Joachim Bouflet | 2003
«Mas o que significa a abstinência de toda comida e bebida – total, prolongada – de uma Margarethe Seyfrit em Rodt, no Palatinat, de uma Apollonia Schreier, na Suíça, de outros ainda, estudados pela comissão médica instituída para esse fim pelo Cardeal Prospero Lambertini, futuro Papa Bento XIV, que trabalhava então na sua grande obra De beatificatione? […]
Na esteira das observações efetuadas pela comissão médica da Academia de Bolonha, nomeada para esse fim, o Cardeal Lambertini estabelecera como princípio que os jejuns prolongados nunca devem ser tidos como milagrosos quando começam por uma forma qualquer de doença, ou quando impedem o jejuador de prosseguir com o exercício de uma plena atividade física. Essa reserva leva a considerar como prodigiosa, mas não milagrosa, a maioria dos fenômenos de inédia colhidos na vida de santas personagens, mesmo canonizadas, notadamente das místicas acamadas que foram Anne-Catherine Emmerick e Louise Lateau no século XIX, Marthe Robin no século XX, mesmo quando elas assumem em perspectiva religiosa seu jejum prolongado.
O caso recente de Marthe Robin, por exemplo, põe a questão de um tratamento crítico do fenômeno e, sobretudo, propõe à investigação diversas pistas de leitura: importa, com efeito, não somente constatar e controlar o prodígio, mas ainda interpretar-lhe a significação. Um livro foi consagrado pelo historiador americano Rudolph M. Bell à inédia [33. Rudolph M. BELL, Holy anorexia, Chicago, The University of Chicago Press, 1985], que ele chama de anorexia sagrada. A obra apresenta dois defeitos maiores: o primeiro é o de não abordar o fenômeno senão pelo viés da psicologia e de não contemplar explicação alguma que não de ordem psicossomática; o segundo é o de assimilar às inédicas um grande número de mulheres – ele omite assinalar São Nicolau de Flue, um dos raros homens cuja inedia está solidamente estabelecida – que, se elas se entregaram a jejuns de extremo rigor, nem por isso cessaram de se alimentar. O estudo de alguns casos modernos e contemporâneos torna possível a leitura do prodígio como um sinal de ordem carismática que se insere harmoniosamente no desenvolvimento de uma vida mística de alto nível.» (pp. 25, 29-30).
«Marthe Robin se alimentava?
Permanece delicado, na hora atual, abordar o tema Marthe Robin (1902-1981). Por um lado, a documentação relativa a esta figura espiritual contemporânea continua, em sua maior parte, confidencial: discrição necessária ao desenrolar sereno do procedimento aberto em vista à beatificação da Serva de Deus. Por outro lado, certas pessoas que se imaginam ter uma espécie de direito de propriedade sobre esta estigmatizada e, portanto, um direito de vistas sobre toda publicação referente a ela, mostram-se muito melindrosas quando se tenta estudar a questão de maneira independente, mesmo dentro do quadro eclesial do processo de beatificação. É de esperar que a feliz conclusão da causa, introduzida em 24 de março de 1991, permitirá uma aproximação serena e objetiva dessa grande mística ainda mal conhecida, sobre a qual já se escreveu de tudo e mais um pouco…
A inédia de Marthe Robin foi, já durante a vida dela, objeto de apreciações diversas: não faltaram incrédulos para denunciar fraude, simulação. Fato insólito, não houve exame rigoroso do fenômeno; somos forçados, assim, a fiar-nos no testemunho das pessoas que viveram com ela, e ao dela própria. A perfeita integridade moral de Marthe, a qualidade humana de suas companhias imediatas, a discrição de todos estes acerca de um prodígio que teria podido facilmente tornar-se sensacional, são tantos fatores de credibilidade: é certo que não podemos levianamente negar a seriedade e a força dos testemunhos relativos à inédia, e parece bem que nenhum investigador de boa fé tenha sequer sonhado em o fazer. Não é menos verdadeiro que não podemos silenciar sobre certos elementos que vão na contra-mão do postulado dessa inédia.
Para cortar pela raiz os rumores que começam a circular, Dom Pic, Bispo de Valence, convida dois médicos de Lyon a examinar Marthe. Os doutores Jean Dechaume, psiquiatra hospitalar e professor na faculdade de medicina, e André Ricard, cirurgião hospitalar, passam junto da estigmatizada o dia de 14 de abril de 1942. É muito pouco, em comparação com o exame rigoroso ao qual foi submetida Theres Neumann. Do relatório dos médicos, resulta, no que toca à inédia, que Marthe não teria mais absorvido nenhum alimento sólido nem líquido desde 1932:
A partir de 1932, Mademoiselle Robin diz não dormir mais. Desde a mesma época, diz ela, ela não come mais. Ela experimentou, algum tempo já antes dessa época, enormes dificuldades de se alimentar, ela praticamente não conseguia mais engolir nada e vomitava praticamente tudo (…) A partir de 1932, nada mais de sono, nada mais de alimentação. [55. Relatório médico, citado por Gonzague MOTTET, entre outros, em: Marthe Robin, la stigmatisée de la Drôme – Étude d’une mystique du XXe siècle, Toulouse, Éditions Erès, 1989, pp. 170 e 172.]
