, e só o poder real e efetivo da Sociedade eclesiástica é capaz de curá-lo, numa ordem como na outra. Quando o homem individual se afasta dos Sacramentos, é de novo apanhado pela avareza, a luxúria e a soberba, e perde o domínio de si. E quando toda a ordem política se afasta da Igreja, deixa de se orientar para o verdadeiro bem comum, e passa a ser dominada pelos interesses confessos ou ocultos daqueles que efetivamente a governam. Assim o “humanismo” logo se transforma em disfarce hipócrita.

Podemos portanto definir o “velho humanismo” como sendo aquele que se deixa levar pela tentação da separação, na intenção de poder desfrutar de suas conquistas em paz, mas que rapidamente fica decrépito e entra em estado de agonia, O “novo humanismo”, por outro lado, é aquele que reage diante desses deslizes e renova os esforços para permanecer católico. É um “humanismo de moderado” que não tem paz, porque sua relação como o catolicismo é conflituosa e ao mesmo tempo necessária para a sua sobrevivência. [É a reação típica que se verificou, por exemplo, em tantas famílias liberais, cujos varões entram para a maçonaria, mas preferem que as mulheres sejam piedosas e as filhas estudem em colégios de freiras.]

Não nos parece difícil descrever a história das reações do “humanismo novo” ante os excessos do “velho”. Tivemos a reação de um renascentismo católico (Dante) frente à tendência renascentista anticlerical e pagã, mas esta reação não evitou que, dois séculos depois, se caísse na tentação da reforma protestante. Então, frente aos desastres do humanismo reformado do século XVI, surge uma nova reação do humanismo católico (Vitória). Mas esse movimento não conseguirá senão inibir a verdadeira resistência católica, permitindo, dois séculos mais tarde, a catástrofe da Revolução Francesa, causada pelo humanismo iluminista. E quando, para remediar tais abusos, entra em cena o “humanismo novo” do catolicismo liberal (Rosmini) [T. Urdanoz O. P., Historia de la Filosofía, t. IV, BAC 1991, p. 645: [O ‘espírito rosminiano’ representou esse movimento moderadamente liberal e renovador da filosofia e da cultura de acordo com as exigências do espírito moderno, mantendo sempre a supremacia dos valores espirituais do cristianismo”.], cujo eficaz remédio vai resultar, passados mais dois séculos, no humanismo marxista, envolto nos horrores das últimas guerras. Pois bem, como todas essas experiências foram traumáticas o suficiente para deixar bem claro que o humanismo não deve separar-se da Igreja, eis que surge a grande reação “católica” do humanismo conciliar. O que há de “novo”, , portanto, no humanismo que triunfou no Concílio – novidade que se renova depois de cada fracasso da novidade anterior , é a intenção cada vez mais firme de permanecer católico.

A intenção de “catolicidade” é demasiado firme para ser meramente o resultado de diversos fatores acidentalmente reunidos, mas há alguns aspectos dela que merecem a nossa atenção:

• A ilusão humanista supõe certa ingenuidade que só parece possível entre gente que formada num ambiente de cristianismo superficial. “Os filhos deste mundo, no trato com seus semelhantes, são mais astutos que os filhos da luz” (Lc 16,8), e tanto mais bobos serão estes últimos quanto menos tiverem luz interior. Mal se afasta um passo do ambiente católico, a ilusão humanista transforma-se em maquiavélica (embora sempre estúpida) hipocrisia.

• As ideias cristãs que o humanismo tira dos trilhos só têm vigor de verdade na integridade do catolicismo, razão pela qual que é necessário conservar a maior conexão possível com este, se quiserem continuar operantes. Como veremos no próximo ponto, sua força será máxima quando tiverem a seu serviço não somente o pensamento católico, mas também o próprio poder da ordem eclesiástica.

• O inimigo mortal do “humanismo integral” é o catolicismo integral, em particular o tomismo, porque este possui de verdade todos os benefícios que aquele possui de aparência, além de saber de cor os seus sofismas. Mas, como diz o ditado: se não pode vencê-los, junte-se a eles. Foi assim que, tendo constatado sua impotência frente à restauração do tomismo promovida pelos Papas, o humanismo tratou de evitar o choque direto com a teologia tradicional e buscou de um modo especial revestir-se da autoridade de Santo Tomás. Neste ponto foi um fator crucial a defecção de Jacques Maritain.

