Gustavo Corção
1954
I
Vamos agora considerar o efeito do tecnicismo na política, isto é, vamos ver o que acontece nesse plano, quando o homem tem nojo da morrinha da prudência.
Em sã doutrina nós sabemos que a política tem por objeto a promoção do bem-comum da ordem temporal, e que esse bem-comum tem três notas essenciais. Em primeiro lugar deve ser entendido como comum ao todo e às suas partes, isto é, deve ser essencialmente redistributivo. A sociedade não é um todo de puras partes; o indivíduo não é um simples átomo social inteiramente submetido ao bem do todo. A relação indivíduo sociedade se estabelece em dois termos: no primeiro há uma real subordinação do indivíduo à sociedade; no segundo, em outra perspectiva, há ordenação da sociedade à pessoa humana. Há assim um elo do homem para a sociedade, e outro de volta da sociedade para o homem. E o bem-comum não pode deter-se no primeiro termo do binômio, sendo um puro fim do coletivo, do grupo, da sociedade, a que os indivíduos devem contribuir. Não, o bem-comum reverte, não somente sob a forma de pão ou de circo, mas como bem-comum de humana felicidade, de humana dignidade, redistribuindo-se assim por pessoas humanas.
A segunda nota essencial se refere ao modo de promoção do bem-comum e à natureza da sociedade que deve ser hierarquizada, fundada na autoridade, diferenciada em grupos e instituições. A terceira nota é a da moralidade intrínseca pela qual, como já disse, o bem-comum não é somente um potencial de utindade, uma riqueza material, mas também e essencialmente a retidão da vida, a íntegra boa vida humana da multidão.
Ora, o tecnicismo político consiste precisamente na revogação desta terceira nota, a da natureza ética do bem-comum. Governar já não será um ato essencialmente prudencial que utiliza, sob esse critério, todas as técnicas de que o homem é capaz. Será um ato mais parecido com o do arquiteto do que com o da boa dona de casa. E portanto será um ato heterogêneo com a humana felicidade.
Essa é a posição do problema. Temos em confronto duas filosofias, duas políticas. Uma que só pode existir no clima da liberdade, porque sem liberdade não há oxigênio da moralidade; e outra que passa por cima do homem para atingir um ideal de eficiência.
Ora, o que pretendo mostrar é que, antes mesmo de chegar às formas totalitárias da mais implacável política mecânica, os povos estão hoje impregnados dessa veneração pela eficiência. Vejam por exemplo como reagem as pessoas quando se discute o desempenho político de um prefeito ou de um presidente da República. Se por acaso o personagem, nos seus últimos dias de governo, mostrou alguma eficiência, o comentário melancólico que se ouve é este: “Ora, ele ao menos deixou alguma coisa feita”.
Essa é a esquisita idéia que muita gente faz hoje de um bom governo. Rua calçada, edifício erguido, ponte lançada – alguma coisa ficou feita. E se alguma coisa ficou feita o governo foi bom. É claro que não vou sustentar aqui a tese contrária: que o bom governo consiste em deixar as ruas esburacadas e os prédios públicos em ruínas. Seduz-me a tese, de tanto que me irrita a outra. Mas sou forçado a convir, razoavelmente, que os governos devam fazer alguma coisa. Mais adiante abordaremos novamente esse aspecto do problema, mas investiguemos agora mais a fundo essa singular concepção que abre mão de todos os outros critérios, e conclui que tudo se perdoa e se esquece quando o governador deixa coisas feitas.
Quem esposa essa teoria pretende negar-se ao debate de qualquer problema que se coloque nas nebulosas regiões do fato moral. Só aceita debates na luminosa região dos fatos físicos. Trata-se de um governador desmandado que usou e abusou dos cofres públicos, que organizou caixinhas, que exibiu os maus costumes próprios e encorajou os maus costumes dos outros, que fundou cassinos, que distribuiu pelos seus o que não era seu, que desmoralizou as instituições?… não importa tudo isso, se deixou alguma coisa feita. Aquelas coisas serão categorias abstratas, temas literários, jornalísticos ou filosóficos. Fumaças que passam. Palavras que se perdem no ar. Ao contrário, o edifício, a ponte, o obelisco, são coisas que ficam, e conseqüentemente são as únicas que merecem ponderação. Além disso, como todos nós sabemos, outros há que cometem os mesmos desmandos e não deixam nada feito. Este não, este ao menos deixou alguma coisa feita.
