COMENTÁRIO À CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO

Padre Álvaro Calderón, F.S.S.P.X.
2000

Este comentário foi publicado na revista Tradition, Doctrine, Actualité, no 2, junho de 2000, editada pela Casa Geral da Fraternidade São Pio X, Pp. 1-22.

O Papa [sic] João Paulo II tratou numa extenssísima Carta Encíclica (140 páginas na edição das Paulinas), dada em 14 de setembro de 1998, o tema fundamental das relações entre a fé e a razão. [João Paulo II, Fides et ratio, Carta Encíclica aos bispos da Igreja católica sobre as relações entre fé e razão, 14 de setembro de 1998.]

A figura com que começa expressa muito bem a maneira como se entende esta relação: “A Fé e a razão [Fides et ratio] são como as duas asas com que o espírito humano se eleva à contemplação da verdade”. A fé aparece cooperando com a razão numa função paralela e de certo modo exterior, como a de uma asa com respeito à outra, diferentemente da imagem tradicional de uma fé que ilumina a razão, que atua por meio dela penetrando sua ação de modo interior, como a luz ao cristal.

Segundo a doutrina tradicional, o discurso da razão precede, sustenta e prolonga a fé:

A razão precede a fé formando os conceitos em que se expressará a Revelação e dispondo à sua aceitação por argumentos externos, dando lugar à apologética católica: “A reta razão demonstra os fundamentos da fé”. [Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática sobre a fé católica, DS 3019. Cf. DS 3009: “Para que o obséquio de nossa fé fosse conforme à razão (cf. Romanos XII, 1), quis Deus que aos auxílios internos do Espírito Santo se juntassem argumentos externos de sua revelação, a saber, fatos divinos e antes de tudo, os milagres e as profecias”.]

A razão é sustentáculo da fé assim como o corpo o é da alma. “O assentimento da fé não é de modo algum um movimento cego da alma”, [Vaticano I, DS 3010] mas consiste num juízo pelo qual se atribui um predicado a um sujeito. O objeto dos atos de fé é uma verdade revelada; e o princípio que move ao assentimento é dom divino, a luz da fé; mas o corpo ou matéria de tais atos é obra da razão. Por isso a conclusão de um raciocínio, discurso racional, cujas premissas são de Fé é também de fé. Há, então, um discurso racional interior às verdades de fé, pelo qual se explicitam verdades e se relacionam os mistérios, o que conforma certa ciência da fé.

A razão prolonga a fé para além até de seu objeto, a revelação, constituindo a teologia. “A razão ilustrada pela fé, quando procura cuida-dosa, pia e sobriamente, alcança por dom de Deus alguma inteligência, e muito frutuosa, dos mistérios, ora por analogia do que naturalmente conhece, ora pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem”. [Vaticano I, DS 3016.]

A fé divina e a razão natural constituem, certamente, “duas ordens de conhecimento, diferentes não só por seu princípio, mas também por seu objeto”, mas essas duas ordens não se distinguem como totalmente diver-sas, e sim como o perfeito do imperfeito. Quanto aos princípios, a luz da fé utiliza como a ministro ou instrumento a luz da razão; e, quanto a seus objetos, a Revelação inclui as mais altas verdades alcançáveis pela razão e ultrapassa-as sem contradizê-las com seus mistérios. [*] Por essa razão, a ciência da fé não pode ser precedida, nem sustentada, nem prolongada por uma razão viciada em seu discurso, ou seja, por uma má filosofia. Daí a Igreja nunca ter sido indiferente aos diversos sistemas filosóficos, mas ter aprovado a filosofia escolástica, ter preferido a filosofia de Santo Tomás e ter condenado a filosofia moderna. São abundantíssimas as declarações do Magistério tradicional nestes três pontos; lembremos somente o que ensina a Humani generis:

[*. Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática sobre a fé católica: “O perpétuo sentir da Igreja Católica sustentou também e sustenta que há duas ordens de conhecimento, diferentes não só por seu princípio, mas também por seu objeto; por seu princípio, primeiramente, porque em uma conhecemos por razão natural, e na outra por fé divina; por seu objeto também, porque, afora aquelas coisas que a razão natural pode alcançar, nos são propostos para crer mistérios escondidos em Deus dos quais, se não tivessem sido divinamente revelados, não se teria podido ter notícia” (DS 3015).]

– “A razão só poderá exercer tal ofício [= servir à fé] de modo apto e seguro se tiver sido cultivada convenientemente, quer dizer, se tiver sido impregnada daquela sã filosofia que já é como um patrimônio herdado pelas presentes gerações cristãs e que, por conseguinte, goza de uma autoridade de ordem superior, porquanto o próprio Magistério da Igreja utilizou seus princípios e suas principais asserções, manifestados e definidos paulatinamente por homens de grande talento, para comprovar a própria divina Revelação”. [DS 3892]
– “A Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas filosóficas segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico […] sua doutrina soa como em uníssono com a divina revelação e é eficacíssima para firmar os fundamentos da fé”. [DS 3894]
– “É altamente deplorável que hoje em dia alguns […], enquanto desprezam esta filosofia [a tomista], louvem outras […], o que nenhum católico pode duvidar que seja de todo falso, principalmente quando se trata dos falsos sistemas chamados imanentismo, ou idealismo, ou materialismo, seja histórico, seja dialético, ou também existencialismo, tanto se defende o ateísmo quanto se pelo menos impugna o valor do raciocínio metafísico”. [DS 3894]

A doutrina modernista liberta a razão do império da fé separando completamente seus objetos: “Chegados aqui, Veneráveis Irmãos, temos sobejos elementos para conhecer cabalmente que relações estabelecem os modernistas entre a fé e a ciência, sob cujo nome compreendem também a história. E antes de tudo se deve pensar que o objeto de uma é totalmente externo ao da outra e separado dela. Porque a fé diz respeito unicamente àquilo que a ciência declara ser-lhe incognoscível. Daí a diversa tarefa de cada uma: a ciência versa sobre os fenômenos em que não há lugar algum para a fé; a fé, por seu lado, versa sobre o divino, que a ciência absolutamente ignora. Donde, por fim, resulta que entre a fé e a ciência nunca pode haver conflito; pois, se cada uma se mantiver em seu lugar, nunca poderão encontrar-se e portanto tampouco contradizer-se”. [Encíclica Pascendi, DS 3485.]