Como ela não teria mais comido nada até à sua morte em 1981, seu jejum total ter-se-ia prolongado durante aproximadamente cinquenta anos. Mas o Pe. Finet, diretor espiritual de Marthe Robin, fazia remontar a inédia a uma data mais antiga, tal como ele o precisou numa conferência feita em Châteauneuf-de-Gaulaure a 12 de fevereiro de 1961. Celebrava-se o vigésimo-quinto aniversário da fundação do Foyer de Charité, e o Padre declarou:
Desde 1928, ela não come, não toma nenhum líquido, nem sequer uma simples gota d’água. Ainda que ela o queira, ela não consegue. Todo movimento de deglutição é-lhe impossível. Estando paralisada, nenhuma simulação é concebível, tanto mais que sua vida está exposta aos olhos de toda a comunidade. [56. Jean GUITTON et Jean-Jacques ANTIER, op. cit. (Les pouvoirs mystérieux de la foi, Paris, Perrin, 1993), p. 80.]
O prodígio teria, então, durado cinquenta e dois anos. Sem dúvida uma discrepância de uns dois/três anos não tem importância alguma num período tão longo, mas ter-se-ia apreciado um maior rigor. De fato, a partir do momento em que estudamos o processo em cuja sequela se estabelece na maioria das vezes a inédia, podemos encontrar um começo de explicação dessa divergência de dados cronológicos. Sempre segundo o relatório dos médicos, Marthe teria conhecido em 1927 “alguns problemas digestivos”, depois em outubro de 1927 um “acidente grave, hematêmese e melena, hematúria. Falou-se de úlcera gástrica (…) em novembro de 1928, novo acidente da mesma ordem, mas menos grave”. [57. Gonzague MOTTET, op. cit., p. 171. A hematêmese é vomitar sangue, melena e hematúria são evacuações de sangue […].]
Como em muitos dos outros inédicos, a faculdade de não absorver mais nenhum alimento sólido nem líquido revelar-se-á em Marthe Robin graças a distúrbios clínicos constituindo uma espécie de preparação, de quadro patológico no qual se inserirá o fenômeno:
O começo da anorexia total foi muito brutal (1928 para o Pe. Peyret, 1932 para o relatório médico), mas distúrbios alimentares existiam previamente. Já na infância, Marthe tinha pouco apetite. Ao longo do episódio letárgico de 1928, não é mais possível comer nenhum alimento, salvo o sacramento da comunhão que lhe será trazido toda semana. [58. Ibid., p. 46.]
Parece comprovado que, a partir de 1928, Marthe estava na incapacidade mecânica de comer e de beber, tendo perdido a possibilidade de deglutir. Diversas hipóteses foram aventadas para explicar essa singularidade:
A deglutição (…) é ato reflexo regulado por um centro nervoso situado no bulbo raquidiano. Em Marthe, pode haver aí paralisia resultante de lesão cerebral; esse bloqueio também pode ter sido induzido durante suas crises de úlceras gástricas de 1926 e mantido por engrama cerebral. Pode ter também causa psíquica de conotação religiosa. O Dr. Assailly, psiquiatra conhecidíssimo, que examinou Marthe e permanece convicto de sua inédia total, disse-nos que “o vírus atingira sem dúvida seu glossofaríngeo e diversos circuitos, daí sua impossibilidade de deglutir, toda colherada de líquido tornando a sair pelas narinas de imediato”. [59. Jean GUITTON et Jean-Jacques ANTIER, op. cit., p. 80.]
Qualquer que seja a sua causa, o fato estava ali, Marthe não podia mais comer nada, em seguida aos distúrbios engendrados pela encefalite viral de que ela foi acometida em 1918: a famosa gripe espanhola. Quando tomou consciência disso, ela passou por um período de hesitação antes de ceder à evidência: a natureza tem dificuldade de aceitar aquilo que lhe é contrário.
Ademais, Marthe teve certamente a intuição de confrontar-se com um mistério que não se desenrolava mais somente em sua alma, mas até mesmo em seu próprio corpo e que, se ele a confundia, perturbava também o seu entorno familiar. Assim, não é surpreendente que ela tenha feito tentativas de ingestão, ainda que só por amor a seus pais, que ela via desolados:
Marthe não come mais. O que ela tenta engolir, ela rejeita imediatamente. Sua mãe lhe dá frutas para sorver e umedece-lhe os lábios a seu pedido (…) Além da hóstia que o Pe. Faure lhe traz duas vezes por semana, é-lhe impossível de ingerir o que quer que seja. Mesmo o café de aroma aprazível, que sua mãe lhe oferece trêmula de esperança, não “passa” pela garganta dela. [60. Monique de HUERTAS: “Marthe Robin, la stigmatisée”, Paris, Editions du Centurion, 1990, p.53.]