Poderíamos objetar que essas obras custaram um preço físico insuportável e um preço moral intolerável; poderíamos mostrar que essas mesmas obras foram iniciadas para que enormes verbas ficassem à mercê das manipulações oficiais, e que a essas realizações visíveis, de praça pública, correspondem invisíveis buracos nos orçamentos familiares, no bem-estar, na felicidade das casas de família. Poderíamos, em suma, dizer, gritar que a própria eficiência é aparente.
Em vão o faríamos. O nosso interlocutor já conhecia já previa o argumento, e gaba-se de saber, melhor do que nós, que a política é assim mesmo, uma espécie de irremediável porcaria. E quando terminarmos a nossa demonstração, ele voltará ao seu ponto de partida: “Sem dúvida… sem dúvida.. mas êle, ao menos, deixa alguma coisa feita”.
Não lhes ocorre, a esses experimentados cidadãos, que a comunidade política seja algo de parecido com a comunidade familiar? Não lhes ocorre, a esses cidadãos de cristalizadas opiniões, que uma cidade seja feita de casas e que uma nação seja feita de homens?
Na esperança quase insensata de convencer esses adeptos do tecnicismo político e êsses idólatras da eficiência, eu desenvolverei a analogia entre a cidade e a casa e contarei êste imoralíssimo apólogo:
Era uma vez um marido exageradamente infeliz. Repetidamente infeliz. Sistematicamente infeliz. Nos primeiros tempos da infelicidade tentara vigiar, impedir, ameaçar; mas com o correr dos anos acabara por se convencer de que a vida de família é assim mesmo, uma porcaria tão irremediável como a vida da cidade. Ora, certa noite, chegando a casa inopinadamente, e percebendo que mais uma vez fora infeliz, ia adicionar essa informação à sua consolidada filosofia quando notou, com espanto e alegria, que alguém, na sua ausência, consertara a cadeira de balanço, dera banho no cachorro, e mudara a lâmpada queimada da cozinha. Diante de tão indiscutíveis resultados, o nosso ultrajado personagem disse talvez com seus botões: “Ora, esse ao menos deixa alguma coisa feita”.
II
Muitas vezes já nos perguntaram o que entendemos nós por democracia. No sentido estrito essa palavra caracteriza um certo regime de maior participação popular, de mais profunda imanência do fato político na sociedade. Em sentido mais amplo – e é nesse sentido que em geral defendemos a bandeira desse ideal político – democracia é o regime da política humana, intrinsecamente moral, e oposta ao totalitarismo tecnicista e conseguintemente amoral e maquiavélico. E o regime em que não se pode dizer, nem pensar que há certas injustiças necessárias; em que não se pode suspender por algum tempo os direitos da pessoa humana sob o pretexto de resolver o problema urgentíssimo do pão; em que não se pode alegar que a oposição atrapalha o governo; e em que não se pode dizer, nem pensar, nem sonhar, que o amordaçamento da Imprensa e o monopólio do Ensino possam trazer algum benefício para o homem.
Democracia é política intrinsecamente moral, posta ao serviço do homem, de sua missão temporal, ainda que empreenda e dirija centenas de realizações técnicas, ainda mesmo que sofra centenas de fenômenos imorais. Lembro-me aqui de certos indivíduos que, nos anos de guerra, contrapunham ao regime nazista a proverbial perfídia da política inglêsa. E concluíam que tanto valia uma coisa como outra. Ora, estou pronto a conceder o que se diz da política inglesa. Não irei aqui defender a pátria de Chesterton e de Newman em detrimento da pátria de Schiller e de Goethe. Concedo que tenha sido pérfida a política inglesa. Digamos logo que tem sido imoral. Mas o que a política nazista trazia ao mundo era uma nova receita de convivência que, entre outros inconvenientes, tinha o de nos negar o direito de dizer que a política britânica é imoral: porque a política nazista era realmente amoral. E basta essa pequena diferença para me autorizar a dizer, sem nenhum romantismo, que a pérfida Albion estava, na guerra, defendendo os direitos do homem.