Se o ser do real já é inexprimível adequadamente em conceitos, diz o modernista, muito mais o é o mistério de Cristo, objeto da fé. A fé alcança seu objeto não por expressões conceptuais, mas por certa experiência, como acontece em outra ordem com a mesma realidade natural alcançada pela experiência sensível. A razão, por seu lado, constrói “sistemas de pensamento” que expressam de modo inadequado e pessoal a experiência do real, pois os conceitos não são mais que signos ou símbolos do real. Este é o “sistema de pensamento” na Fides et ratio. E as consequências, já o dissemos, são catastróficas: relativismo, cepticismo, historicismo, pragmatismo, niilismo. Quem teve paciência de ler a Encíclica poderia acusar-nos de injustiça, pois todas essas coisas parecem explicitamente condenadas no capítulo VII, e na mesma ordem em que as mencionamos. Mas lembre-se que o mal do pensamento moderno está em sua contradição intrínseca. João Paulo II parte dos princípios do pensamento ideológico moderno que trazem em germe a destruição da inteligência, e horroriza-se diante das consequências extremas a que chegam os que são mais coerentes em seus raciocínios. Mas para aquele que se atirou no precipício não basta dizer “aqui paro” a três metros do chão.

1° Introdução [Seguimos os mesmos títulos da Encíclica.]

Na Introdução, já desde o próprio subtítulo: “Conhece-te a ti mesmo”, o conhecimento nos é apresentado indissociavelmente penetrado de subjetividade. O caminho que a humanidade percorreu para encontrar a verdade “desenvolveu-se – não podia ser de outro modo – dentro do horizonte da autoconsciência pessoal” (n. 1). As “filosofias” são inseparáveis das circunstâncias histórico-culturais: “Cada povo possui uma sabedoria originária e autóctone que, como autêntica riqueza das culturas, tende a expressar-se e a amadurecer até em formas puramente filosóficas” (n. 3). Os “sistemas de pensamento” são uma espécie de lógica artificial fabricada pelo “pensar” de tal ou qual homem: “A capacidade especulativa, que é própria da inteligência humana, leva a elaborar, através da atividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso e a construir assim, com a coerência lógica das afirmações e com o caráter orgânico dos conteúdos, um saber sistemático. Graças a esse processo, em diferentes contextos culturais e em diversas épocas, alcançaram-se resultados que levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento”. Por isso, aquele que pretenda atribuir universalidade a seu particular sistema de pensamento, como o faz a Humani generis com a “filosofia perene”, incorre em “certa soberba filosófica que pretende erigir a própria perspectiva incompleta em leitura universal”.

Os primeiros princípios não são verdades evidentes para todos os homens necessariamente alcançadas pelo exercício natural da razão, mas são tão somente pensamentos que alcançaram acidentalmente uma divulgação e permanência geral: “É possível reconhecer, apesar da mudança dos tempos e dos progressos do saber, um núcleo de conhecimentos filosóficos cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, por exemplo, nos princípios de não contradição, de finalidade, de causalidade […] é como se nos encontrássemos diante de uma filosofia implícita pela qual cada um crê conhecer esses princípios” Que sorte!, porque essas crenças podem servir “como ponto de referência para as diversas escolas filosóficas” (n. 4); de outro modo não haveria maneira de se comunicarem.

Essa moderníssima explicação poderia deixar aterrorizado algum ingênuo escolástico. Como tranquilizante, termina-se este número 4 com uma frase não separada por nenhum ponto e parágrafo, mas escrita na arcaica linguagem das Escolas: “Quando a razão consegue intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser e tirar corretamente deles conclusões coerentes de ordem lógica e deontológica, então pode ser considerada uma razão reta ou, como a chamavam os antigos, orthòs logos, recta ratio”. Marque-a quem quiser falar de quão tradicional é a Fides et ratio.

2° A revelação da sabedoria de Deus

No capítulo 19, fala-se da fé fazendo uma reinterpretação da declaração do Vaticano I: “Há duas ordens de conhecimento, diferentes não só por seu princípio, mas também por seu objeto”. Os objetos são duas verdades em si, ontológicas: A verdade alcançada através da reflexão filosófica e a verdade que provém da Revelação não se confundem”. Daí os dois princípios e as duas ordens:

– O princípio pelo qual se alcança a verdade filosófica é “a percepção dos sentidos e a experiência”, e “à luz da inteligência” esta verdade se expressa, como dizia Kant, em sistemas de pensamento que constituem a ordem do conhecimento filosófico (n. 9).
– “A verdade que provém da Revelação” é o próprio Deus que se faz presente para nós e é “acolhido na fé”. A fé é o princípio pelo qual se alcança o mistério, de modo análogo a como a percepção sensível e a experiência alcançam a verdade natural. Crer é pois um encontro ou experiência do mistério de Deus: “Na origem de nosso ser como crentes, há um encontro, único em seu gênero, no qual se manifesta um mistério oculto nos séculos” (n. 7). O encontro “com esta verdade […] impele a razão a abrir-se a ela e a acolher seu sentido profundo” (n. 13) e assim “gera pensamento” (n. 16), constituindo a ordem de “conhecimento que é peculiar à fé” (n. 8).

O “conhecimento peculiar à fé” não é a própria fé, mas construções da asa da razão, que expressa em sua linguagem o que experimenta a asa da fé. A razão expressa a fé: “Este conhecimento expressa uma verdade que se baseia no Fato mesmo de que Deus se revela” (n. 8); a fé impele a razão: “Só a fé permite penetrar o mistério, favorecendo sua compreensão coerente” (n. 13).