Alguns anos depois, o Pe. Finet se deparará com a mesma dificuldade:
Para tentar fazê-la beber, o Pe. Finet umedecia a língua dela com um pouco de líquido: vinho branco misturado com água, café… O líquido recaía em seguida numa pequena bandeja posta embaixo do queixo de Marthe e acabava no lavabo. Assim, Marthe não bebia. [61. Gonzague MOTTET, op. cit., p. 46.]
Essas particularidades explicam, sem dúvida, que Marthe tenha datado de 1932 o início do seu jejum: sua perfeita retidão a teria feito considerar um período de incerteza os três ou quatro anos durante os quais suas companhias se esforçavam ainda, aqui e ali, por fazê-la absorver algumas gotas de líquido, ainda que só para aliviar a sede devoradora que lhe queimava a garganta e os lábios. Sede tanto mais torturante, que ela via nisso uma armadilha diabólica: “O demônio me ataca pela sede”, dizia ela em 1930.
Apesar de sua inédia, Marthe não sofreu jamais a menor repulsa pela alimentação, pelo contrário: na falta de tomar café, de que dantes ela gostava enormemente, ela se aprazia em respirar-lhe o aroma; anedotas, frequentemente humorísticas, no-la mostram fazendo alusão aos alimentos que ela apreciava outrora; o cuidado que ela tomava em fazer enfeitar de víveres ou de guloseimas – escolhidos por ela mesma – os pacotes destinados aos presos ou aos pobres, denota interesse certo por uma alimentação apropriada às necessidades de cada um, e dá preciosas indicações sobre seus gostos pessoais.
Lendo as biografias consagradas há uma vintena de anos a Marthe Robin, tudo é claro: ela foi uma autêntica inédica. Contudo, diversos elementos do retrato que se traça dela devem ser revistos num sentido menos hagiografizante. Em primeiro lugar, é evidente que o único exame médico a que ela foi submetida permanece muito aquém de um controle científico rigoroso: contentando-se com as afirmações de Marthe, provavelmente também com as do Pe. Finet, que a dirigia, os dois médicos não procederam a nenhuma verificação objetiva do jejum. No mais, sabe-se que Marthe mantinha perto de si permanentemente e ao alcance da mão um jarro cheio de água, que servia – dizia-se – para manter uma certa umidade no ar do aposento. Depositavam-se também ao lado do leito dela, por ocasião, uma taça repleta de frutos de todos os tipos, cujo perfume ela aspirava. Nenhum controle jamais foi efetuado sobre esses alimentos, pois partia-se do princípio totalmente falso de que Marthe estivesse imobilizada pela paralisia. Certos fatos relatados nas peças do processo em vista da beatificação [62. Devo precisar que tive, graças à gentileza dos membros da Postulação, acesso à totalidade do dossiê.] permitem, no mínimo, fazer-se algumas indagações: o jarro d’água derramada no leito, a descoberta por seus próximos de pequenos excrementos no quarto dela – incidentes atribuídos um pouco rápido ao demônio –, levam a contemplar a possibilidade de uma alimentação “a conta-gotas”, em quantidades bastante mínimas, suficientes para sobreviver. Não haveria nada de chocante em Marthe Robin nutrir-se um pouco, num legítimo instinto de conservação e sem ter disso talvez plenamente consciência. Isso não tiraria nada de sua santidade, tanto mais que ninguém, desde a visita médica de 1942, jamais a ouviu afirmar que ela não comia. Não é impossível, tampouco, que o Pe. Finet, em sua preocupação de “fazer colar” Marthe ao ícone idealizado da mística acamada inédica – cujo modelo era Anne-Catherine Emmerick –, tivesse ligeiramente embelezado a realidade: ele era um narrador maravilhoso e entusiasmado. Seguramente, o que acabo de dizer poderá surpreender, quiçá escandalizar, a certos leitores. Erroneamente, pois a santidade não está nas manifestações extraordinárias, mas na prática sólida e fiel das virtudes.
No leito de morte, Marthe Robin era “uma pobre velha” (é a expressão dela) extremamente franzina, descarnada e desdentada. É evidente que, se ela se nutriu – as peças do processo ordinário de beatificação o indicam –, foi de forma muito parcimoniosa. Mas isso basta para infirmar a tese segundo a qual ela teria sido, em sentido estrito, uma inédica.» (pp. 49-54).
Trad. por Felipe Coelho. Excerto de: Encyclopédie des Phénomènes Extraordinaires de la Vie Mystique [Enciclopédia dos Fenômenos Extraordinários da Vida Mística], Tomo II, Paris: Ed. Le jardin des Livres, 2002, pp. 25, 29-30 e 49-54, notas de rodapé incorporadas ao texto.
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