A grande boa nova do Concílio, portanto, foi a elaboração de uma fórmula de maior equilíbrio para um humanismo supostamente católico. Trata-se de um equilíbrio de forças opostas, e à medida que elas crescem, cresce também a tensão. Engana-se, apesar disso, quem pensa que a intenção de permanecer na Igreja não é sincera ou eficaz. Tanto o é que, apesar da crise de autoridade que hoje a Igreja sofre, foi justamente essa intenção que levou à rápida eleição de Bento XVI, o Papa [sic] da “continuidade com a tradição”.

3° Conclusão

O humanismo do Vaticano II tem na Igreja o seu sujeito próprio, porque, como em todo humanismo, as ideias que o movem são noções cristãs descarrilhadas, mas ao contrário dos humanismos velhos, está plenamente ciente de que, se quiser sobreviver, deve permanecer dentro da igreja. Daí todo o interesse em se adequar aos dogmas e à disciplina. Como qualquer humanismo, é essencialmente antropocêntrico, mas, além de não negar a Deus (já havia humanismos teístas) e além de não negar a Jesus Cristo (já havia humanismos cristãos), diferencia-se dos demais pela intenção de pôr a própria Igreja Católica a serviço do homem.

A conclusão, em suma, é que essa nova forma introduzida na Igreja pelo Concílio Vaticano II é católica na medida em que vive das forças da Igreja, mas é anticatólica quanto à sua finalidade. Assemelha-se muito a um câncer, que vive e cresce graças às forças vitais do organismo, mas leva-o à morte. [Não é propriamente um parasita, já que não conta com um organismo diferente do organismo de seu hospedeiro. É mesmo uma subversão do próprio catolicismo.] Como chamamos um tumor que atinge o cérebro de tumor “cerebral”, exatamente neste sentido é que chamamos de “católico” o humanismo conciliar.

[…]

QUE É FORMALMENTE O HUMANISMO CONCILIAR

A inversão personalista que põe Deus, e portanto a Igreja, a serviço do homem, provoca também a inversão da relação entre graça e natureza, estimando a primeira somente porque aperfeiçoa a segunda. De modo que a dignidade do homem que se quer promover é a que deriva de seus valores estritamente humanos, em especial de sua liberdade; daí que esse humanismo acabe por se tornar um naturalismo capaz de se apropriar de todos os dogmas cristãos.

Por essa razão – como dissemos no início – o Concílio cometeu, de maneira social e com caráter oficial, o mesmo pecado que comete o religioso que deixa de viver para Cristo e começa a olhar para si mesmo. De fato, Paulo VI e João Paulo II definiram muitas vezes o Concílio como uma “tomada de consciência” da Igreja em relação à si mesma”, como se até então ela tivesse se esquecido de seu próprio ser. Mas embora esse modo de falar corresponda ao psicologismo do pensamento moderno, não deixa de ter fundamento na re-alidade. O verdadeiro religioso deve viver esquecido de si e totalmente voltado para Nosso Senhor, e sua religião corre risco quando começa a prestar atenção em si mesmo. Foi esse justamente o pecado do Concílio: deixar a orientação a Deus e dirigir o olhar satisfeito para própria humanidade, enfeitada dos dons de Deus. Sim, é verdade que nossa humanidade foi feita à imagem de Deus, mas ai de nós se nosso coração se prender à imagem em vez de seguir o Criador! Foi este e não outro o pecado que levou à perdição de Lúcifer!

Olhando bem, assim como a religião católica se chama com toda propriedade “cristianismo”, do mesmo modo a religião conciliar merece o nome de “humanismo”.

• O catolicismo consiste numa atitude religiosa que orienta todas as coisas a Jesus Cristo, enquanto “Imagem de Deus invisível, primogênito de toda a criação, porque n’Ele foram criadas todas as coisas” (Col 1, 15), rendendo culto a Deus “per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso” (Cânon romano). Embora Jesus Cristo seja Deus e homem, e como homem nos facilite o acesso ao conhecimento e amor de Deus – “ut dum visibiliter Deum cognoscimus, per hunc in invisibilium amorem rapiamur” (“para que, conhecendo a Deus visivelmente, sejamos por ele arrebatados no amor do invisível”) (Prefácio do Natal) –, todavia a nossa religião não é idolátrica, pois a humanidade de Nosso Senhor foi assumida na Pessoa do Verbo, Imagem consubstancial da divindade, De modo que a nosso religião é certamente “cristianismo”, visto que o culto a Cristo é o culto a Deus em si mesmo.