Uma maneira de favorecer a compreensão da razão se dá por meio dos signos da Revelação: “Para ajudar a razão, que busca a compreensão do mistério, há também os signos contidos na Revelação. Estes servem para aprofundar mais a busca da verdade e permitir que a mente possa indagar de forma autônoma até dentro do mistério”. A que signos se refere? À linguagem que Deus usou para expressar o mistério de sua presença que se percebe na fé. Esta linguagem é a das Escrituras, dos dogmas, dos sacramentos, todos signos ou símbolos de uma misteriosa verdade em si que a razão nunca pode alcançar totalmente: “Estes signos, se por um lado dão maior força à razão, porque lhe permitem investigar no mistério com seus próprios meios, dos quais é justamente zelosa, por outro lado a impelem a ir além de sua mesma realidade de signos, para descobrir o significado ulterior de que são portadores. Neles, portanto, está presente uma verdade escondida à qual a mente deve dirigir-se e da qual não pode prescindir sem destruir o signo mesmo que lhe é proposto”.

Os dogmas são como sacramentos, e os sacramentos são como dogmas. Os dogmas são signos eficazes da Presença Real, a Eucaristia torna Cristo presente como o signo ao significado: “Podemos fixar-nos, de certo modo, no horizonte sacramental da Revelação e, em particular, no signo eucarístico, onde a unidade inseparável entre a realidade e seu significado permite captar a profundidade do mistério” (n. 13). Nessa confusão desaparece tanto a verdade significada por cada dogma na ordem lógica quanto a transubstanciação causada pela Eucaristia na ordem ontológica. Estamos em pleno simbolismo modernista.

As 40 páginas seguintes, capítulos 2 a 4, tratam da relação entre fé e razão. O capítulo 2° considera o que vai da fé para a razão; no capítulo 30, faz-se o caminho contrário, a abertura da filosofia para a fé; e no 4° se conclui. Dada a moderna divisão que se faz entre a experiência do mistério de Deus e sua expressão simbólica, a fé aparecerá ao mesmo tempo separada e confundida com a razão:

– separada em seu ato próprio de percepção experiencial do mistério de Deus, inacessível à razão;
– confundida no conhecimento que a expressa, elaboração da razão subjetiva e inadequada.

3° “Credo ut intellegam”

Compreende-se, então, por que no capítulo 2° se insiste especialmente na indissolúvel mistura entre o que vem da fé e as elaborações da razão. Começa dizendo: “As sagradas Escrituras nos apresentam com surpreendente clareza o vínculo tão profundo que há entre o conhecimento de fé e o da razão (…] nestes textos está contida não somente a fé de Israel, mas também a riqueza de civilizações e culturas já desaparecidas”. “A peculiaridade que distingue o texto bíblico consiste na convicção de que há uma profunda e inseparável unidade entre o conhecimento da razão e o da fé” (n. 16). A experiência da fé abre o filosofar da razão a uma ordem superior: “Para o Antigo Testamento, portanto, a fé liberta a razão enquanto lhe permite alcançar coerentemente seu objeto de conhecimento e colocá-lo na ordem suprema em que tudo adquire sentido” (n. 20). Mas o mistério de Deus estará sempre além de toda expressão racional: “A profundidade da sabedoria revelada rompe nossos esquemas habituais de reflexão, que não são capazes de expressá-la de maneira adequada” (n. 23).

Também se compreende por que as distinções escolásticas entre filosofia e teologia se atenuam e desaparecem. Qualquer discurso racional é de certa maneira filosofia, bater da asa da razão, subjetivo e parcial: “A filosofia, que por si mesma é capaz de reconhecer o incessante transcender-se do homem para a verdade, ajudada pela fé pode abrir-se para acolher na loucura da cruz a autêntica crítica dos que creem possuir a verdade, aprisionando-a entre os meandros de seu sistema” (n. 23).

4° “Intellego ut credam”

O capítulo 3° pretende mostrar como a filosofia se abre para a fé.

Possibilidade de alcançar a verdade. Há um “desejo universal do homem” de alcançar a Deus que manifesta “a capacidade da razão de elevar-se acima do contingente para ao infinito” (n. 24). Para Santo Tomás, o início do caminho para a verdade está nos primeiros princípios evidentes por si mesmos. Para a Fides et ratio, este caminho parece começar de maneira muito mais incerta. Todo desejam saber com verdade (n. 25), mas “a verdade se apresenta inicialmente a homem como interrogação”. Daí que “se pode definir o homem como aquele que busca a verdade” (n. 28). Se a procura, é porque pressupõe que existe: ma ainda, já algo vislumbra da verdade procurada. Esses primeiros vislumbres d verdade não são, aliás, os primeiros princípios evidentes por si da Escolástica: “São respostas de cuja verdade se está convencido, até porque se experimenta que, em substância, não se diferenciam das respostas a que chegaram muito outros”. Dessa maneira, “confirma-se a capacidade que o ser humano tem d chegar, maximamente, à verdade” (n. 29).

Diversas formas de verdade. Faz-se uma divisão em três ordens (n. 30 de forte sabor kantiano:

– Verdades científicas, fundadas na experiência sensível, únicas, ao que parece, a oferecer “evidências imediatas”.
– Verdades filosóficas, alcançadas mediante a capacidade especulativa. Verdades religiosas, transmitidas pelas diversas religiões. [Kant também distingue três ordens de conhecimento. A ciência tem por objeto os fenômenos ou o aparecer sensível: é o reino da evidência. A metafísica (filosofia) tem por objeto a coisa em si, mas seu valor de verdade é problemático: é o reino da probabilidade. A moral (religião) tem por objeto o que se deve fazer: é o reino da fé.]