Na mesma ordem de idéias incorrem em erro lastimável os que dizem que não pode haver escolha de critério cristão entre os Estados Unidos e a Rússia, porque tão ruim é um com seu capitalismo, como o outro com seu comunismo. Não há paridade, não é justa a simetria. Primeiro, porque os Estados Unidos não corporificam o capitalismo, não se identificam com ele como a Rússia ostensivamente pretende identificar-se com o comunismo. Segundo, porque a malícia profunda do capitalismo, isto é, do fato capitalista não logrou penetrar e impregnar totalmente a política americana que, mal ou bem, ainda se pauta pelos direitos fundamentais da pessoa humana. Há um abismo entre o imoralismo americano, empírico, imperfeito, e o amoralismo doutrinário e sistemático do regime russo.
A democracia, em largo sentido, é definida como política de substância ética, tem a morrinha do homem, a imperfeição do homem. Sua miséria deriva de sua própria grandeza. Ela tem, como disse Maritain referindo-se à Prudência, rainha das virtudes morais, “un certain goût de misère”. É claro que esse regime funcionará mal, isto é, parecer-nos-á imperfeito, ridículo, humilhante, se o compararmos ao motor de uma Cadillac. É claro que a sociedade assim estruturada vai parecer-nos um feio e bisonho grupo de sêres irrequietos e desafinados, se a compararmos a uma apoteose wagneriana. Mas haja o que houver dentro desse fatigante regime, dessa mal-arrumada sociedade de homens livres, é preciso guardar fidelidade a essa fadiga e a essa fealdade. Haja o que houver, é preciso não esquecer que um homem é um homem, e que o homem talvez seja – quem sabe? – um filho de Deus. Se há crimes, persiga-se o crime; se há abusos, denunciem-se os abusos; se cresce a iniquidade, multiplique-se a vigilância; e se os crimes e abusos se tornam oficiais, se é o próprio governo que promove a iniquidade, se a desfaçatez já não conhece limites, se a empáfia do mando se torna um insulto, e o peculato uma norma, e o filhotismo uma regra – então é preciso dizer que os mais pacíficos filósofos não são contrários à idéia de uma revolução. Mas em hipótese alguma, em circunstância alguma, deixemo-nos levar pela genial idéia de um filósofo alemão ou de um teatrólogo francês que tenham descoberto o método infalível de consertar o eixo da Terra, desde que o homem faça a pequena concessão de se despojar, ao menos provisoriamente, de sua humanidade.
III
O bem comum da política democrática é intrinsecamente moral. Isto quer dizer que tem a ininterrupta continuidade do fato moral. Em outras palavras, o bem comum é realizado em cada conjuntura, e deve ser totalmente procurado em cada circunstância. O bem comum deve ser realizado hoje, amanhã, depois, e não daqui a cinco anos. Nenhum de nós recusa a idéia de um progresso e de uma procura de um ideal histórico a ser atingido. Ao contrário, desejamos ardentemente um mundo novo cujo nascimento entrevemos nas convulsões dos acontecimentos. Desejamos uma ordem econômica mais justa do que essa monstruosidade que pesa em nossa civilização. Desejamos uma revisão da noção de propriedade. Desejamos uma reforma agrária. Mas todos esses ideais concretos nos aparecem como realidades morais dando corpo e forma às subalternas realidades técnicas. E por isso não podemos conceituar o bem-comum no termo, no atingimento, no acabamento de um programa.