• Formalmente considerada, a novidade conciliar consiste em uma atitude religiosa que reorienta todas as coisas na direção do homem, enquanto imagem de Deus e primogênito de toda a criação, uma vez que – segundo a inversão do personalismo – para ele foram criadas todas as coisas. A pessoa humana seria como a produção e emanação das Pessoas divinas, na qual Deus se realizaria o Criador; de modo que o Concílio ensina a render culto ao homem, porque supostamente por ele, com ele e nele é que Deus se encontraria glorificado. Por isso é muito exato chamar de “humanismo” a religião conciliar, tanto como chamar a religião católica de “cristianismo”. O próprio Jesus Cristo – como veremos [logo abaixo] – é valorizado pelo Concílio enquanto perfeito Homem e não tanto por ser Deus. A única ressalva é que, diferente do cristianismo, o humanismo conciliar é idólatra, pois a humanidade adorada pelo Concílio não está em união hipostática com a divindade.

Se, em vista disso, considerarmos a modalidade introduzida pelo Concílio segundo a sua própria forma, é forçoso concluir que se trata de uma nova religião, adoradora do homem como realidade suprema da criação e do Criador. Em poucas palavras, estamos diante da “Religião do Homem”.

CONCLUSÃO

Formalmente considerada, a modalidade que o Concílio Vaticano II imprimiu à Igreja constitui uma nova religião. Tem como finalidade render culto à dignidade da pessoa humana, o que é a mesma finalidade do humanismo ateu; mas difere deste por atribuir ao homem um valor transcendente enquanto imagem viva da divindade, que coroaria a Deus como Criador. Nesta empreitada foram empregadas, a modo de matéria, todas as riquezas da Igreja – tanto as suas doutrinas e instituições, quanto a nobreza de seus filhos mais ingênuos – por meio de uma sutil reorientação antropocêntrica, tarefa preparada com grande paciência pelo “modernismo”, condenado por São Pio X no início do século passado, bem como pela “nova teologia”, condenada por Pio XII nos anos 50. E se esta transformação pôde se impor à Igreja, foi porque usou como agente a própria hierarquia eclesiástica, modificada para esse fim segundo os princípios maquiavélicos da democracia moderna.

[…]

JESUS CRISTO PERFEITO HOMEM

Dois documentos conciliares tratam de Jesus Cristo de uma maneira mais direta, Gaudium et spes e Ad gentes, ambos promulgados no último dia do Concílio, em 7 de dezembro de 1965. Ambos consideram a relação da Igreja com o mundo, mas com enfoques diferentes, que poderiam mesmo ser considerados opostos. Afinal o primeiro, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual, trata de uma relação de convivência e de mútuo entendimento, enquanto o segundo, Decreto sobre a atividade missionária da Igreja, trata de uma relação de conversão e conquista. Há entre eles, além disso, outra diferença que pode ser resumida em duas palavras: o primeiro é estúpido e o segundo, inteligente. Isto explica por que a terceira diferença seja apenas aparente e não real: o segundo parece mais católico. Na realidade, ambos defendem a mesma doutrina, mas o primeiro expõe-na de um modo tolo e o segundo a disfarça habilmente. Este último documento, que obteve o recorde de aprovação na votação final (2.394 placet contra 5 non placet), foi redigido numa sentada pelos dois campeões do Concílio, Karl Rahner e Ives Congar.

A fé católica ensina que o Filho de Deus se fez homem para que o homem se fizesse filho de Deus. O Verbo divino se encarnou e padeceu na Cruz para nos redimir do abismo do pecado e nos devolver a participação em sua filiação divina. Para alcançar a glória divina, portanto, o homem deve sacrificar com Cristo as glórias humanas que o amarram ao pecado.

Porém o novo humanismo, como dissemos, é a reação do homem velho diante do horror da cruz, por conta do qual enterra o talento da graça que lhe foi dada, preferindo antes ser simples homem e ter paz do que filho de Deus e enfrentar a dor. [Mateus 25, 24: “Veio por fim o que recebeu só um talento: ‘Senhor, disse-lhe, sabia que és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, tive medo e fui esconder teu talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence’”] O humanista novo – o integral, não o ateu – sabe que a paz só lhe veio com Jesus Cristo, de maneira que não quer renunciar a Ele e tenta persuadi-lo a reorientar o fim de sua missão: “Absit a te, Domine, non erit tibi hoc!” [Mateus 16, 21-24: “Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia. E Pedro começou a interpelá-lo e protestar nestes termos: ‘Longe de ti, Senhor! Isto não te acontecerá!’, mas Jesus, voltando-se para Pedro, disse-lhe: ‘Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens!’ Então, Jesus disse aos seus discípulos: ‘Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-a; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-a’”.] O truque é simples e já o mostramos: o homem é imagem de Deus, porque é próprio do homem ser livre e é também próprio de Deus: assim, o homem é tanto mais divino quanto mais humano. Sem renunciar, portanto, à formula tradicional, o humanismo conciliar vem lhe dar uma nova interpretação: O Filho de Deus se fez homem para que o homem se fizesse verdadeiro homem. [A Comissão Teológica Internacional se refere a essa interpretação em algumas conclusões sobre Teologia, Cristologia e Antropologia, de 1981 (em CTI, Documentos 1969-1996, BAC 1998, p. 253-254). Com subtítulo: A imagem de Deus no homem e o sentido cristão da “deificação” do homem, começa dizendo:

“O Verbo de Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus”. Este axioma da soteriologia dos Padres, especialmente dos Padres gregos, é negado em nossos tempos por várias razões. Alguns pretendem que a “deificação” é uma noção tipicamente helenista da salvação que conduz à fuga da condição humana e à negação do homem. Parece-lhes que a deificação suprime a diferença entre Deus e o homem e leva uma fusão indistinta. Às vezes se lhe responde, como uma máxima mais coerente com o nosso tempo, com esta fórmula: “Deus se fez homem para tornar o homem mais humano”.

Em seguida lê-se uma explicação do sentido de “deificação” desprovida de qualquer base ontológica:

Não se alcança a proximidade de Deus [que supõe a deificação] tanto pela capacidade intelectual do homem como pela conversão do coração, por uma obediência nova e pela ação moral, que não se realizam sem a graça de Deus […] Da mesma forma que a encarnação do Verbo não muda nem diminui a natureza divina, assim a divindade de Jesus Cristo também não muda nem dissolve a natureza humana, antes a afirma e aperfeiçoa na condição original em que foi criada.

Que não a dissolve, isto é verdade, mas muda-a sim, e como muda? Por acaso não a modifica o organismo sobrenatural da graça santificante e das virtudes infusas? Depois da explicação que supostamente defenderia o axioma dos Padres contra o moderno, acaba-se concluindo que: “Nesse sentido, ‘deificação’ corretamente entendida torna o homem perfeitamente humano: a deificação é a verdadeira e última ‘humanização’ do homem”. Não devemos, portanto, negar o axioma dos Padres, mas apenas porque no fundo teria o mesmo significado da máxima moderna.]

Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, será apresentado por Gaudium et spes como perfeito Homem, o homem exemplar que vem para humanizar a Humanidade. Ad gentes, por outro lado, parece ser o documento conciliar que finalmente nos diz que Cristo é também Deus. Contudo, por uma obscura necessidade que não chegamos a compreender totalmente, Cristo verá sua divindade ser atenuada pelo magistério conciliar, que se mostra claramente tocado por um certo neonestorianismo e um neoarianismo.

I. JESUS CRISTO PERFEITO HOMEM

A Constituição conciliar Gaudium et spes conta com uma exposição preliminar e duas partes, uma geral e outra particular. A parte geral, mais doutrinal, tem quatro capítulos, dedicados respectivamente à pessoa humana, à sociedade, ao trabalho e à relação entre a Igreja e o mundo. Cada um desses capítulos termina referindo o assunto tratado a Cristo, o que nos transmite uma ideia bastante completa do que é Jesus Cristo para o Concílio.

O último número do primeiro capítulo, dedicado à dignidade da pessoa humana, com o subtítulo “Cristo, o Homem Novo”, revela-nos quem seria Jesus Cristo:

“Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham n’Ele a sua fonte e n’Ele atinjam a plenitude. ‘Imagem de Deus invisível’ (Col 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, n’Ele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. […] O cristão, tornado conforme à imagem do Filho que é o primogênito entre a multidão dos irmãos, recebe ‘as primícias do Espírito’, que o tornam capaz de cumprir a lei nova do amor. Por meio deste Espírito, ‘penhor da herança, o homem todo é renovado interiormente, até à redenção do corpo’ […] E o que fica dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente”.

Antes de comentar esse ponto, que se pretende uma espécie de síntese da Revelação, é preciso considerar um aspecto que deve ter dividido o ânimo dos Padres conciliares que o aprovaram. Acaso esse texto pretende ser uma síntese completa e definitiva do cristianismo ou só uma exposição parcial e momentânea, apologética, dirigida ao humanista incrédulo? Pois afinal poderia alguém pensar – e cremos que muitos dos Padres conciliares se consolaram com tal pensamento – que é conveniente apresentar aos amantes do homem Cristo como “o homem perfeito”, que “manifesta plenamente o homem ao próprio homem”, de modo a atraí-los mais tarde para o amor de Deus, “ut, dum visibiliter Deum cognoscimus, per hune in invisibilium amorem rapiamur”. [Prefácio de Natal: [Para que, conhecendo a Deus visivelmente, sejamos por ele arrebatados ao amor do que é invisível”.] Mas os que assim pensavam estavam se iludindo, e esse esperado “mais tarde” nunca chegou: nem Gaudium et spes, nem os demais documentos do Concílio, nem o magistério pós-conciliar mudou esse tipo de apresentação da nova (porque o é) Religião. O título do ponto é claro: De Christo Novo Homine. Não diz: O novo Adão, que sugere o contexto tradicional de pecado e redenção, mas sim: O Novo Homem, em óbvio contexto humanista.