Necessidade de crer. É de todo verdadeiro que o homem vive mais daquilo em que crê que daquilo que sabe, e pode perfeitamente ser definida como o faz a Encíclica: “O homem é aquele que vive de crenças”. Mas parece que também se diz, e isto não seria nada verdadeiro, que o homem recebe inicialmente todas as verdades por fé: “Desde o nascimento, ele está imerso em várias tradições, das quais recebe não só a linguagem e a formação cul tural, mas também muitas verdades em que, quase instintivamente, crê” podendo alcançar posteriormente evidência apenas “por meio da peculiar atividade crítica do pensamento” (n. 31). Esta é também uma maneira de pensar muito moderna. Se não se reconhecem as evidentíssimas certezas dos primeiros princípios e se pretende partir de interrogações, não haverá atividade crítica que nos tire do subjetivismo e do relativismo, como esta mesma Encíclica demonstra.

5° A relação entre a fé e a razão

No capítulo 4°, diz-se como se deu de fato o encontro entre a fé e a razão, percorrendo as etapas da história da teologia. Reconhece-se a Santo Tomás “um lugar singular neste longo caminho”, em particular “porque teve o grande mérito de destacar a harmonia existente entre a razão e a fé. Recomenda o Papa sua doutrina? O subtítulo que encabeça o parágrafo parece sugeri-lo: “Novidade perene do pensamento de Santo Tomás de Aquino”, mas não corresponde ao que se diz no texto. O que propriamente se recomenda não é seu ensinamento, mas sua atitude pessoal: “A Igreja sempre propôs Santo Tomás como mestre de pensamento e modelo do modo correto de fazer teologia”. Assim como Santo Tomás pensou a fé em sua época, com as mesmas disposições deve fazê-lo o neo-teólogo na atualidade. Citando o “servo de Deus Paulo VI” (já se iniciou seu processo de canonização…), propõe-se o Doutor Angélico como exemplo de audácia e liberdade de espírito. Por essas qualidades, ele entrou para a história não como um cume do pensamento cristão, mas como um distante precursor da audacíssima e liberal Teologia Nova: “Por isso, [Santo Tomás] entrou para a história do pensamento cristão como precursor do novo rumo da filosofia e da cultura universal. O ponto capital e como que o miolo da solução quase profética para a nova confrontação entre a razão e a fé consiste em conciliar a secularidade do mundo com as exigências radicais do Evangelho, subtraindo-se assim à tendência antinatural de desprezar o mundo e seus valores, mas sem eludir as exigências supremas e inflexíveis da ordem sobrenatural” (n. 43).

Mais adiante, terminando o capítulo VI, torna-se a recordar que “o Magistério elogiou repetidamente os méritos do pensamento de Santo Tomás”, mas apenas com a finalidade de fazer um esclarecimento: “O que interessava não era tomar posições sobre questões propriamente filosóficas, nem impor a adesão a tese particulares. A intenção do Magistério era, e continua a ser, mostrar que Santo Tomás é um autêntico modelo para todos quantos procuram a verdade” (n. 78). Que essa seja a intenção agora, tal é claro; mas não era essa a intenção de São Pio X quando dizia:

“Está claro que, ao estabelecermos Santo Tomás como principal guia da filosofia escolástica, referimo-nos de modo especial a seus princípios, nos quais essa filosofia se apoia. Não se pode admitir a opinião de alguns já antigos [e modernos] segundo a qual é indiferente, para a verdade da Fé, o que cada um pensa sobre as coisas criadas, desde que a ideia que tenha de Deus seja correta, já que um conhecimento errôneo acerca da natureza das coisas leva a um falso conhecimento de Deus; por isso se devem conservar santa e invioladamente os princípios filosóficos estabelecidos por Santo Tomás, a partir dos quais se aprende a ciência das coisas criadas de maneira congruente com a Fé, se refutam os erros de qualquer época, se pode distinguir com certeza o que só a Deus pertence e não se pode atribuir a ninguém mais, se ilustra com toda a clareza tanto a diversidade como a analogia que existem entre Deus e suas obras…

“Se a verdade católica se vir privada da valiosa ajuda que lhe prestam estes princípios, não poderá ser defendida buscando, em vão, elementos naquela filosofia que compartilha, ou ao menos não rejeita, os princípios em que se apoiam o Materialismo, o Monismo, o Panteísmo, o Socialismo e os diversos tipos de Modernismo. Os pontos mais importantes da filosofia de Santo Tomás não devem ser considerados como algo opinável, que se possa discutir, mas são como que os fundamentos em que se assenta toda a ciência do natural e do divino. Se se rejeitarem esses fundamentos ou se se perverterem, seguir-se-á necessariamente que os que estudam as ciências sagradas nem sequer poderão captar o significado das palavras com que o magistério da Igreja expõe os dogmas revelados por Deus”. [São Pio X, Motu Proprio Doutoris Angelici, A.A.S., t. VI (1914), pp. 336-341. No mês de julho do mesmo ano, a Sagrada Congregação de Estudos promulgou, por mandado e com a aprovação do Papa, as “24 teses tomistas”, para deixar claro quais eram os pontos principais da doutrina filosófica de Santo Tomás.]

Por fim, o capítulo denuncia a gradual ruptura entre fé e razão nos últimos tempos, ainda que sem deixar de destacar alguns “germes valiosos” do pensamento moderno: “as análises profundas da percepção e da experiência, do imaginário e do inconsciente, da personalidade e da intersubjetividade, da liberdade e dos valores, do tempo e da história” (n. 48).

