Mons. Marcel Lefebvre | 1987
JESUS CRISTO É REI DAS REPÚBLICAS?
Não é a maioria que faz a verdade, é a verdade que deve fazer a maioria.
Ainda tenho muito a dizer sobre o liberalismo. Mas gostaria que compreendessem bem que não proponho opiniões pessoais. Por isso cito documentos dos papas e não sentimentos meus, que facilmente poderiam ser atribuídos a uma formação recebida no Seminário Francês de Roma.
O Padre Le Floch, que era meu superior, teve com efeito uma grande reputação de tradicionalista. Dirão de mim: “foi influenciado pelo que lhe foi dito no seminário!” Não nego esta influência, mas também agradeço a Deus todos os dias o fato de me ter sido dado como superior e mestre o Pe. Le Floch. Ele foi acusado na época de fazer política; Deus sabe que não é crime fazer a política de Jesus Cristo e suscitar políticos que usem todos os meios legítimos, inclusive meios jurídicos, para expulsar da sociedade os inimigos de Nosso Senhor Jesus Cristo. [Não é porque bispos esquerdistas fazem política socialista ou comunista que a Igreja deve se abster de fazer política! Ela tem um poder, sem dúvida indireto mas real, sobre a ordem temporal e a vida da cidade. O reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo uma preocupação essencial da Igreja.] Na realidade o Pe. Le Floch nunca se meteu com a política, nem sequer no pior momento do complô armado contra a Action Française [Jornal e movimento político dirigido por Charles Maurras. “L’Action Française” lutava baseada em sãs verdades naturais contra o democratismo liberal. Foi acusada falsamente de naturalismo. O Papa Pio XI, enganado, condenou-a. Pio XII viria a levantar esta sanção. Porém, o mal estava feito: 1926 marca na França uma etapa decisiva na “ocupação” da Igreja pela facção “católico-liberal”] e da crise que se seguiu, quando eu era seminarista.
Por outro lado, o Pe. Le Floch nos falava constantemente do perigo do modernismo, do “sillonismo”, do liberalismo. Baseando-se nas encíclicas dos papas, o Pe. Le Floch conseguiu nos transmitir uma convicção segura e sólida, baseada na doutrina imutável da Igreja, sobre o perigo destes erros. Desejo transmitir-lhes esta mesma convicção, como uma chama que se transmite à posteridade, como uma luz que os preservará dos erros que reinam hoje mais do que nunca “in ipsis Ecclesiae venis et visceribus”, nas veias e mesmo nas entranhas da Igreja, como dizia São Pio X.
Vocês compreenderão assim que meu pensamento político pessoal sobre o regime que melhor convém para a França, por exemplo, não tem muita importância. Os fatos falam por si mesmos: a monarquia francesa nunca conseguiu realizar o que conseguiu a democracia: cinco revoluções sangrentas (1789, 1830, 1848, 1870 e 1945), quatro invasões estrangeiras (1815, 1870, 1914 e 1940), duas desapropriações dos bens da Igreja, expulsões de ordens religiosas, supressão de escolas católicas, laicização das instituições (1789 e 1901), etc. No entanto, dirão alguns, o Papa Leão XIII pediu o ralliement [Ralliement: participação proposta por Leão XIII ao regime republicano francês. Significou o rompimento com a monarquia francesa e o afogamento da resistência católica. (N. do T.)] dos católicos franceses ao regime republicano [Cf. Encíclica Au milieu des solicitudes, de 16 de janeiro de 1892, aos bispos e fiéis da França] (que provocou uma catástrofe política e religiosa). Outros criticam esta atitude de Leão XIII, classificando a ela e a seu autor de liberais. Não creio que ele fosse um liberal e muito menos um democrata. Acreditou apenas suscitar uma boa combinação para o bem da religião na França; mas vê-se claramente que esquecia a origem da Constituição irremediavelmente liberal, maçônica e anti-católica da democracia francesa.
A ideologia democrática
Nascida do postulado liberal do indivíduo-rei, a ideologia democrática se constrói em seguida, logicamente; os indivíduos passam ao estado social por um pacto convencional: o “contrato social”, que é como diz Rousseau, “uma alienação total de cada membro, com todos os seus direitos, em favor de toda a humanidade”. Daí vêm:
• A necessária soberania popular: o povo é necessariamente soberano, tem o poder por si mesmo, e o conserva mesmo depois de ter eleito os governantes.
• A ilegitimidade de todo regime que não tem por base a soberania popular ou cujos governantes dizem receber o poder de Deus.
Daí como consequência, na prática:
• A luta para o estabelecimento universal da democracia.
• A “cruzada das democracias” contra qualquer regime que faz referência à autoridade divina, qualificado então como um regime “absolutista”. Quanto a isto, o Tratado de Versalhes de 1919, que suprimia as últimas monarquias verdadeiramente cristãs, foi uma vitória liberal e principalmente maçônica. [Cf. H. Le Caron, Le plan de Domination Mondiale de la Contre-église, p. 22.]
• O reino político das maiorias, que pretende expressar a “sacrossanta e infalível” vontade geral.
Diante deste democratismo que entrou na Igreja pela colegialidade, só nos resta repetir: a maioria não faz a verdade. Acaso há algo que possa ser construído solidamente, fora da verdade e da verdadeira justiça para com Deus e o próximo?
Condenação da ideologia democrática pelos papas
Os papas não cessaram de condenar a ideologia democrática. Leão XIII o fez ex professo em sua encíclica Diuturnum, que já citei:
(…) muitíssimos, em nossos tempos, andando na esteira dos que no século passado se nomearam filósofos, dizem que todo poder vem do povo; e, então, os que exercem este poder, não o exercem como próprio, mas como conferido a eles pelo povo, e ainda, com a condição de que possa ser revogado pela vontade do mesmo povo por quem foi concedido. Porém, os católicos discordam disso, pois para eles o direito de mandar deriva de Deus como de seu princípio natural e necessário.
Porém, importa notar aqui que os que forem prepostos à coisa pública, nalgumas circunstâncias podem ser eleitos por vontade e deliberação da multidão, sem que isso seja contrário ou repugne à doutrina católica. Com esta escolha designa-se o príncipe, mas não se conferem os direitos do principado; não se dá o poder, mas estabelece-se por quem deve ser administrado.