No primeiro parágrafo fala-se da revelação de três mistérios: o mistério do Pai, o mistério do Verbo encarnado e o mistério do homem. Se caíssemos na ilusão de pensar que se trata de um enfoque apologético, poderíamos dizer que ali se fala aos incrédulos sobre o mistério do homem, único que admitem em sua incredulidade, para mais tarde serem conduzidos ao mistério da Encarnação e, a partir deste, à revelação completa do mistério do Pai, isto é, da Santíssima Trindade. Mas o que se lê no ponto é justamente o contrário. O mistério do Pai é o mistério “de seu amor”, isto é, de seu amor pelos homens, que se revela no mistério do Verbo encarnado; mas o que mistério da Encarnação manifesta aos homens é o “Mistério do Homem”. Este é portanto apresentado como o conteúdo último e final da Revelação. Deus, Papai bondoso, sabe que o homem só se interessa pelo mistério de seu umbigo, e por isso enviou-lhe o Verbo com a missão de o explicar.

Esse primeiro capítulo começou, no n. 12, falando justamente do mistério do homem como centro da criação: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não-crentes. Mas, que é o homem?” E a resposta imediata, com a qual se supera o humanismo ateu, é que o homem é aimagem de Deus”. Por isso, posta essa premissa maior, no momento em que no n. 22 se diz: “‘Imagem de Deus invisível’ (Col. 1,15), Ele [Jesus Cristo] é o homem perfeito”, supõe-se o seguinte silogismo: O homem é imagem de Deus; ora, o Filho é a perfeita imagem de Deus; logo, Jesus Cristo “é o homem perfeito”. É curioso, visto que estávamos acostumados a fazer silogismo na direção oposta: o homem é a imagem de Deus (na medida em que participa da natureza divina); ora, o Filho é a perfeita Imagem (não é mero participante, mas possuidor da natureza divina); logo Jesus Cristo é perfeito Deus. Porém aquela inversão é a consequência da guinada antropocêntrica na própria ideia que se tem de Cristo: assim como Deus está a serviço do homem e a graça está subordinada à natureza, o termo principal do movimento de encarnação não é que um homem seja DEUS, mas que Deus se tenha feito HOMEM. Como se vê pelo restante da Constituição, “homem perfeito” fica como uma definição de Jesus Cristo.

Pensando bem, os que assim pensam são perfeitamente coerentes, pois deve haver proporção entre a causa e o efeito. Mas que o velho leitor à moda antiga preste atenção, pois sabemos por experiência que lhe é difícil deixar de se equivocar. Porque ali o que se diz é que o efeito da encarnação foi “restituir aos filhos de Adão a semelhança divina, elevando a natureza humana a sublime dignidade”. O católico formado à moda antiga, acostumado a distinguir entre natureza e graça, entende que Cristo restaura o organismo sobrenatural acima da natureza humana. O Concílio, porém, julga que não é conveniente fazer tal distinção, e por isso afirma ali que é a própria natureza humana que é elevada a sublime dignidade. Uma vez que, de acordo com São Tomás – nessas horas são todos tomistas –, a própria natureza humana é imagem da divindade, concluem que ela mesma é danificada pelo pecado e ela mesma é restaurada pela graça, graça que não é outra coisa senão a perfeita liberdade. Assim, se a restauração do homem se faz pelo acréscimo de uma sobrenatureza, que é participação da natureza divina, segue-se que a causa próxima é um Homem-Deus; já se o que deve ser restaurado é a natureza humana em si mesma, a causa proporcional será então um Homem-perfeito.

Logo em seguida, topamos com uma das pérolas mais preciosas do Concílio: ao assumir a natureza humana, Cristo se une quodammodo a cada homem (cum omni homine). Como isso se faz, cada um descubra por si. Já perto do fim afirma-se que a graça opera ocultamente em “todos os homens de boa vontade”. A questão na verdade é se a encarnação nos torna todos de boa vontade. Se acreditarmos que a encarnação restaurou a natureza humana em si mesma, pode-se dizer que sim, porque em tal caso não seria natural o homem inclinar-se ao mal. É o que o otimismo conciliar nos leva a pensar: “sobressaem [na integridade da pessoa humana] os valores da inteligência, da vontade, da consciência e da fraternidade, valores que se fundam em Deus Criador e por Cristo foram admiravelmente restaurados e elevados” (n. 61).