6° Intervenções do Magistério em questões filosóficas

O capítulo 5°, sobre as “Intervenções do Magistério em questões filosóficas”, começa de modo, como dizê-lo? pouco honrado. Começa afirmando: “A Igreja não propõe uma filosofia própria nem canoniza uma filosofia particular, em detrimento de outras” (n. 49), e em nota se faz referência à Humani generis, AAS 41, p. 566. Neste preciso lugar, diz Pio XII: “É evidente que a Igreja não pode ligar-se a qualquer efêmero sistema filosófico”. [DS 3883] Para um modernista, qualquer sistema filosófico é tão efêmero como a pessoa que o pensou, mas não para Pio XII. Justamente o que ele faz na Humani generis é contrapor os sistemas filosóficos efêmeros à filosofia perene, à qual, sim, está ligada a Igreja, e a qual, sim, ela propõe como própria e canoniza. E a Escolástica, especialmente a de Santo Tomás, uma “filosofia reconhecida e aceita pela Igreja”, “recebida e reconhecida na Igreja”, que “goza de uma autoridade de ordem superior”, cujos princípios a Igreja já não deixa à livre disputa dos peritos e cujo ensino exige. [DS 3892] E como não o faz “em detrimento” das pseudofilosofias modernas, que ela trata como “falsos sistemas”?!

João Paulo II reconhece a autoridade indireta do Magistério sobre as filosofias (n. 50), mas aduzindo a inadequação de qualquer conhecimento com respeito à verdade: “Nenhuma forma histórica de filosofia pode legitimamente pretender abarcar toda a verdade, nem ser a explicação plena do ser humano, do mundo e da relação do homem com Deus”. Deixa para trás as estreitezas da Humani generis e dá sua bênção apostólica a um pluralismo crítico: “Hoje, além disso, diante da pluralidade de sistemas, métodos, conceitos e argumentos filosóficos, com frequência extremamente particularizados, impõe-se com maior urgência um discernimento crítico à luz da fé” (n. 51).

O restante do capítulo pretende mostrar que esse novo pluralismo está em continuidade com o Magistério pré-conciliar: “Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a partir de meados do século passado, foi porque naquele período muitos católicos sentiram o dever de contrapor uma filosofia própria às diversas correntes do pensamento moderno. Por esse motivo, o Magistério da Igreja viu-se obrigado a vigiar para que essas filosofias não se desviassem, por sua vez, para formas errôneas e negativas” (n. 52). Assim, São Pio X “destacou que na base do modernismo se acham asserções filosóficas de orientação fenomênica, agnóstica e imanentista”; Pio XII, “na encíclica Humani generis, chamou a atenção para as interpretações errôneas relacionadas com as teses do evolucionismo, do existencialismo e do historicismo; e recentemente a Congregação para a Doutrina da Fé “teve de intervir para assinalar o perigo que implica o assumir acriticamente, por parte de alguns teólogos da libertação, teses e metodologias derivadas do marxismo” (n. 54). O inocente Leitor pode verificar que tudo isso não é senão o “discernimento crítico” que o Magistério perpetuamente faz para purificar as filosofias que perpetuamente se elaboram, com as quais se fabricarão perpetuamente novas teologias. Assim como na Idade Antiga o platonismo foi batizado pelos Santos Padres, e na Idade Média o aristotelismo o foi pelos doutores escolásticos, na nossa Idade Moderna está sendo feito o batismo crítico de Kant e de Hegel pelos novos teólogos. Simples assim.

Mas a verdade é um pouco diferente. Desde meados do século passado, o Magistério não só condenou repetidas vezes as tentativas de muitos católicos de casar a teologia com a filosofia moderna, mas pediu cada vez com mais insistência que se recorresse apenas à filosofia escolástica e em particular à de Santo Tomás, processo que culmina na Humani generis. O pluralismo inaugurado com o Concílio Vaticano II é não só diferente, mas totalmente contrário. Só então se poderá ver que a guerrilheiros camuflados de teólogos apenas se “assinala o perigo que implica assumir acriticamente” o marxismo.

O novo magistério já não exige a escolástica, mas o pluralismo. Os parágrafos 57 e 58 elogiam a obra de Leão XIII a favor do tomismo, mas o parágrafo seguinte aplaude as tentativas de cristianização das novas filosofias: “A renovação tomista e neotomista não foi o único sinal de restabelecimento de pensamento filosófico na cultura de inspiração cristã”. Já antes de Leão XIII houvera filósofos católicos que, “enlaçando-se com correntes de pensamento mais recentes, de acordo com uma metodologia própria […], conseguiram uma síntese que não tem nada que invejar aos grandes sistemas do idealismo” (invejar o idealismo?), “os quais criaram uma filosofia que, partindo da análise de imanência, abria caminho para a transcendência; e, por fim, tentaram conju gar as exigências da fé no horizonte da metodologia fenomenológica” (n. 59) Quais foram esses grandes pensadores? Mais adiante se cita Antonio Rosmini (n. 74), que tentou fazer teologia batizando Hegel, embora não se esclareça que sua tentativa foi condenada por Leão XIII por terminar contagiada de panteísmo. [T. Urdanoz, Historia de la Filosofía, tomo IV, Madri, BAC, p. 636: “Não sem certa razão foi visto por alguns em Rosmini uma tentativa de cristianizar o idealismo de Hegel”. “Foi por ocasião desses escritos póstumos que se suscitou de novo em Roma o exame das doutrinas de Rosmini, e o Santo Ofício, sob Leão XIII, condenou, em 1887, quarenta proposições como não concordes com a verdade católica”. Essas proposições podem ser vistas em DS 3201 a 3241.] Outro exemplo é o mesmo João Paulo II. [Cf. D. Le Roux, Pedro, tu me amas?, c. IV: “O pensamento filosófico e teológico de João Paulo II”. Em 1963, K. Wojtyla responde a seu amigo Malinski: “O que nestes momentos me parece mais importante é reconciliar duas grandes filosofias: o tomismo e a filosofia de Max Scheler, cujo pai era Husserl. Na minha opinião, o essencial é o problema dos valores que Scheler mostra, em verdade é o do homem. Na fenomenologia encontro uma ferramenta filosófica, nada mais. Não tem visão geral de mundo, chamemo-la metafísica, e seria preciso criá-la”. Malinski diz das obras filosóficas do Papa:

“Pode-se discernir, em sua maneira de pensar, as ideias de Gabriel Marcel, especialmente em Ser e Ter; as de Heidegger em Sein un Sendung, de Jaspers, de Sartre, evidentemente de Max Scheler, de Husserl, de Ingarden. Tudo isso restituído na grande filosofia do ser segundo a interpretação de Santo Tomás. Acrescentemos, no entanto, que a filosofia do homem criada pelo Cardeal Karol Woityla não é eclética, constitui uma obra pessoal”. Num artigo sobre o “Personalismo polaco contemporâneo” (Divus Thomas, 1985, p. 63), dizia Kowalczyk do livro Pessoa e Ato, do Papa [sic]: “Woityla relembra o adágio clássico “agere sequitur esse”, mas o interpreta de modo diferente do tomismo. Este último explicava o obrar do homem por seu ser. “Pessoa e Ato propõe a explicação inversa: é o ser do homem o que deve ser explicado por seu agir. E a via traçada por Descartes, empreendida atualmente pela fenomenologia e pelo existencialismo”.]

7° Interação entre teologia e filosofia

O capítulo VI trata da “Interação entre a teologia e filosofia”. Considera primeiro como as diferentes partes da teologia requerem a filosofia (n. 64-69); depois faz uma reflexão mais ampla sobre o encontro da fé com as culturas (n. 70-74); e finalmente distingue três estados da filosofia com respeito à fé (n. 75-79).

A Encíclica distingue na teologia “dois princípios metodológicos: o auditus fidei e o intellectus fidei”(n. 65), ou seja, a tarefa positiva e a especulativa da teologia. O auditus fidei consiste em determinar as verdades reveladas que servirão de princípios para o intellectus fidei. É verdade que para “a preparação de um correto auditus fidei” se deve contar com uma sã filosofia do conhecimento e da linguagem, assim como se deve conhecer também a filosofia implicada na Tradição. A Fides et ratio é um bom exemplo per opositum da importância que isso tem, porque, por seu moderno conceito de conhecimento, supõe que toda reflexão racional pertence necessariamente a determinado sistema filosófico, sempre subjetivo e inadequado: “Todos quantos se dedicam ao estudo das Sagradas Escrituras devem ter sempre presente que as diversas metodologias hermenêuticas se apoiam em determinada concepção filosófica” (n. 55); as sentenças do Magistério e dos teólogos “expressam-se com frequência usando conceitos e formas de pensamento tomados de determinada tradição filosófica” (n. 65).

O imanentismo moderno não reconhece que a razão concebe as primeiras noções, os princípios e os discursos de modo natural e comum a todos os ho-mens, podendo alcançar um começo de ciência sem necessidade de aperfeiçoar seu método pela filosofia. É verdade que o Magistério da Igreja teve de ir além dessa simples inteligência natural do homem ao precisar as fórmulas dogmáticas, e portanto, como diz Pio XII, não pode ser entendido por falsas filosofias que não respeitem o germe de ciência constituído pela inteligência natural. Mas nem por isso chega a depender em sentido estrito de nenhum sistema filosófico particular. [Cf. R. Garrigou-Lagrange, El sentido comum. La filosofia del ser y las formulas dogmáticas (Mari, Ed. Palabra, 1981), onde trata amplamente este assunto, contra as teses defendidas pelo modernismo.]

As reflexões sobre o intellectus fidei soam a simbolismo modernista. As expressões das Sagradas Escrituras e do Magistério não são o objeto da fé, mas subsequente elaboração da razão sobre o objeto que é o mistério em si de Cristo. Conquanto porém sejam signos inadequados, servem, porque têm um “sentido”, quer dizer, uma finalidade prática de salvação: “O intellectus fidei explicita esta verdade [proposta nas Escrituras] não só assumindo as estruturas lógicas e conceptuais das proposições em que se articula o ensinamento da Igreja, mas também, e primariamente, mostrando o significado de salvação que essas proposições contêm para o indivíduo e a humanidade” (n. 66); “a Revelação dá-lhes pleno sentido [às verdades já possuídas apenas pela razão], orientando-as para a riqueza do mistério revelado, no qual encontram seu fim último”; “a teologia fundamental deve mostrar a íntima compatibilidade entre a fé e sua exigência fundamental de ser explicitada mediante uma razão capaz de dar seu assentimento em plena liberdade” (n. 67). Já o explicava a Pascendi: “Tais fórmulas [dogmáticas] não têm outro fim que proporcionar ao crente um modo de explicar sua fé. Por isso são intermediárias entre o crente e sua fé: no que se refere à fé, são notas inadequadas de seu objeto, notas que vulgarmente se chamam símbolos; no que se refere ao crente, são meros instrumentos”. [DS 3483]

Mas o problema aonde a coerência do pensamento modernista deve levar é o da cultura. A discussão sobre o pluralismo teológico desemboca na do pluralismo filosófico, e a deste leva necessariamente à do pluralismo cultural. Mais ainda, devido à separação estabelecida entre a asa da fé e a asa da razão, a distinção entre filosofia e teologia dilui-se, transformando-se tudo num filosofar sobre a experiência da fé. [“A convicção fundamental desta ‘filosofia’ contida na Bíblia é que a vida humana e o mundo têm um sentido e são orientados para seu cumprimento, que se realiza em Jesus Cristo” (n. 80).] E também se dilui a distinção entre filosofia e qualquer cultivo ou cultura da razão, porque desde as suas primeiras letras o homem já estaria irremediavelmente inserido numa visão subjetiva e parcial da inalcançável realidade. [“Para além dos sistemas filosóficos, no entanto, há outras expressões em que o homem busca dar forma a uma ‘filosofia’ própria. Trata-se de convicções ou experiências pessoais, de tradições familiares ou culturais ou de itinerários existenciais […]” (n. 27). “Cada homem, como já disse, é, de certo modo, filósofo e possui concepções filosóficas próprias com que orienta sua vida. De um modo ou de outro, forma uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência. Com esta luz, interpreta suas vicissitudes pessoais e regula seu comportamento. É aqui que se deveria fazer a pergunta sobre a relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo” (n. 30).] Por isso, ainda que o tema pudesse parecer escapar ao propósito da Encíclica, não devia deixar de ser tratado: “O tema da relação com as culturas merece uma reflexão específica, ainda que não possa ser exaustiva, devido a suas implicações no campo filosófico e teológico” (n. 70).