Logo, toda autoridade vem de Deus, mesmo em uma democracia!
Toda autoridade vem de Deus, esta é uma verdade revelada e Leão XIII a estabelece solidamente através da Sagrada Escritura, da tradição dos Padres e, finalmente, da razão: uma autoridade que emanasse somente do povo não teria força para obrigar a livre vontade sob pena de pecado. [Ela poderia obrigar sob a ameaça de castigos, mas não se suscita assim, diria João XXIII em Pacem in Terris, a procura de cada um pelo bem comum. A autoridade é antes de tudo uma força moral.]
Porém, nenhum homem tem em si ou de per si a possibilidade de obrigar a livre vontade dos outros com esses vínculos de mando. Este poder pertence unicamente a Deus, criador de todas as coisas e legislador; e os que o exercem é necessário que o exerçam como concedido a eles por Deus. [Encíclica Diuturnum, Documentos de Leão XIII, Ed. Paulus, p. 153.]
Para encerrar, Leão XIII mostra a falsidade do contrato social de Rousseau, que é a base da ideologia democrática contemporânea.
A Igreja não condena o regime democrático
Gostaria de lhes mostrar agora que nem toda democracia é liberal. Uma coisa é a “ideologia” democrática, outra o regime democrático; a Igreja condena a ideologia, mas não o regime, que é a participação do povo no poder.
Santo Tomás já justificava a legitimidade do regime democrático:
Que todos tenham uma certa parte no governo ajuda para que seia conservada a paz do povo. Todos gostam desta organização e procuram conservá-la, como diz Aristóteles no livro II da Política. [Suma Teol. I-II / 105 / 1.]
Sem preferir a democracia, o Doutor Comum considera que, concretamente, o melhor regime político é uma monarquia na qual todos os cidadãos têm uma certa participação no poder, elegendo por exemplo aqueles que vão governar sob as ordens do monarca; este é, diz Santo Tomás, “um regime que alia bem a monarquia, a aristocracia e a democracia”. [Idem]
A monarquia francesa do Antigo Regime, como muitas outras, se aproximava deste modelo, apesar do que dizem os liberais; existia então entre o monarca e a multidão de súditos uma ordem e uma hierarquia de inúmeros corpos intermediários que podiam expor suas opiniões diante das autoridades superiores, quando necessário.
A Igreja Católica não dá preferência a este ou aquele regime; admite que os povos escolham a forma de governo que esteja mais adaptada à sua índole e às circunstâncias:
Aqui também não se faz questão dos modos do governo público: de fato não há motivo algum para que a Igreja não aprove o principado de um ou de muitos, desde que seja justo e dirigido à utilidade comum. Por isso, salva a justiça, não se impede aos povos escolher o tipo de governo que mais se adapte à sua índole, ou às instituições e costumes de seus pais. [Leão XIII, Diuturnum, op. cit., p. 151]
O que é uma democracia não liberal?
Confesso que uma democracia não liberal é uma coisa rara, hoje desaparecida, mas também não é apenas um sonho, como prova a República de Cristo Rei, aquela do Equador de Garcia Moreno no século passado. Vejamos então as características de uma democracia não liberal:
Primeiro princípio
É o princípio da soberania popular. Em primeiro lugar se limita o regime democrático e se respeita a legitimidade da monarquia. Além disso, é radicalmente diferente da democracia de Rousseau: o poder não vem do povo nem pela origem nem definitivamente: o poder vem de Deus. De Deus, autor da natureza social do homem, e não dos indivíduos-reis. Após a eleição dos governantes pelo povo, o povo não conserva o exercício da soberania. [Cf. Diuturnum, citado acima, e Mons. de Ségur, La Revolution, p. 73.]
• Primeira consequência: o governo não é mais uma multidão amorfa de indivíduos, mas sim um povo organizado: os chefes de família (que poderão legislar diretamente em Estados muito pequenos, como Appenzell na Suíça), cidadãos e comerciantes, industriais e trabalhadores, grandes e pequenos proprietários, militares e magistrados, religiosos, sacerdotes e bispos; como diz Mons. de Ségur, é “a nação com todas as suas forças vivas, constituída em uma representação seria e capaz de expressar seus sentimentos por seus legítimos representantes, de exercer livremente seus direitos” [op. cit., p. 73] . Por sua vez, Pio XII distingue bem o povo e a massa:
Povo e multidão amorfa, ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diferentes. O povo vive e se movimenta por si mesmo; a massa é em si mesma inerte, e só pode ser movida por forças externas. O povo vive na plenitude da vida dos homens que o compõem, na qual cada um, em seu lugar e de modo próprio, é uma pessoa consciente de suas responsabilidades e convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso de fora, joguete fácil nas mãos de qualquer um que procure explorar os instintos e as impressões e pronta a seguir esta bandeira hoje e outra bandeira amanhã. [Rádio-mensagem de Natal, 24 de dezembro de 1944.]
• Segunda consequência: os governantes eleitos, mesmo se são chamados, como diz Santo Tomás, “vigários do povo”, o são somente no sentido de que fazem o que o povo não pode fazer por si mesmo, ou seja, governar. Porém, o poder lhes vem de Deus, “de quem toda paternidade no céu e na terra recebe seu nome” (Ef 3, 15). Os governantes são responsáveis por seus atos em primeiro lugar diante de Deus, de quem são ministros, e depois diante do povo, para o qual preservam o bem.
Segundo princípio
Os direitos de Deus (e os de sua Igreja, em uma nação católica) são colocados como base da Constituição. Toda a legislação dever ser então inspirada no Decálogo.
• Primeira conseqüência: a “vontade geral” é nula, se for contra os direitos de Deus. A maioria não faz a verdade, ela deve se manter na verdade, caso contrário a democracia se perverterá. Pio XII com razão enfatizava o perigo inerente ao regime democrático e contra o qual a Constituição deve reagir: o perigo da despersonalização, da massificação e da manipulação da multidão por grupos de pressão e maiorias artificiais.
• Segunda consequência: a democracia não é laica, mas declaradamente cristã e católica. Ela é conforme à doutrina social da Igreja, no que concerne à propriedade privada, ao princípio de subsidiariedade e à educação, deixada aos cuidados da Igreja e dos pais, etc.