Nas referências a Jesus Cristo feitas nos demais capítulos, temos a mesma coisa: Cristo é o homem perfeito e sua obra é a restauração de tudo o que há de divino no homem, isto é, de tudo o que há de humano (porque é aqui onde está o segredo, no fato de que o que é humano é divino, uma vez que o homem é imagem de Deus):

• “Ele próprio se ofereceu à morte por todos, de todos feito Redentor. ‘Não há maior amor do que dar alguém a vida pelos seus amigos’. E mandou aos Apóstolos pregar a todos a mensagem evangélica para que a humanidade se tornasse a família de Deus, na qual o amor fosse toda a lei” (n. 32).

• “O Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a. Ele revela-nos que ‘Deus é amor’ e ensina-nos ao mesmo tempo que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor de Deus, a certeza de que o caminho do amor está aberto para todos e que o esforço por estabelecer a universal fraternidade não é vão” (n. 38). [Amor humano ou amor divino? Para o humanismo conciliar, o amor humano é divino, porque o homem é imagem de Deus! Por isso, na sua perspectiva, o amor é simplesmente a perfeição humana e o novo mandamento de Nosso Senhor não se distingue em nada do mandamento maçônico da fraternidade universal.]

• “Com efeito, o próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem perfeito, a todos salvar e tudo recapitular” (n. 45).

II. JESUS CRISTO IMPERFEITO DEUS

Se um pagão consultasse os textos do Concílio Vaticano II a fim de ter uma ideia de quem é Jesus Cristo para os católicos, a sua conclusão seria que nós cremos que ele é certa entidade inferior, mas não Deus. Omite-se a profissão simples e clara dessa verdade fundamental, e as expressões de uso constante insinuam, por um lado, uma distinção de sujeitos de atribuição entre Jesus Cristo e Deus – o que pertence à heresia nestoriana – e, por outro, que o Filho não é simpliciter Deus – o que pertence à heresia ariana. E esta dolorosíssima suspeita não é atenuada, antes se acentua no magistério posterior ao Concílio.

1° Omissão da profissão de fé na divindade de Jesus Cristo

Encontramos só dois lugares em documentos do Concílio onde se afirma explicitamente que Jesus Cristo é Deus, e em ambos os casos se trata de expressões obiter dicta (ditas de passagem). Em Unitatis redintegratio aparece como profissão de fé comum entre católicos e cristãos reformados: “Consideramos primeiramente aqueles cristãos que, para glória de Deus único, Pai e Filho e Espírito Santo, abertamente confessam Jesus Cristo como Deus e Senhor e único mediador entre Deus e os homens” (n. 20). A profissão é clara para um crente formado em seu catecismo, mas não para o incrédulo, já que Cristo é colocado, ao mesmo tempo, como um divino extremo e como algo médio: Deus e Mediador entre Deus e os homens. Um pagão entenderia que Cristo é um deus inferior, numa situação intermediária entre os homens e o Deus superior.

Encontramos a segunda afirmação em Ad gentes divinitus:

“Cristo Jesus, de fato, foi enviado ao mundo como verdadeiro mediador entre Deus e os homens. Como é Deus, n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Col. 2,9); e sendo o novo Adão pela sua natureza humana, é constituído cabeça da humanidade renovada, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14) (n. 3).

A afirmação é forte: “Cum Deus sit”, mas teria sido melhor colocar “segundo sua natureza divina”, para que ficasse em paralelo com que vem em seguida: “segundo sua natureza humana”. Além do mais, vem acompanhado de uma citação que Nestório aprovaria, a de que Jesus seria Deus porque Deus habita nele como em seu templo, e não porque fosse Deus personaliter et hipostatice.

Estas duas expressões não são suficientes como profissão do dogma, porque não basta a atribuição direta “Cristo é Deus” para o declarar, sendo possível entendê-la de maneira imprópria ou metafórica. É preciso acrescentar algo significando que Cristo é verdadeira e propriamente Deus. Mas o termo próprio do dogma, união hipostática, não aparece nunca nos textos conciliares (decerto porque evitaram as expressões escolásticas, exceto “subsistit in”), nem aparece expressão alguma equivalente. Tampouco se usa a expressão mais simples e clara, do catecismo católico: Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E por mais que um Concílio não esteja obrigado a reafirmar uma por uma todas as verdades da fé, trata-se aqui de uma verdade fundamental e para cuja afirmação os textos conciliares ofereceram uma infinidade de ocasiões. [Se nos voltarmos para o magistério anterior, veremos que a cada passo se professa essa verdade. O Vaticano I mal pôde promulgar duas constituições, mas nelas se diz a respeito de Jesus Cristo: “mandamos, com a autoridade do mesmo Deus e Salvador nosso” (Denzinger 3044). O Concílio de Trento começa sua III sessão fundando seu ensinamento na proclamação do Credo Niceno-Constantinopolitano. E não é preciso buscar muito para achar afirmações claríssimas desta verdade: “No sublime sacramento da santa Eucaristia, depois da consagração do pão e do vinho, nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e [verdadeiro] homem, está contido verdadeira, real e substancialmente” (Denzinger 1635).]