Por desconhecer-se no homem a inteligência natural das primeiras noções, dos princípios e dos discursos, cai-se no subjetivismo e relativismo do pensamento. Por conseguinte, a cultura, produto do exercício da razão, passa a ser algo tão pessoal como o temperamento: pretender inserir o homem numa cultura diferente daquela em que se formou é mais ou menos como pretender transferir sua alma para outro corpo. Assim como cada um deve crer e santificar-se segundo o temperamento que Deus lhe deu, assim também, segundo o modernismo, o homem deve receber o Evangelho na cultura em que se formou. O modernista renunciou aos critérios que lhe permitem julgar com verdadeira universalidade as manifestações da inteligência; só a utilidade prática poderá sugerir-lhe a menor ou maior riqueza de uma cultura: “As culturas, quando estão profundamente enraizadas no humano, levam consigo o testemunho da abertura típica do homem para o universal e a transcendência. Por isso, oferecem modos diversos de aproximação da verdade, que são de indubitável utilidade para o homem, a quem sugerem valores capazes de tornar cada vez mais humana sua existência” (п. 70).

Assim como não há temperamento que não possa santificar-se, assim tampouco haveria cultura que não pudesse evangelizar-se sem deixar de ser o que é: “As culturas, estando em estreita relação com os homens e com sua história, compartilham o dinamismo próprio do tempo humano […] cada homem está imerso numa cultura, dela depende e nela influi […] toda cultura traz impressa e deixa entrever a tensão para uma plenitude. Pode-se dizer, pois, que a cultura tem em si mesma a possibilidade de acolher a revelação divina. A forma como os cristãos vivem a fé também é impregnada da cultura do ambiente circundante e contribui, por sua vez, para modelar progressivamente suas características. […] O anúncio do Evangelho nas diversas culturas, conquanto exija de cada destinatário a adesão da fé, não impede de conservar uma identidade cultural própria. Isso não cria divisão alguma, porque o povo dos batizados se distingue por uma universalidade que sabe acolher cada cultura, favorecendo o progresso do que nela há de implícito para a sua plena explicitação na verdade” (n. 71).

Talvez o Leitor ainda não consiga medir as terríveis consequências desses princípios. Se o que se diz for verdadeiro, continua a raciocinar o modernista, pensar que só uma cultura é capaz de receber o Evangelho é cometer o mesmo erro daqueles que fazem tal ideia da piedade, os quais terminam por considerar que apenas os fleumáticos podem ir para o céu e que aquele que nasceu colérico está irremediavelmente condenado: “Disso deriva que uma cultura nunca pode ser critério de juízo nem, menos ainda, critério último de verdade com relação à revelação de Deus. O Evangelho não é contrário a uma ou a outra cultura, como se, entrando em contato com ela, quisesse privá-la do que lhe pertence obrigando-a a assumir formas extrínsecas não conformes a ela” (n. 71). Aonde se quer chegar? Já chegamos: “O fato de a missão evangelizadora ter encontrado em seu caminho primeiro a filosofia grega não significa de modo algum que exclua outras contribuições” (n. 72). A “cultura greco-latina” não seria mais que isto: uma cultura entre muitas outras. Não: na Grécia o homem aprendeu a pensar! Se Santo Agostinho utilizou a Platão e Santo Tomás a Aristóteles, não foi por “impregnação”, mas porque encontraram, estabelecidos por eles, os verdadeiros princípios do conhecimento.

Que a Igreja “tenha encontrado primeiro em seu caminho a filosofia grega” é um claro desígnio providencial em ordem à perfeita inteligência da Re-velação. Os mil anos que o Magistério investiu em sua luta com as heresias para precisar com boa lógica, aprendida de Aristóteles, as verdades reveladas não são para o modernismo senão um particular processo de inculturação ou encarnação” do Evangelho no âmbito do helenismo. No encontro com outra cultura, não se deve pretender transladar-lhe as categorias mentais gregas, senão que se deve começar o processo de novo: “Hoje, à medida que o Evangelho entra em contato com áreas culturais que permaneceram até agora fora do âmbito de irradiação do cristianismo, surgem novas tarefas para a inculturação. Apresentam-se para a nossa geração problemas análogos aos que a Igreja teve de enfrentar nos primeiros séculos” (n. 72).

O que fez a Espanha na América é, então, uma barbaridade: ensinou aos indiozinhos espanhol e teologia em latim e os fez cantar canto gregoriano! Que pelo menos não se cometa esse abuso nas outras regiões por evangelizar: “Meu pensamento dirige-se espontaneamente às terras do Oriente, ricas em tradições religiosas e filosóficas muito antigas. Entre elas, a Índia ocupa um lugar particular. Um grande movimento espiritual leva o pensamento indiano a buscar uma experiência que, libertando o espírito dos condicionamentos do tempo e do espaço, tenha valor absoluto. No dinamismo dessa busca de libertação, encontram-se grandes sistemas metafísicos” (n. 72). Não será tarefa fácil explicar a consubstancialidade trinitária, a união hipostática, a transubstanciação eucarística utilizando a filosofia bramânica, “proveniente de uma razão ainda indisciplinada, incapaz de distinguir e de escapar às contradições internas, arrastada pela ilusão de um conhecimento do Todo […] donde logicamente se segue o panteísmo ou confusão de Deus com as coisas”. [J. Maritain, Introducción a la Filosofía, Club de Lectores, p.18]

8° Exigências e tarefas atuais

O último capítulo assinala três exigências que a Revelação impõe às filoso-fias, adverte sobre alguns perigos e projeta “as tarefas atuais da teologia”.