Resumindo: a democracia, como qualquer outro regime, deve realizar o Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. A democracia também deve ter um Rei: Jesus Cristo.
O LIBERALISMO OU A SOCIEDADE SEM DEUS
“O indiferentismo é o ateísmo sem o nome”.
Leão XIII
Depois de ter analisado os princípios do liberalismo político, procurarei expor como o movimento generalizado de laicização que quase destruiu a cristandade por inteiro tem sua fonte nos princípios liberais. É o que mostra o Papa Leão XIII em sua Encíclica Immortale Dei, em um texto já clássico que não se pode ignorar.
O “direito novo”
Mas esse pernicioso e deplorável espírito de novidades que o século XVI viu nascer, depois de primeiro ter abalado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa origem que é necessário fazer remontar esses princípios modernos da liberdade desenfreada, sonhados e promulgados entre as grandes perturbações do século passado, como os princípios e os fundamentos de um “direito novo”, desconhecido até então e em mais de um ponto em desacordo não só com o direito cristão, mas com o direito natural.
Desses princípios, o seguinte é tido como o maior: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, por-tanto, iguais entre si na prática da vida: cada um se julga tão independente por si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem; pode com toda a liberdade pensar em tudo o que quiser, fazer o que lhe aprouver, ninguém tem direito de mandar nos outros. Numa sociedade fundada sobre tais princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, dependendo apenas de si próprio, é também o único à governar-se por si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito que a função do poder, para exercê-la em seu nome.
A soberania de Deus é passada em silêncio, exatamente como se Deus não existisse ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou, então, como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não tivessem obrigações para com Deus, ou se se pudesse imaginar um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteiramente em Deus, Desse modo, como se vê, o Estado não é mais que a multidão soberana e que governa por si mesma; e desde que o povo é considerado a origem de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga ligado a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não trata de saber qual é a única verdadeira entre todas, nem de preferir umas às outras, nem de favorecer uma principalmente; mas deve atribuir a todas a igualdade em direito, com o único fim de obstar a que perturbem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma, se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade de consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, e a licença sem limites não só de pensar, mas também de publicar os próprios pensamentos. [Immortale Dei, Documentos de Leão XIII, Ed. Paulus, pp. 250-251.]
Consequências do direito novo
Dado que o Estado se baseia nesses princípios, hoje muito em voga, é fácil ver para onde se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática esteja de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou até de inferioridade, com sociedades que lhe são estranhas. Não se têm em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê que lhe tiram toda a gerência na instrução pública.
Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado lavram por si mesmos decretos arbitrários, e por todos os modos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; promulgam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade e estabilidade; apoderam-se dos bens do clero e negam à Igreja o direito de os possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse simplesmente uma associação semelhante às que existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de legítimo poder de ação, fazem-no depender da concessão e do favor dos governantes. [Ibid, p. 251]
Consequências últimas
Assim, nessa situação política que muitos favorecem hoje em dia, há uma tendência de idéias e de vontades para banir inteiramente a Igreja da sociedade, ou mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos inspira-se nesse desígnio. As leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a supressão das ordens religiosas, a destruição do poder temporal dos Pontífices Romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãs, sufocar a liberdade da Igreja Católica, e restringir todos os seus direitos. [Ibid, p. 252]
Leão XIII já se manifestou afirmando que o direito novo, o direito dos princípios liberais, conduz ao indiferentismo do Estado em relação à religião, é o “ateísmo sem nome”, diz ele, [Ibid, p. 253] é a eliminação da religião católica da sociedade. Em outras palavras, o objetivo dos ímpios liberais não é senão a eliminação da Igreja pela destruição dos Estados católicos que a sustentam. Esses Estados eram as muralhas da fé, portanto era necessário abatê-las. E uma vez destruídos tais amparos da Igreja e suprimidas as instituições políticas que eram sua proteção e a expressão de sua benéfica influência, a própria Igreja seria paralisada e abatidas com ela a família cristã, a escola cristã, o espírito cristão e até mesmo o nome cristão. Leão XIII vê claramente este plano satânico tramado pelas seitas maçônicas, e que chega atualmente às últimas consequências.
O liberalismo laicizante em ação durante o Vaticano II
O auge da impiedade, que antes nunca havia sido alcançado, foi quando a própria Igreja, ou o que queria se passar por Ela, adotou no Concílio Vaticano II o princípio do laicismo do Estado, ou o equivalente: a regra de igual proteção do Estado aos adeptos de todos os cultos, pela declaração da liberdade religiosa; tornarei a falar sobre este assunto. Isso mostra até que ponto penetraram as idéias liberais na Igreja, até as mais altas esferas. Também voltarei a falar sobre este assunto. Para recapitular, veremos abaixo o encadeamento lógico dos princípios liberais até chegar às suas consequências extremas para a Igreja. Trata-se do esquema anexo à carta que dirigi ao Cardeal Seper em 26 de fevereiro de 1978. É um paralelo esclarecedor entre Quanta Cura de Pio IX e Immortale Dei de Leão XIII.
Leão XIII
Immortale Dei
1. Condenação do racionalismo individualista indiferentista, do indiferentismo e do monismo de Estado:
(…) todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes e, portanto, iguais entre si na prática da vida: cada um se julga tão independente por si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem; pode com toda a liberdade pensar em tudo o que quiser fazer o que lhe aprouver; ninguém tem direito de mandar nos outros.