2° Um ar de nestorianismo

Não só se omite a clara profissão do dogma da divindade de Jesus Cristo, mas também constantemente se diferencia Jesus Cristo de Deus como sujeitos diferentes de atribuição, referindo-se muito frequentemente a tudo quanto “Deus” faz “em Cristo”. [Apostolicam Actuositatem 5: “o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura”. Ad Gentes 21: “para que em Cristo tudo seja submetido a Deus, e, enfim, Deus seja tudo em todos”. Presbyterorum Ordiris 2: “o fim que os presbíteros pretendem atingir com o seu ministério e com a sua vida é a glória de Deus Pai em Cristo”.] Não é algo errado em si mesmo, nem faltam exemplos desse uso na Sagrada Escritura, porque por “Deus” se pode entender “Deus Pai”; mas um pensamento verdadeiramente católico busca sempre defender toda a extensão do dogma, compensando as expressões de distinção com as de identificação. Pois bem, essa omissão e essa mesma tendência continuam nos textos do magistério posterior ao Concílio e, de forma ainda mais marcada e preocupante, nos documentos semi-oficiais da Comissão Teológica Internacional.

Porém a concepção nestoriana está implicada mais especificamente na atribuição a Jesus Cristo da nova noção de “sacramento”, que apesar de não ser explicitamente mencionada nos documentos do magistério conciliar e pós-conciliar, é empregue de modo implícito e, ademais, foi já bastante explicitada pelos novos teólogos.

A heresia de Nestório consistiu em negar, na única pessoa do Verbo, a união das naturezas humana e divina, que, por ter se dado na unidade da pessoa ou hipóstase, foi chamada “união hipostática”:

“A sacrossanta Igreja romana – diz o Concílio de Florença em seu decreto para os jacobitas – anatematiza também Teodoro de Mopsuéstia e Nestório, que afirmam que a humanidade se uniu ao Filho de Deus por graça e que por isso há duas pessoas em Cristo, como confessam haver duas naturezas, por não serem capazes de entender que a união da humanidade com o Verbo foi hipostática, e por isso negaram que recebia a subsistência do Verbo. Porque, segundo essa blasfêmia, o Verbo não se fez carne, senão que o Verbo, por graça, habitou na carne; isto é, que o Filho de Deus não se fez homem, mas apenas que o Filho de Deus habitou no homem”. [Denzinger-Hünermann 1344.]

Dessa forma, todas as opiniões que levam a supor a existência em Cristo de dois sujeitos, atribuindo-se a um o que é próprio da natureza divina e ao outro o que é próprio da natureza humana, caem sob o anátema do nestorianismo.

Ora, considerar Jesus Cristo como “sacramento” de Deus, ou inclusive do Verbo de Deus, leva a afirmar que Jesus Cristo é Deus porque Deus ou o Verbo está presente n’Ele, com o que se está distinguindo o sujeito humano, que é sacramento ou sinal, do sujeito divino, que é o mistério que se faz presente enquanto significado, São, portanto, expressões decididamente nestorianas, especialmente quando se referem ao Verbo de Deus, totalmente equivalentes àquela que afirma que o homem Cristo é Deus porque Deus habita no homem. [Pe. Álvaro Calderón, “L’Eglise sacrement universel du salut”, en La religion de Vatican II, Premier Symposium de Paris, 2002, p. 131: “Se considerarmos Cristo como sacramento-mistério, podemos dizer que sua humanidade é como o sinal e instrumento eficaz que contém e dá a conhecer sua divindade, sem negar em absoluto a intimidade da união hipostática entre ambas as naturezas. Mas se, em vez de predicar a noção de sinal só da parte humana em relação à parte divina, a predicarmos do próprio Cristo, dizendo – como agora se diz – que Cristo é o sacramento-sinal da Divindade, então caímos no nestorianismo, ao dividirmos entitativamente o que é Cristo daquilo que é Deus. A parte humana pode ser chamada de sinal, mas não o Cristo inteiro”.]