Para o tecnicismo político, como era de esperar, o bem comum é um resultado que se encontra no termo de uma obra. De um plano quinquenal. Será obtido em certa data, assinalado em certa inauguração oficial. Será portanto descontínuo e heterogêneo em relação aos dias que passam, às vidas que transcorrem nessa etapa da construção. Tudo ficará reduzido à condição de meio, de puro intermediário, e o homem que vive hoje, ou que morre hoje, não participará desse bem a ser montado. Nessas condições é evidente que se pode suspender momentaneamente, por cinco ou cinquenta anos, os chamados direitos do homem. Os homens serão sacrificados por uma Idéia. E a sociedade, esse todo oceânico feito de todos abismais, passa a ser considerada como um monte de argila dócil que se deixa modelar pelos dedos de um escultor inspirado que sonhou como deve ser feita a estátua de um povo.
IV
O marxismo é uma das formas mais perfeitas do tecnicismo político. E o stalinismo é a sua mais perfeita realização histórica. Logo no preâmbulo da doutrina o homem deixa de ser essencialmente racional e passa a ser essencialmente fabricante. A linha mestra da vida se desloca para a ordem do fazer. E na política, como era de esperar, o ato de governar passa a ser uma espécie de engenharia. Projeta-se na prancheta a épura da nova sociedade sem classes. Lá fora, nas ruas, nas casas, nos berços, nas escolas, nos jardins, está a matéria, o tijolo humano; cá dentro, nos gabinetes da nova política, estão os técnicos, os supertécnicos, os politécnicos que calculam com logaritmos e desenham a nova forma que aquela massa inerte, potência dura, deve receber.
Na política normal, intrinsecamente ética, governar é dirigir a vida imanente da sociedade para um ideal concreto de maior perfeição sem contudo quebrar a exigência absoluta da continuidade moral, isto é, sem deixar de realizar em cada dia o bem comum distributivo, ético e hierárquico. Ao contrário, no tecnicismo político, que atribui ao Estado uma transcendência sobre a multidão, governar é mover a sociedade de fora, do alto da transcendência estatal, como o artista move a tinta ou a tecla.
Essa idéia de que o governo é técnica manifesta-se às vezes com um ingênuo grotesco. Aqui entre nós, onde o tecnicismo impregnado de ciência popular está em assustadora ascensão, foi há tempos saudado um novo prefeito com esse título esperançoso: é um técnico! E há mais tempo ainda, em 1945, o bravo Partido Comunista lançou um candidato à presidência da República usando, como principal recurso de propaganda, o seu título de engenheiro. Ora, não se vê bem por que será recomendável um engenheiro para a presidência da República. Ninguém ignora que a engenharia se divide hoje em diversas especialidades. Há engenheiros que vão para o ferro, enquanto outros são para a água. Há o construtor de pontes, e há o eletrotécnico. E dentro da eletrotécnica, que já é um mundo, encontramos inúmeras subdivisões, que vão das usinas hidrelétricas ao microscópio eletrônico. Qual será, dessas especialidades, a mais indicada para o Catete? Se querem um artífice no leme do país, por que não escolhem um dentista? Eu poderia provar, sem grande dificuldade, que ao presidente da República interessam mais as bocas do que os túneis. Ou então quem sabe se não deveria ser um otorrinolaringologista o nosso candidato?
Há uma contradição nessa idéia de fazer do governo uma técnica. A técnica, por sua própria natureza, é uma particularização, uma especialização. Seu sucesso, sua força, vêm exatamente dessa divisão, dessa extrema divisão da área em que opera. Seu brilho vem de sua cristalização. E portanto absurda a idéia de um tipo de atividade que tenha as vantagens nítidas da técnica sem ter aquilo mesmo que a define, isto é, a restrita delimitação de seu particularíssimo campo. Não pode pois existir uma técnica geral, uma super-técnica de governar ou de viver. Não pode mesmo existir uma técnica de administrar, se por tal coisa se entende um contorno geral que inscreva e que domine com seu critério todas as atividades ordenadas ao bem comum. Um maestro dirige uma orquestra de um modo puramente artístico durante a execução de uma sinfonia; um gerente pode dirigir de um modo puramente técnico certas atividades de uma fábrica, mas não pode administrar assim tôda a fábrica porque, à medida que cresce o campo das atividades, diminui a possibilidade de um sincronismo e de uma unidade do tipo técnico; e sobretudo porque a fábrica está ordenada à boa vida humana, integralmente humana de seus operários, e não simplesmente à produção de um certo objeto. E por muito mais forte razão não é possível governar tècnica-mente um país.