(…) a autoridade pública é apenas a vontade do povo (…). Desse modo, como se vê, o Estado não é mais do que a multidão soberana e que se governa por si mesma; e desde que o povo é considerado a origem de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga ligado a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não trata de saber qual é a única verdadeira entre todas, nem de preferir umas às outras, nem de favorecer uma principalmente. [Ibid, 250]
2. Consequência: o “direito à liberdade religiosa” no Estado.
(…) mas deve atribuir a todas as religiões a igualdade em direito, com o único fim de obstar a que perturbem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma, se nenhuma lhe agradar. [Ibid, 250-251]
3. Consequência desse “direito novo”
Dado que o Estado se baseia nesses princípios, hoje muito em voga, é fácil ver para onde se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática esteja de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou até de inferioridade, com sociedades que lhe são estranhas. (…) Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse simplesmente uma associação semelhante às que existem no Estado. [Ibid, p. 251]
Pio IX
Quanta Cura
1. Denúncia do naturalismo e sua aplicação no Estado:
Afinal, bem sabeis, veneráveis irmãos, que neste tempo se encontram não poucos que, aplicando à convivência civil o ímpio e absurdo princípio do naturalismo, ousam ensinar que “o melhor ordenamento da sociedade e o progresso civil exigem que a sociedade humana seja constituída e governada sem nenhum cuidado para com a religião, como se ela não existisse, ou ao menos sem fazer distinções entre a verdadeira e as falsas religiões”. [Documentos de Gregório XVI e Pio IX, Ed. Paulus, p. 250.]
2. Conseqüência: o “direito à liberdade religiosa” no Estado:
Contra o ensinamento dos Santos Padres, não duvidam em afirmar que “a melhor condição da sociedade é aquela na qual não se reconhece ao império o dever de reprimir com penas estabelecidas os violadores da religião católica, a não ser quando isso seja requerido para a paz pública”. [Ibid, pp. 250-251]
E também:
Com essa falsa idéia de governo da sociedade, não temem apoiar aquela outra opinião sumamente danosa para a Igreja Católica e salvação das almas, chamada pelo nosso predecessor Gregório XVI, de veneneranda memória, de deliramento, isto é, “liberdade de consciência e dos cultos como direito próprio de cada homem, que se deve com lei proclamar e sustentar em toda sociedade bem constituída, sendo direito de todo cidadão uma total liberdade, que não pode ser limitada por nenhuma autoridade civil ou eclesiástica (…)”. [Ibid, p. 251]
3. Conseqüência do “direito novo”: ataque à Igreja.
Pio IX denuncia a última “opinião” citada no n° 2: “opinião errada, a mais fatal para a Igreja Católica e para a salvação das almas”. Em seguida ele dirá que isso leva a “desterrar a religião da sociedade pública”.
Mesmo se o Vaticano II não proclama o primeiro princípio do liberalismo, que chamo aqui de racionalismo individualista e indiferentista, encontramos nele, como mostrarei em seguida, todo o seu conteúdo e consequências: o indiferentismo do Estado, o direito à liberdade religiosa para os seguidores de todas as religiões, a destruição do direito público da Igreja, a supressão dos Estados católicos; tudo está ali, toda esta série de abominações encontra-se ali consignada e exigida pela lógica de um liberalismo que não quis dizer seu nome, mas que é sua fonte envenenada.
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CULTOS
“Sob o nome de liberdade de culto, proclama-se a apostasia legal da sociedade”
Leão XIII
Na encíclica Libertas, o Papa Leão XIII passa em revista as novas liberdades proclamadas pelo liberalismo. Seguirei sua exposição passo a passo.
Para evidenciar melhor essas verdades, é conveniente considerar separadamente as diversas espécies de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. [Libertas, Documentos de Leão XIII, Ed. Paulus, p. 326.]
A liberdade de cultos (ou liberdade de consciência e de cultos) é a primeira; ela é, como explica Leão XIII, reivindicada como uma liberdade moral da consciência individual e como uma liberdade social, um direito civil reconhecido pelo Estado.
E primeiramente, a propósito dos indivíduos, examinemos essa liberdade tão contrária à virtude da religião, a liberdade de culto, como é chamada, liberdade que se baseia no princípio de que é lícito a cada qual professar a religião que mais lhe agrade, ou mesmo não professar nenhuma.
Mas, precisamente pelo contrário, sem dúvida alguma, entre todos os deveres do homem, o maior e o mais santo é aquele que lhe ordena que renda a Deus um culto de piedade e de religião. E esse dever não é senão uma conseqüência do fato de nós estarmos perpetuamente sob a dependência de Deus, governados pela vontade e providência de Deus, e de que, saídos Dele, devemos voltar a Ele. [Ibid]
Se realmente o indivíduo-rei é considerado a fonte de seus próprios direitos, é lógico que ele atribua à sua consciência uma completa independência em relação a Deus e à religião. Leão XIII considera então a liberdade religiosa enquanto direito civil. [Vide os textos citados no capítulo anterior, das encíclicas Immortale Dei, de Leão XIII e Quanta Cura, de Pio IX; e o capítulo seguinte.]
Encarada do ponto de vista social, essa mesma liberdade quer que o Estado não renda culto algum a Deus, ou que não autorize nenhum culto público, que nenhuma religião seja preferida a outra, e que todas sejam consideradas como tendo os mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para com o povo, até quando esse povo faz profissão de catolicismo. [Libertas, Documentos de Leão XIII, Ed. Paulus, p. 327.]
Se a sociedade não é mais do que uma coleção puramente convencional de indivíduos-rei, nada deve a Deus, e o Estado se considera livre de todos os deveres religiosos; isso é completamente falso, diz Leão XIII:
Com efeito, não se pode pôr em dúvida que a reunião dos homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e isso, quer se considere em seus membros, quer na sua forma que é a autoridade, na sua causa, quer no número e importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus quem fez o homem para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que as necessidades da sua natureza, às quais os seus esforços isolados não poderiam dar satisfação, possa encontrá-las na comunidade. Eis aí por que a sociedade civil como sociedade deve necessariamente reconhecer Deus como seu princípio e seu autor, e, por conseguinte, render ao seu poder e à sua autoridade a homenagem do seu culto. Nem segundo a justiça, nem segundo a razão o Estado pode ser ateu ou, o que viria a dar no ateísmo, estar animado a respeito de todas as religiões, como se diz, das mesmas disposições e conceder-lhes indistintanteme os mesmos direitos. [Ibid, pp. 327-328]
Leão XIII faz um esclarecimento necessário: quando se fala da religião de modo abstrato, fala-se implicitamente da única verdadeira religião, que é a da Igreja Católica:
Visto, pois, que é necessário professar uma religião na sociedade, deve- se professar a única que é verdadeira e que se reconhece, sem dificuldade, pelo menos nos países católicos, pelos sinais de verdade que com tão vivo fulgor ostenta em si mesma. [Ibid, p. 328]
Portanto o Estado deve reconhecer a verdadeira religião como tal, e professar o catolicismo. [ou seja, incluir na Constituição o princípio desse reconhecimento.] As citações abaixo condenam sem rodeios o pretendido agnosticismo do Estado e sua pretendida neutralidade em matéria religiosa:
Essa religião, os chefes de Estado a devem pois conservar e proteger, se querem, como é obrigação sua, prover prudente e utilmente aos interesses da comunidade. Pois o poder público foi estabelecido para utilidade daqueles que são governados, e conquanto ele não tenha por fim próximo senão conduzir os cidadãos à prosperidade desta vida terrestre, é, contudo, para ele um dever não diminuir, mas pelo contrário aumentar, para o homem, a faculdade de atingir esse bem supremo e soberano, no qual consiste a eterna felicidade dos homens, o que se torna impossível sem a religião. [Ibid]
Voltarei a falar sobre essa citação que contém o princípio fundamental que regula as relações do Estado com a Religião, ou seja, com a verdadeira religião.