3° Um ar de arianismo

Ário negava a perfeita consubstancialidade do Filho. com o Pai, fazendo do Verbo um deus menor: “A sacrossanta Igreja romana – diz o mesmo Concílio de Florença – condena os arianos, eunomianos e macedonianos, que dizem que só o Pai é Deus verdadeiro e põem o Filho e o Espírito Santo na ordem das criaturas. Condena também a quem quer que postule distinção de graus ou desigualdade na Trindade”. [Denzinger-Hünermann 1332] Pois bem, o que se constata também no magistério do Concílio e a partir dele é que o termo “Deus” só é dito sem rodeios (simpliciter) quando se trata do Pai, diferentemente de quando se trata do Filho e do Espírito Santo. Já não se diz “Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo”, mas somente “Deus” aparece em aposição (in recto) com o Pai, ao passo que, em relação ao Filho e ao Espírito Santo, aparece in obliquo: Filho de Deus e Espírito de Deus. Não se deixou de afirmar que “o Filho é Deus”, mas frequentemente só depois de algum rodeio: porque é Filho. Essa necessidade de acrescentar uma explicação para afirmar que “o Filho é Deus” tem portanto um ar de arianismo, pois não se considera o Filho Deus simpliciter, mas secundum quid, isto é, segundo certo aspecto ou consideração. [No novo Catecismo, a expressão “Deus Pai” é usada em 34 pontos; “Filho de Deus” em 102 pontos; “Espírito de Deus” em 16 pontos; “Deus Filho” ou “Deus Espírito Santo” nunca.]

A afirmação da divindade do Filho, por exemplo, no decreto Ad gentes, citada mais acima, vem depois de um parágrafo em que Deus, simpliciter dicto, é identificado com “Aquele que envia o Filho”, dando a entender que o Filho é Deus só em certo sentido, secundum quid:

“Para estabelecer a paz ou a comunhão com Ele e uma sociedade fraterna entre os homens, apesar de pecadores, Deus [simpliciter dicto] determinou entrar de modo novo e definitivo na história dos homens, enviando o seu Filho [diferente de Deus?] na nossa carne para, por Ele, arrancar os homens ao poder das trevas e de satanás e n’Ele reconciliar o mundo consigo. Constituiu, portanto, herdeiro de todas as coisas Aquele por quem fizera tudo, para n’Ele tudo restaurar. Cristo Jesus, de fato, foi enviado ao mundo como verdadeiro mediador entre Deus e os homens. Como é Deus [em que sentido?], n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade [é Deus porque Deus habita n’Ele?]” (n. 3).

Este tipo de linguagem é constante no magistério conciliar.

Acrescente-se que essas tendências são difíceis de de-tectar, porque ocorrem dentro do pluralismo subjetivista do pensamento moderno, que em sua maneira de se expressar varia ao sabor das circunstâncias. Quando os novos doutores (Papas, instituições ou teólogos) querem destacar a continuidade com a doutrina tradicional ou se dirigem a auditórios católicos, adaptam sua linguagem a essa mentalidade, usando fórmulas mais tradicionais. Quando o contexto é outro, é outra também a linguagem. Por isso não ficamos analisando textos e mais textos: quem se der ao trabalho de ler os novos documentos tendo em mente estas advertências – algo que não aconselhamos a ninguém – poderá comprová-lo. [Não é preciso ir muito longe. No primeiro parágrafo do prólogo a Jesus de Nazaré, de Bento XVI, lemos o seguinte (itálicos nossos): “Nelas [“uma série de obras fascinantes sobre Jesus”] a figura de Jesus era apresentada a partir dos Evangelhos: como viveu na terra e como, mesmo sendo verdadeiro homem, levou os homens a Deus, com quem era um enquanto Filho. Dessa forma, Deus se fez visível através do homem Jesus e foi possível, a partir de Deus, ver a imagem do autêntico homem” (p. 7). Dizer que Jesus é um enquanto Filho tem um ar de arianismo, dizer que Deus se faz visível através do homem Jesus tem mais do que um ar de nestorianismo (o certo seria “através da humanidade de Jesus”), e dizer que dessa forma foi possível ver a imagem do autêntico homem (e não do verdadeiro Deus) é humanismo.]

RECOMENDAÇÕES COMPLEMENTARES: AS PRINCIPAIS HERESIAS E OUTROS ERROS DO VATICANO II, A HERESIA NA HISTÓRIA e O MISTÉRIO PASCAL

Excerto de: Pe. ÁLVARO CALDERÓN, F.S.S.P.X.; Prometeu – A Religião do Homem, Castela, 2010, pp. 59-68, 74-76, 321-334.

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