Quem quiser fazer essa tentativa, aproveitando a capitulação de todo um povo, deverá primeiro cortar todas as liberdades, e deverá limitar fisicamente o seu campo de trabalho, cercando o país com uma cortina de ferro.
V
Resta saber se tal tentativa, tomadas tôdas essas pre-cauções, dá o resultado que esperam os que se entregam a essa sub-aventura. Resta saber se haverá mais pão e mais leite nessa comunidade de detentos.
À primeira vista parece possível. Não há nas vidas individuais muito sucesso e muita abastança adquiridas no leilão das almas? Não há indivíduos que se mantêm em alto padrão à custa de vender a mulher e as filhas? É claro que há. Um homem, tomado isoladamente, pode conseguir um apreciável resultado material, se adotar um pragmatismo que se emancipe da antiga moral de escravos. Pode viver cercado de bem-estar e de honrarias. Pode morrer no apogeu de sua carreira sem que se veja nenhum sinal de humana ou divina sanção em sua gloriosa vida. O imoralismo individual, no que concerne às coisas visíveis desta vida, pode dar um bom resultado, isto é, o resultado que aquele imoralismo colimou.
Outra coisa, porém, é o destino terreno das sociedades. Essas, se praticam o imoralismo sistemático e oficial, não atingem, não podem atingir o puro sucesso material que planejaram. Em outras palavras, não se pode conseguir para um povo mais leite e mais pão deixando para depois a liberdade e a moral. Umas das conseqüências do vício essencial do capitalismo consiste na possibilidade do imoralismo individual colher proventos em prejuízo da comunidade. As simpáticas objurgatórias dos socialistas, quando fazem o processo do capitalismo, fundamenta-se no senso moral que rejeita os direitos do imoralismo privado. Mas o absurdo desses mesmos socialistas consiste em pensar que a felicidade de um povo, ao menos a do estômago, pode ser obtida com a generalização do imoralismo. Em outras palavras, o imoralismo individual do capitalismo burguês pode dar certo, porque ele tem de onde tirar os seus proventos. Mas se a fórmula se torna racional, se toda a sociedade se estrutura nesse imoralismo, já não se vê como poderá funcionar o sucesso material, o puro sucesso material dos privilegiados do regime capitalista. Entende-se bem o esquema em que a falta de escrúpulos traz proveito para uns poucos, mas é inteiramente desvairada a idéia de que a falta de escrúpulos possa trazer o proveito para todos. Em outras palavras: o bem-viver material de todos só é possível numa sociedade moralmente estruturada, porque não é possível imaginar que os cidadãos que renunciaram às virtudes da cidadania conservem intatas e até desenvolvam as virtudes da cooperação.
Por mais drásticos que sejam os recursos adotados pelo governo técnico, a matéria que está à sua disposição não é dócil como uma fôlha de papel em branco. O homem continua a ser o que é, no mais desumano dos regimes. Continua a ser livre, essencialmente livre, dentro da cortina de ferro. Mas o exercício dessa liberdade, não encontrando o clima adequado, transforma-se em dissipação interna, em atritos. em desgastes imponderáveis, e a realização planejada pelo técnico fica a meio caminho, no nível do esboço, do feto, do mostrengo, do ectoplasma em via de materialização.
Na política ética, como já disse, o bem-comum tem ao mesmo tempo dois aspectos: deve ser realizado já, aqui e agora, em cada conjuntura histórica; e deve ser conduzido para um ideal de longo alcance. Ao contrário, no tecnicismo político, o bem comum é planejado para uma certa data, com sacrifício do dia que passa. Será uma obra com inauguração marcada. Mas como o homem não pode ficar com sua humanidade suspensa, o tecnicismo político tem de abreviar suas realizações e de apresentar aos povos certos resultados imediatos. Porque o homem só pode esperar um ideal quando já possui alguma coisa homogênea com êle, aqui e agora. No verdadeiro sentido da vida, nós temos um pólo, um fim último, uma causa final de nossos atos; mas esse fim não é um fim cronológico, não é uma data; é uma causa atuante e efetivamente presente em todos os atos de nosso itinerário. O tecnicismo corta essa continuidade, essa homogeneidade, essa imanência do fim em nossos atos. E por isso está obrigado a termos próximos, está obrigado a alimentar um ritmo arquejante, a “ilusão do sucesso imediato”.