A encíclica Libertas é de 20 de junho de 1888. Um ano mais tarde, Leão XIII volta ao tema da liberdade de cultos para condená-la novamente com palavras admiráveis e zelo apostólico, em carta ao imperador do Brasil.
Eis abaixo trechos que mostram o absurdo e a impiedade da liberdade de cultos, uma vez que implica sempre o ateísmo do Estado: [Carta E giunto, de 19 de julho de 1889.]
A liberdade de cultos, considerada em relação à sociedade, está baseada no princípio de que o Estado, inclusive em uma nação católica, não está obrigado a professar ou favorecer nenhum culto; deve permanecer indiferente a respeito de todos e considerá-los juridicamente iguais. Não se trata de uma tolerância que em situações especiais pode ser concedida a cultos dissidentes, mas o reconhecimento de dar a estes cultos os direitos que pertencem somente à única religião verdadeira, que Deus estabeleceu no mundo e marcou com sinais claros e precisos para que todos possam reconhecê-la e abraçá-la.
Além disso, semelhante liberdade põe num mesmo plano a verdade e o erro, a fé e a heresia, a Igreja de Jesus Cristo e qualquer outra instituição humana; estabelece uma funesta e deplorável separação entre a sociedade humana e Deus, seu autor; desemboca finalmente na triste consequência do indiferentismo do Estado em matéria religiosa ou, o que é o mesmo, no ateísmo.
São palavras que valem ouro! São palavras que se deveria aprender de cor. A liberdade de cultos implica o indiferentismo do Estado quanto a todas as formas religiosas. A liberdade religiosa significa necessariamente o ateísmo do Estado, pois ao professar o reconhecimento ou favorecer a todos os deuses, o Estado de fato não reconhece a nenhum, especialmente não reconhece o verdadeiro Deus! Eis aí o que respondemos quando nos apresentam a liberdade religiosa do Vaticano II como uma conquista, como um progresso, como um desenvolvimento da doutrina da Igreja! Porventura o ateísmo é um progresso? A “teologia da morte de Deus” inscreve-se na linha da tradição? A morte legal de Deus! É inimaginável!
É fácil constatar que é isto o que vem nos matando: em nome da liberdade religiosa do Vaticano II suprimiram-se os Estados ainda católicos, apagou-se das constituições desses Estados o primeiro item, que proclamava a submissão do Estado a Deus, Seu autor, no qual se fazia profissão da verdadeira religião. Era exatamente o que queriam os maçons; eles haviam encontrado portanto o meio radical: nada menos do que levar a Igreja, por meio do seu magistério, a proclamar a liberdade religiosa e assim, mediante uma consequência inevitável, obter a laicização dos estados católicos.
Vocês sabem, e é um fato histórico publicado na ocasião pelos jornais de Nova York, que o Cardeal Bea, às vésperas do Concílio, foi visitar os B’nai B’rich, os “filhos da Aliança”, uma seita maçônica reservada aos judeus de grande influência no mundo ocidental. [Cf. H. Le Caron, cap. VII, A Ideologia Democrática.] Na sua qualidade de secretário do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, fundado por João XXIII, ele lhes perguntou: “Maçons, o que vocês querem?”. Eles lhe responderam: “A liberdade religiosa, proclamem a liberdade religiosa e cessarão as hostilidades entre a maçonaria e a Igreja Católica!”. E eles obtiveram a liberdade religiosa; ela é portanto uma vitória maçônica! O segundo fato vem corroborar o acima citado: há pouco tempo, o presidente Alfonsin, da Argentina, foi recebido oficialmente na Casa Branca, em Washington, e pela B’nai B’rith em Nova York, sendo condecorado pelos maçons com a medalha da liberdade religiosa, por ter instaurado um regime de liberdade de cultos, de liberdade religiosa. [Diário de Genebra, sábado, 23 de março de 1985.]
Por causa disso, nós rechaçamos a liberdade religiosa do Vaticano II, e a rechaçamos nos mesmos termos em que fizeram os papas do século XIX, nos apoiamos na autoridade deles. Que maior garantia pode haver de estarmos na verdade e sermos fortes senão pela própria força da tradição e do ensinamento constante dos papas Pio VI, Pio VII, Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, Bento XV, etc. que sem exceção condenaram a liberdade religiosa, como mostraremos no capítulo seguinte.
*
Ao concluir este capítulo me contentarei em citar um trecho da carta E giunto, na qual o Papa Leão XIII mostra mais uma vez a clareza e a força admiráveis de seu juízo sobre a liberdade religiosa (que ele chama de liberdade de cultos):
Será supérfluo insistir nestas reflexões. Repetidas vezes, em documentos oficiais dirigidos ao mundo católico, nós temos demonstrado quão errônea é a doutrina daqueles que, sob o nome de liberdade de culto, proclamam a apostasia legal da sociedade, separando-a de seu divino autor.
Lembrem-se sempre: a liberdade religiosa é a apostasia legal da sociedade; é isso o que respondo a Roma cada vez que me querem obrigar a aceitar globalmente o Concílio e especialmente a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae).
Neguei-me a assinar este ato conciliar em 7 de dezembro de 1965 e atualmente, passados 25 anos, as razões para não o fazer só aumentaram. Não se assina uma apostasia!