A filosofia deve encontrar de novo “sua dimensão sapiencial de busca do sentido último e global da vida” (n. 81). Deve também “verificar a capacidade do homem de chegar ao conhecimento da verdade”; daí que “uma filosofia radicalmente fenomênica ou relativista seria inadequada” (n. 82), devendo sê-lo só moderada e criticamente. E, por fim, “Faz-se mister uma filosofia de alcance autenticamente metafísico, capaz de transcender os dados empíricos para chegar, em sua busca da verdade, a algo absoluto, último e fundamental”, que talvez não seja o ser das coisas, mas diretamente Deus, como terminou afirmando Rosmini. [“O ser que o homem intui é necessário que seja algo do ser necessário e eterno, causa criadora, determinante e finalizadora de todos os seres contingentes: e este é Deus”. Proposição condenada DS 3205.] “Onde quer que o homem descubra uma referência ao absoluto e ao transcendente, abre-se-lhe um fenda da dimensão metafísica da realidade: na verdade, na beleza, nos valores morais, nas outras pessoas, no ser mesmo e em Deus. Um grande desafio que temos no final deste milênio é saber realizar a pas-sagem, tão necessária como urgente, do fenômeno para o fundamento” (n. 83).

Cumpriram-se setecentos anos de Santo Tomás, e estão buscando vãozinhos para chegar à metafísica. Nunca poderão dar esse passo depois de se terem lançado na loucura subjetivista, negando a evidência do real. E são muito culpados, porque desprezaram as advertências e as admoestações dos Papas como se fossem sustos de velhos caducos. Mil anos levou a Igreja para fazer a síntese de sua sabedoria, desde Constantino até Santo Tomás. O mundo moderno já leva quinhentos para demoli-la, desde o Renascimento até o Vaticano II, prometendo sempre em vão fazer sair de suas ruínas uma nova construção: “Desejo expressar firmemente a convicção de que o homem é capaz de chegar a uma visão unitária e orgânica do saber. Este é uma das tarefas que o pensamento cristão deverá enfrentar ao longo do próximo milênio da era crista” (n. 85).

Assinalam-se depois cinco perigos ocultos “em algumas correntes de pensamento” contemporâneo: ecletismo, historicismo, cientificismo, pragmatismo e niilismo (n. 86-91). O que não se quer reconhecer é que esses erros não se seguem acidentalmente, mas necessariamente, do cogito cartesiano, ponto de partida de toda a filosofia moderna. Com que direito se lamenta dos frutos aquele que plantou a semente e regou a árvore?

A tarefa, então, que se apresenta à teologia, segundo a Encíclica, é conciliar a fé com a cultura moderna. Para isso, deve cumprir dois requisitos:

– “Renovar as próprias metodologias”, deixando de lado uma obsoleta escolástica, já que, segundo João XXIII, a doutrina “é preciso investigá-la e expô-la segundo as exigências do nosso tempo”.
– “Olhar a verdade última que recebe com a Revelação”, mas não à maneira da escolástica racionalista, como corpo de proposições reveladas propostas pelo Magistério, e sim contemplando “a Verdade [em si], que é Cristo”, já que “objeto próprio de sua investigação é a Verdade, o Deus vivo, e seu desígnio de salvação revelado em Jesus Cristo” (n. 92). Por isso se diz um pouco adiante: “O que se comunica na catequese não é um conjunto de verdades conceptuais, mas o mistério do Deus vivo” (n. 99).

Com esta finalidade, a teologia deve interpretar as Escrituras e a Tradição viva, própria do auditus fidei. “A esse respeito, suscitam-se hoje alguns problemas, novos apenas em parte, cuja solução coerente não poderá ser encontrada prescindindo-se da contribuição da filosofia” (n. 93). Os três apresentados reduzem-se ao problema hermenêutico, perfeitamente solucionado pela escolástica, mas insolúvel para um kantiano: 19) “Um primeiro aspecto problemático é a relação entre o significado e a verdade” (n. 94). 2°) “Como se pode conciliar o caráter absoluto e universal da verdade com o inevitável condicionamento histórico e cultural das fórmulas em que se expressa” (n. 95). 3°) “Outro problema: a perene validade da linguagem conceptual usada nas definições conciliares” (n. 96).

E também o intellectus fidei apresenta uma dificuldade especial para o pensamento moderno, porque “necessita da contribuição de uma filosofia do ser […]. Esta deve ser capaz de ressuscitar o problema do ser segundo as exigências e as contribuições de toda a tradição filosófica, incluída a mais recente, evitando cair em inúteis repetições de esquemas antiquados” (n. 97). O pluralismo filosófico permite tentar uma filosofia do ser a partir de Kant, de Hegel ou de Heidegger. Se se é mais conservador, pode-se partir de Scheller e tentar aproximar-se de Santo Tomás, como tentou K. Wojtila. Até pode alguém dizer-se tomista e partir do próprio Santo Tomás. O que não se pode é pretender escapar ao contexto histórico-cultural em que se vive e querer “repetir inutilmente o esquema antiquado” do Angélico tal como em sua época ele o concebeu. O pluralismo filosófico-teológico implica pluralidade de opções, mas o cultural não. O tomismo deve ser necessariamente novo, neotomismo, renovando-se a começar de suas raízes “segundo as exigências e as contribuições” das recentes filosofias modernas. É ridículo pretender ser hoje tomista pura e simplesmente! “O problema do ser”, sem sombra de dúvida, “deve ser ressuscitado” à luz dos neons do cartaz modernista.

Excerto de: Pe. ÁLVARO CALDERÓN, F.S.S.P.X.; A candeia debaixo do alqueire, Castela Editorial, 2020, Apêndice Terceiro, pp. 410-428.

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