O maquiavelismo político penetra suas próprias realizações técnicas, que passam a ter mais teatralidade do que utilidade, e todo esse conjunto de falsos prestígios só se equilibra mediante uma intensiva estupidificação das massas. A propaganda, que era um dos recursos da concorrência comercial e da livre iniciativa, e que já nesse domínio deveria ter severas restrições, torna-se o principal instrumento do tecnicismo político e do totalitarismo. É preciso inculcar idéias e nomes a martelo. É preciso repetir fórmulas timpânicas para conseguir a hipnose de um povo. Esse é um dos traços mais característicos e mais repulsivos da política amoral; o uso da mentira como principal motor do regime.
VI
É tempo de distinguir os dois estilos em que se pode concretizar, e em que de fato se concretiza a política amoral. Conforme as circunstâncias o amoralismo pende para o tecnicismo ou para o maquiavelismo artístico e teatral. Para uns povos cabe a mecanização da sociedade com base nas idéias de um professor de economia política; para outros cabe o estafante destino de ser uma nação de heróis num cenário wagneriano.
Mas num ponto se encontram as duas tendências: a civilização, o progresso, a realização do bem comum, a missão do homem, enfim, deixa de ser o que tem sido até hoje, obra comum diferenciada, atividade das instituições, com tais ou quais imperfeições, e passa a ser uma obra centralmente dirigida, por um contramestre ou por um compositor. Os métodos são semelhantes, mas é diverso num e noutro caso o objeto a ser fabricado com carne de gente. O comunista quer fazer o moto-contínuo social, cheio de bielas, manivelas, engrenagens, sifões e alavancas; o fascista quer fazer uma apoteose. O fazer marxista é técnico; o fazer fascista é musical ou teatral. Mar calcula. Nietzsche recita. O tirano das esquerdas, como maníaco de engrenagem, é taciturno; o outro, como ator, é loquaz. O gabinete de govêrno stalinista é um laboratório dêsse brave new world onde a polícia vem trazer, para certas análises, as fezes e o sangue de um amontoado de gente que outrora foi um povo; o gabinete nazista é um camarim de vedetas. Stalin gaba-se de ser proletário. É talvez o único a exercer livremente o seu ofício. Mas a sua habilidade precisa de trezentos milhões de corpos humanos como matéria-prima. Hitler, Mussolini, Franco, foram compositores de operetas mais ou menos lúgubres ou de valsas mais ou menos lentas: os povos que dançassem.
E o totalitarismo sul-americano? Dêsse, a julgar pelo que experimentamos, só se pode dizer que foi um medíocre espetáculo de circo. Com a diferença que eram os do picadeiro que se riam.
VII
Na política técnica ou teatral não há lugar para oposições. É evidente. Uma obra de arte, ainda que não seja executada por um só, exige uma unidade que não se coaduna com a livre troca de idéias e com a divergência. Não é difícil imaginar quão esquisita seria a música de uma orquestra em que os violinos entrassem em oposição enquanto o contrabaixo, com graves argumentos, intercedesse junto à bancada governista dos instrumentos de sopro em favor de uma política de coalizão.
Uma obra de arte exige evidentemente uma frente única; mas a convivência moral exige, ainda com mais forte evidência, a colaboração da discordância. A política sem oposição deixa de ser política, como a orquestra com oposição deixa de ser orquestra. Muitas vezes já nos fizeram esse apelo patético para a união de todos os brasileiros numa frente única. Esse apelo encobre quase sempre uma impostura, ou uma demência, porque dizer que a oposição impede a obra construtiva é pensar em política como se pensa em arquitetura.