A LIBERDADE RELIGIOSA CONDENADA PELOS PAPAS
“A liberdade civil de todos os cultos propaga a peste do indiferentismo”
Pio IX
Correndo o risco de me repetir, vou reunir neste capítulo os textos das principais condenações da liberdade religiosa durante o século XIX, para que os leitores entendam bem o que foi condenado e por que os papas o condenaram.
I
A condenação
Pio VI, carta Quod Aliquantulum, de 10 de março de 1791, aos bispos franceses da Assembléia Nacional:
A finalidade da Constituição decretada pela Assembléia é aniquilar a religião católica, e com ela a obediência devida aos reis. O resultado é que se estabelece na sociedade, como se fosse um direito do homem, esta liberdade absoluta que não só lhe assegura o direito de não ser perturbado quanto às suas opiniões religiosas, como também lhe assegura licença de pensar, de dizer, de escrever e até mesmo de imprimir impunemente tudo o que possa sugerir a imaginação mais desordenada; direito monstruoso que parece à Assembléia ser o resultado da igualdade e liberdade naturais a todos os homens. Mas o que poderia haver de mais insensato do que estabelecer entre os homens tal igualdade e tal liberdade desenfreada que parece afogar a razão, o dom mais precioso que a natureza fez ao homem e o único que o distingue dos animais? [PIN. 1]
Pio VII, carta apostólica Post tam Diuturnitas, ao Bispo de Troyes, na França, condenando a “liberdade de cultos e de consciência” estabelecida pela Constituição de 1814 (Luís XVII): [PIN. 19]
Um novo motivo que aflige ainda mais o nosso coração, enche-o de tristeza e que, confessamos, causa-nos tormento, opressão e angústia, é o artigo 22 da Constituição. Nele não só se permite a liberdade de cultos e de consciência, como também se promete apoio e proteção a esta liberdade e aos ministros dos chamados “cultos”. Certamente não são necessárias muitas explicações ao nos dirigirmos a um bispo como vós, para vos fazer conhecer claramente que ferida mortal este artigo infligiu à religião católica na França.
Pelo mesmo artigo que estabelece a liberdade de todos os cultos sem distinção, confunde-se a verdade com o erro e se coloca no mesmo grupo das seitas heréticas, inclusive da pérfida judaica, a Esposa Santa e Imaculada de Cristo, a Igreja fora da qual não há salvação. Por outro lado, prometendo favor e apoio às seitas hereges e a seus ministros, toleram e favorecem não somente as suas pessoas como também os seus erros. É implicitamente a desastrosa e sempre deplorável heresia que Santo Agostinho menciona com estas palavras: “Ela afirma que todos os hereges estão no bom caminho e dizem a verdade, o que é tão monstruosamente absurdo que não posso acreditar que alguma seita o professe realmente”.
Gregório XVI, encíclica Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832, que condena o liberalismo sustentado por Lamennais:
Dessa contaminadíssima fonte do “indiferentismo” verte aquela absurda e errônea sentença, ou antes delírio, de que se deva admitir e garantir para cada um a liberdade de consciência. Trata-se do erro venenosíssimo para o qual aplaina a vereda aquela plena e descomedida liberdade de opinar que vai sempre em dano da Igreja e do Estado. Nem falta quem ouse descaradamente afirmar que dessa licença vem alguma vantagem à religião. “Mas qual morte pior para a alma pode haver do que a liberdade do erro!”, exclama Santo Agostinho. [Comentário ao Salmo 124] Retirado, enfim todo tipo de freio que retenha nos caminhos da verdade os homens já próximos ao precipício, pela natureza inclinada ao mal, poderíamos dizer com verdade ter-se aberto o “poço do abismo” (cf. Ap 9,3) do qual São João viu sair uma fumaça que chegou a encobrir o sol, saindo inumeráveis gafanhotos que desertificaram a terra. Daí, afinal, provém sempre a transformação dos espíritos, a depravação da juventude, o desprezo do povo pelas coisas sagradas e leis mais santas, em uma palavra, daí provém a peste da sociedade, mais nociva do que qualquer outra. À experiência secular, desde a mais remota antiguidade, luminosamente demonstra que a cidade, mesmo que ostentando opulência, domínio, e a mais florescente glória, unicamente por causa dessa desordem, isto é por uma excessiva liberdade de opinião, pela licença dos conciliábulos, pela mania da novidade, encaminhava-se tristemente para a ruína. [Documentos de Gregório XVI e Pio IX, Ed. Paulus, pp. 34-35.]
Pio IX, encíclica Quanta Cura, de 8 de dezembro de 1864. O papa reitera a condenação feita por seu antecessor:
Afinal, bem sabeis, veneráveis irmãos, que neste tempo se encontram não poucos que, aplicando à convivência civil o ímpio e absurdo princípio do naturalismo, ousam ensinar que “o melhor ordenamento da sociedade e do progresso civil exigem que a sociedade humana seja constituída e governada sem nenhum cuidado para com a religião, como se ela não existisse, ou ao menos sem fazer distinções entre a verdadeira e as falsas religiões”.
Contra o ensinamento das Sagradas Escrituras, da Igreja e dos Santos Padres, não hesitam afirmar que a “melhor condição da sociedade é aquela na qual não se reconhece ao império o dever de reprimir com penas estabelecidas os violadores da religião católica, a não ser quando isso seja requerido para a paz pública”.
Com essa falsa idéia de governo da sociedade, não temem apoiar aquela outra opinião sumamente danosa para a Igreja Católica e salvação das almas, chamada pelo nosso predecessor Gregório XVI, de veneneranda memória, de deliramento, isto é, “liberdade de consciência e dos cultos como direito próprio de cada homem, que se deve com lei proclamar e sustentar em toda sociedade bem constituída, sendo direito de todo cidadão uma total liberdade, que não pode ser limitada por nenhuma autoridade civil ou eclesiástica, em virtude da qual podem manifestar os próprios pensamentos, quaisquer que sejam, abertamente e em público, a viva voz, pela imprensa ou de outro modo”. Enquanto temerariamente afirmam essas coisas, não pensam nem consideram que eles anunciam “liberdade de perdição”, e que, “se às humanas persuasões fosse sempre dada liberdade de disputar, não faltariam nunca aqueles que ousam impugnar a verdade e confiar na loquacidade da sabedoria humana. Ao invés, que compete à fé e à sabedoria cristã evitar essa danosíssima leviandade, sabe-se da própria instituição do Senhor nosso Jesus Cristo”. [Ibid, pp. 250-251]
Pio IX, Syllabus: resumo dos erros condenados, extraídos de diversos documentos do magistério de Pio IX e publicados junto com a encíclica Quanta Cura:
77. Em nosso tempo não é mais conveniente ter a religião católica como a única religião de Estado, excluindo todos os outros cultos.
78. De modo louvável, então, em algumas regiões católicas foi estabelecido por lei que é lícito aos homens que aí foram morar praticarem o exercício público do culto próprio de cada um.
79. É falso, afinal, que a liberdade civil de qualquer culto, como também a plena autoridade concedida a todos de manifestar abertamente e em público qualquer opinião ou pensamento, leve mais facilmente a corromper os costumes e os ânimos e a propagar a peste do indiferentismo. [Ibid, p. 275]
Leão XII, encíclica Immortale Dei, de 19 de novembro de 1885, sobre a organização cristã dos Estados:
Desse modo, como se vê, o Estado não é mais do que a multidão soberana e que se governa por si mesma; e desde que o povo é considerado a origem de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga ligado a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não trata de saber qual é a única verdadeira entre todas, nem de preferir umas às outras, nem de favorecer uma principalmente; mas deve atribuir a todas a igualdade em direito, com o único fim de obstar a que perturbem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, de abraçar a religião que prefere, ou de não seguir nenhuma, se nenhuma lhe agradar. [Immortale Dei, Documentos de Leão XIII, Ed. Paulus, pp. 250-251.]
O que é condenado
O que todas essas condenações pontificais recriminam é a liberdade religiosa, chamada de “liberdade de consciência” ou “liberdade de consciência e de cultos”, a saber: o direito reconhecido a todo homem de exercer publicamente o culto da religião que tenha escolhido, sem ser incomodado pelo poder civil.
II
Motivo da condenação
Os textos apresentados mostraram cuidadosamente as causas e denunciaram as origens liberais do direito à liberdade religiosa: trata-se de denunciar principalmente o liberalismo naturalista e racionalista, o qual defende que a razão humana é o único árbitro do bem e do mal (racionalismo); que pertence a cada um decidir se deve adorar ou não (indiferentismo); e, finalmente, que o Estado é a origem de todo o direito (monismo estatal).
Daí certos teólogos modernos acharam que três teses poderiam ser tiradas:
1. Os papas não condenaram a liberdade religiosa em si mesma, mas a condenaram somente porque ela aparecia “como conseqüência de uma concepção naturalista do homem”, [Roger Aubert: “O magistério eclesiástico e o liberalismo”, em Tolérance et Communauté Humaine, Casterman, 1951, p. 81.] ou que ela “procedia da primeira premissa do racionalismo naturalista”, [John Courtney Murray, Vers une Intelligence du Développement de la Doctrine de l’Eglise sur la Liberté Religieuse, dans Vatican II: La Liberté Religieuse, p. 112] ou das duas outras: “mais do que as consequências, são os princípios que são aqui considerados: a Igreja condena o racionalismo, o indiferentismo e o monismo estatal”. [J. Hamer O.P., Histoire du Texte de la Déclaration dans Vatican II, La liberté religieuse, Cerf. Paris, 1967.]
2. Ante as expressões concretas dos princípios modernos (luta com o poder temporal do papado, laicização das constituições, espoliação da Igreja, etc.), faltou aos papas “a serenidade necessária para julgar com objetividade o sistema das liberdades modernas, e distinguir o verdadeiro do falso”; “era inevitável que o primeiro reflexo de defesa fosse uma atitude de condenação total” [Roger Aubert, op. cit., p. 82], era difícil para os papas “reconhecer valor num conteúdo cuja motivação era hostil aos valores religiosos (…) assim se fez cara feia durante um longo tempo ao ideal representado pelos direitos do homem, porque não se lograva reconhecer neles a longínqua herança do Evangelho”. [Comission Théologique Internationale, Les Chrétiens d’Aujourd’hui devant la Dignité et les Droits de la Personne Humaine, Comissão Pontifícia Justiça e Paz, Vaticano, 1985, p. 44; cit. Por Doc. Episc., boletim do Sec. da Conferência Episcopal Francesa, outubro de 1986, p. 15.]
3. Mas hoje é possível redescobrir a parte de verdade cristã contida nos princípios da Revolução de 1789 e reconciliar assim a Igreja com as liberdades modernas, com a liberdade religiosa em particular. O Padre Congar foi o primeiro a traçar o caminho que se deve seguir neste ponto:
A reconciliação da Igreja com um certo mundo moderno não podia ser feita introduzindo as ideias deste mundo moderno tal como são. Era necessário um trabalho profundo em que os princípios permanentes do catolicismo tivessem um novo desenvolvimento ao assimilar, depois de filtradas e, em caso de necessidade, purificadas, as conquistas do mundo moderno. [Y. Congar O.P., Vraie et Fausse Reforme dans l’Eglise, Cerf, Paris, 1950, p. 345, cit. Por Roger Aubert, p. 102.]
Um ano depois, Roger Aubert ecoou este modo de ver as coisas: a respeito dos colaboradores de L’Avenir, jornal católico-liberal de Lamennais, no século XIX, ele diz o seguinte:
Eles não haviam tido suficiente cuidado em repensar os princípios que permitiam, com os discernimentos e as purificações necessárias, assimilar ao cristianismo as idéias de democracia e de liberdade, que, nascidas fora da Igreja, desenvolveram-se em um espírito hostil a ela. [Op. cit., pp. 81-82]
Ora, Vaticano II disse que a purificação e assimilação dos princípios da Revolução de 1789 era seu fim primordial:
O Concílio se propõe, antes de tudo, julgar, sob a luz da fé, os valores mais apreciados por nossos contemporâneos (direitos do homem, liberdade, tolerância…) e voltar a uni-los à sua fonte divina. Pois estes valores, enquanto procedem do gênio humano, que é um dom de Deus, são muito bons; não é raro, porém, que a corrupção do coração humano os afaste da ordem requerida, e por isso é necessário purificá-los. [Gaudium et Spes, II § 2]
É isto o que fez o Concílio, diz o Cardeal Ratzinger:
O problema dos anos 1960 era adquirir os melhores valores resultantes dos séculos de cultura “liberal”. Com efeito, são valores que mesmo nascidos fora da Igreja, podem encontrar seu lugar, purificados e corrigidos, em sua visão do mundo. É o que foi feito. [Entrevista à revista Jesus, novembro de 1984.]