Mais de uma vez já fomos acusados de crítica dissolvente, e já fomos aconselhados pelos amigos de Job a fazer crítica mais construtiva. Que quer dizer isto? Será pouco construtivo o trabalho policial de prender os criminosos? Será negativa e dissolvente a ação do tribunal que condena os assassínios? E então, por que será negativa e destrutiva a tarefa de denunciar os criminosos que a polícia não prende ou que os juízes não condenam? Bem sei qual é a crítica que esperam de nós que escrevemos nos jornais: uma critica que seja feita de tal modo e em tal estilo que ninguém logre descobrir, ou sequer desconfiar, a que diacho de caso, pessoa ou fenômeno queremos nós aludir. Se por exemplo o Prefeito e os Vereadores trapaceiam as regras de um concurso, acumpliciando nesse escândalo centenas de meninas de treze anos, que assim aprendem um pouco prematuramente que mais vale sorrir para os poderosos do que estudar matemática, nós deveríamos escrever um artigo construtivo nesses termos: “É sem dúvida alguma de todo o interêsse para o progresso do Brasil e para a estabilidade das instituições que as cláusulas prèviamente estabelecidas na abertura de inscrições sejam observadas no decorrer do certame, e respeitadas pelos poderes públicos, mormente por aqueles detentores dos cargos de alta direção aos quais incumbe o indeclinável dever do bom exemplo, etc”.
Ora, se eu escrevesse um artigo nesse tom vago e genérico teria o aplauso de todos, mas nem os trêfegos Vereadores, nem o Prefeito-técnico, desconfiariam que o negócio é com eles.
A oposição nada tem de negativo ou destrutivo do domínio da verdadeira política. É um elemento de regulação que tem a virtude de desgastar os erros internos, e de proporcionar reajustagens e compensações que são próprias da atividade prudencial. Faltando a oposição, essa resistência compensadora e reguladora, os erros se tornam maciços e colossais, e a sociedade perde sua diferenciada riqueza, sua vida pluralista, para tornar-se um monocórdio a vibrar num único diapasão. Faltando a diferenciação e a oposição política, a sociedade entra num regime de lúgubre uniformidade que esteriliza todas as atividades. O regime totalitário torna-se assim um fenômeno de profunda e incurável estupidez. Os próprios dirigentes, embora maquiavélicos, passam a alardear o que deviam esconder, porque até mesmo o elementar critério da esperteza já não conseguem manter. Assim, por exemplo, a Rússia, que precisa do empirismo cientificista para dourar seu materialismo, não hesita em afrontar o mundo com a sua genética oficial e com a suspeição lançada à física pequeno-burguesa de Einstein. Aqui em nosso trópico do Capricórnio tivemos também um curioso exemplo dessa cegueira do leviatã político. O ditador, sentindo oscilar o chão e querendo angariar popularidade, faz um discurso prometendo, como alvíssaras, a fusão dos institutos de aposentadoria e pensões numa só e ainda mais monstruosa organização. Para nos agradar, ele nos promete um flagelo, como um D. Juan que passasse a seduzir donzelas com promessas de pancada e mau passadio.
Não pode haver boa convivência humana sem o exercício da justa castigação que em linguagem religiosa se chama correção fraterna. Ninguém no mundo pode isolar-se desse corretivo sem tornar prodigiosamente insensato. A oposição, o livre debate, embora em graus e proporções variáveis, são necessários na cidade, nas instituições, na família. Deve existir entre irmãos, e esse é um dos mais preciosos elementos educativos de que os filhos únicos ficam privados. Deve existir entre pai e filho, com reciprocidade. Deve existir entre marido e mulher. Deve existir entre os membros de uma família religiosa. É um erro pensar que as grandes calamidades nascem sempre de grandes discordâncias. Não. As piores calamidades do mundo nasceram de terríveis concordâncias. E um erro pensar que as grandes confusões se originam sempre do vozerio das discussões. Não! As piores confusões do mundo nasceram de terríveis silêncios. Calar-se é muitas vezes um crime. Mas obrigar um país inteiro a calar-se é o maior crime político que um homem pode cometer.