Esses textos mostram o consenso unânime entre os teólogos que prepararam, realizaram e executaram o Concílio. Ora, essas afirmações, que chegam a ser repetições literais umas das outras, não são mais que uma espantosa impostura. É lamentável a afirmação de que os papas não viram o que há de verdade cristã nos princípios da Revolução de 1789! Vejamos cuidadosamente:
1. Certamente os papas condenaram o racionalismo, o indiferentismo do indivíduo e o monismo estatal. Mas não condenaram só isso! Condenaram expressamente as liberdades modernas em si mesmas. A liberdade religiosa foi condenada em razão do que ela vale, e não por causa das motivações históricas da época. Tomemos como exemplo o liberalismo de Lamennais (condenado por Gregório XVI): ele não é o liberalismo absoluto e ateu dos filósofos do século XVIII (condenado por Leão XIII em Immortale Dei); no entanto, todos esses liberais, quaisquer que fossem seus princípios – às vezes muito diversos – ou seus matizes, sempre reivindicaram a mesma liberdade religiosa. O que é comum a todos os liberalismos é a reivindicação do direito de não ser incomodado pelo poder civil no exercício público da religião de sua escolha; seu denominador comum (como diz o Cardeal Billot) é a libertação de toda coação em matéria religiosa. E, como veremos, é exatamente isso o que os papas condenaram.
2. É uma impiedade e injustiça aos papas dizer-lhes: “Vós haveis juntado na mesma condenação os falsos princípios do liberalismo e as liberdades boas que ele propõe; haveis cometido um erro histórico”.
Não foram os papas que cometeram um erro histórico ou que foram prisioneiros de circunstâncias históricas, mas sim estes teólogos imbuídos do preconceito historicista, apesar do que eles dizem. Basta-nos ler as referências históricas reunidas por Roger Aubert e J. Courtney Murray sobre a liberdade religiosa para comprovar que esses teólogos revitalizam sistematicamente os ensinamentos dos papas do século XIX segundo um princípio que assim se pode expressar: “todo enunciado doutrinal do magistério é estritamente relativo a seu contexto histórico, de tal modo que, mudado o contexto, a doutrina pode mudar”. [O Pe. Court Murray, procurando explicar como o magistério pode passar das condenações do século XIX à liberdade religiosa do Vaticano II, declarou primeiro: “Esta inteligibilidade não é acessível a priori ou simplesmente pelo jogo de aplicações de alguma Teoria Geral do desenvolvimento da doutrina. Atualmente não temos uma teoria geral neste sentido”.] Não há necessidade de lhes dizer o quanto esse re-Tativismo e evolucionismo doutrinal são contrários à estabilidade da rocha de Pedro no meio das flutuações humanas, e quão contrários são à Verdade imutável que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
Esses teólogos, de fato, não são teólogos nem bons historiadores, pois não têm nenhuma noção da verdade ou de uma doutrina permanente da Igreja, principalmente em matéria social e política; extraviam-se em sua erudição e se tornam prisioneiros de seus próprios sistemas de interpretação; possuem muitas idéias, mas não são bons pensadores. Teve razão Pio XII ao condenar sua teologia cambiante, sob o nome de historicismo:
Existe igualmente um falso historicismo, que se atém só aos acontecimentos da vida humana e, tanto no campo da filosofia como nos dogmas cristãos, destrói os fundamentos de toda verdade e lei absoluta. [Encíclica Humani Generis, de 12 de agosto de 1950. Documentos de Pio XII, Paulus, p. 433.]
3. Reconciliar a Igreja com as novas liberdades será de fato o esforço do Vaticano II em Gaudium et Spes e na declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae); voltaremos adiante a esta tentativa, de antemão condenada ao fracasso, de combinar a Igreja e a Revolução.
Por enquanto, vejamos os verdadeiros motivos, imediatos e concretos, da condenação da liberdade religiosa pelos papas do século XIX, motivos para sempre válidos, como se pode ver nas próprias expressões usadas pelos papas: absurda, ímpia e condutora ao indiferentismo religioso. Torno a utilizar estes termos:
• Absurda é a liberdade religiosa, porque dá o mesmo direito à verdade e ao erro, à verdadeira religião e às seitas heréticas; ora, diz Leão XIII, o “direito é uma faculdade moral, e como temos dito e nunca se repetirá suficientemente, seria absurdo crer que ela pertença naturalmente e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal”. [Libertas]
• Ímpia é a liberdade religiosa, porque “atribui a todas as religiões a igualdade de direitos” e “põe no mesmo nível as seitas heréticas, inclusive a pérfida judaica, com a Esposa santa e imaculada de Cristo” também porque ela leva ao “indiferentismo religioso do Estado”, que é o mesmo que seu “ateísmo”, ou seja, a impiedade legal das sociedades, à apostasia forçada das nações, o rechaço da realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo, a negação do direito público da Igreja, sua eliminação da sociedade ou submissão ao Estado.
• Finalmente, ela conduz os povos à indiferença religiosa, como declara o Syllabus ao condenar a proposição 77. É evidente que, se atualmente a igreja conciliar e a maioria dos católicos chegam a ver em todas as religiões caminhos de salvação, é porque o veneno do indiferentismo já lhes foi administrado durante quase dois séculos de liberdade religiosa.
RECOMENDAÇÕES COMPLEMENTARES: O HUMANISMO CONCILIAR, A LIBERDADE RELIGIOSA e AS PRINCIPAIS HERESIAS E OUTROS ERROS DO VATICANO II
Excerto de: Mons. MARCEL LEFEBVRE; Do Liberalismo à Apostasia, Permanência, 2013, pp. 51-80.