O homem nasce num mundo de debates. Cresce no meio de debates. Procura seu difícil caminho num desconcerto de debates. É nessa tateante aventura que o homem consegue discernir pouco a pouco a lei natural, isto é, a lei divina inscrita na natureza das coisas. Se é verdade que para a economia da salvação sobrenatural Deus revelou sua lei, não é menos verdade que, para a salvação temporal, Deus a tenha inscrito na natureza das coisas, de onde os homens a devem tirar através de seculares experiências. Seria um erro gravíssimo imaginar que os processos de aquisição na moral natural possam imitar a nitidez do Sinai ou dos Evangelhos. Lá, onde há revelação divina, não pode haver debate para o homem de fé, porque a fé consiste precisamente em crer na origem divina dessa revelação. Mas na procura do seu caminho no mundo, no plano temporal, o homem vem apurando, através de enormes sofrimentos, a sua acuidade de discernimento moral. E aí, nesse plano, é indispensável a prática do debate e do exercício da correção recíproca. Não há outra receita para a procura da perfeição natural. Não há revelação filosófica, sociológica, psicotécnica que se possa impor ao homem do alto de um Sinai totalitário. E na convivência e no diálogo que o homem se descobre e descobre a vontade do Autor da natureza.
A lei do diálogo, como disse Camus quando aqui nos falou, é realmente a grande lei da convivência. E essa começa em casa entre irmãos e vai até a imprensa, que deve ser livre, e o ensino, que não pode receber diretrizes do Estado. Começa na família, onde a esposa é eventualmente uma força de oposição, uma vigorosa bancada, e vai até o parlamento e até a Presidência da República.
Mas a oposição tem regras, regras morais, regras definitivamente adquiridas, regras em que não pode haver oposição. Há oposições intoleráveis que tornam o diálogo impossível. Num país em guerra, por exemplo, pode-se empregar os termos “discordância” e “oposição” enquanto todos desejam a mesma vitória, divergindo embora no que concerne aos meios. Mas seria inteiramente impróprio chamar de oposicionista ao indivíduo que tivesse conivência com o inimigo. Nos dias tumultuosos, que se convencionou chamar tempo de paz, há também muitos tipos de oposição que não merecem respeito, como há um tipo especial de oposição das espôsas que os maridos não podem admitir.
Depois das experiências que o mundo andou fazendo recentemente, é preciso reaprender muita coisa. É preciso, por exemplo, aprender de novo a falar mal do governo. Essa antiga e nobre arte, que nossos avós possuíam e usavam com grande desembaraço, anda muito esquecida e maltratada. Nós não sabemos falar mal do governo. Quando um senador abusa das leis do tráfego e deixa seu automóvel atravessado na via pública, nós reagimos mal, sem a antiga finura que distinguia bem os homens e as instituições, e logo atacamos o parlamento, a essência da câmara alta, como se fôsse o próprio Senado que estivesse atravessado na rua. Quando alguns vereadores se desmandam, logo sugerimos que se feche a Câmara Municipal. Quando, em suma, temos noticias das imoralidades praticadas pelo poder, propomos in-dignados, e como esquisito remédio, uma forma amoral de governo.
Outra coisa que precisamos reaprender, na política e na cultura, é a regra dos debates. Santo Tomás, o mais manso dos homens de seu tempo, passou a vida inteira a debater e a disputar. Mas no seu tempo acontecia uma coisa deveras extraordinária: quem perdia o debate, sabia que perdera! Vejam bem que maravilha: por misteriosíssimos sinais, incompreensíveis para nós, o vencido sabia que estava vencido!
Hoje o diálogo é difícil, a discussão é quase impossível. Não há regras. Não existe critério de aferição. E é essa espessa atmosfera de irracionalismo que provoca náuseas nos mais pusilânimes, e que os incita a procurar um outro tipo de civilização, um outro tipo de regime, em que o diálogo seja definitivamente abolido.
RECOMENDAÇÃO COMPLEMENTAR: A FARSA DO JOGO ESQUERDA-DIREITA
Excerto de: GUSTAVO CORÇÃO; As Fronteiras da Técnica, Livraria AGIR Editora, 1963, pp. 99-116.
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