Manuel E. Altenfwlder Silva
1926
«Pátria querida, pátria gloriosa!
Se meu berço não foi teu grêmio ilustre,
As primícias te dei da mocidade, Os labores do estudo, as flores d’alma, O sentimento e a vida!..»
(Fagundes Varella, “Anchieta ou Evangelho nas Selvas”, Cant. X, VII).
Tencionávamos dispor os capítulos deste livrinho, colocando os traços biográficos de cada Servo de Deus em ordem cronológica, segundo a data de sua morte, que é comemorada pela Igreja como a do seu natalício; é justo, porém, que abrindo uma exceção, falemos primeiramente do nosso maior apóstolo, taumaturgo e patriarca da nossa nacionalidade, [São Paulo no tempo de Anchieta, Dr. Teodoro Sampaio] o Padre José de Anchieta.
Ele é, incontestavelmente, a figura central da nossa história, tanto religiosa, como civil. Ao venerável Anchieta, missionário e patriota, devemos, com a pacificação dos tamoios, a base da unidade territorial do Brasil.
Tirantes alguns dados que colhemos em autores, cujas obras e nomes vão registrados em notas, os principais traços biográficos e a narração dos milagres do nosso herói, extraímos do livro do Padre Antônio Franco, SJ: Vida do admirável Padre José de Anchieta, Taumaturgo do Novo Mundo (Edição do ano de 1898).
Nasceu José de Anchieta, em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, a 19 de março de 1534, sendo batizado a 7 de abril do mesmo ano. Seus pais, João de Anchieta e dona Mência Diaz de Clavijo y Llarena, [José de Anchieta, Basílio Machado] piedosos cristãos de nobre estirpe, cedo o encaminharam à conquista de primorosa cultura intelectual. Dotado de robusta inteligência, aliada aos mais puros costumes, tornou-se Anchieta, em todas as escolas que frequentou um aluno modelo.
Terminados os estudos na terra natal, seus pais o enviaram a Portugal, onde começou a cursar as aulas da Universidade de Coimbra, então dirigida pelos Padres da Companhia de Jesus.
Certo dia, entrando Anchieta em uma igreja, prostrou-se ante a imagem de Maria Santíssima, consagrando-lhe totalmente a sua pes-soa, com o voto de perpétua virgindade. Aumentando-lhe na alma os santos anelos de deixar para sempre o mundo, com suas pompas e loucas vaidades, resolveu definitivamente fazer-se religioso, escolhendo a Companhia de Jesus.
Admitido no noviciado dessa congregação, a 1° de maio de 1551, foi tal o fervor com que começou o santo jovem a cumprir os deveres que lhe eram inerentes, que mais parecia um monge experimentado na prática das virtudes e austeridades que um noviço de 17 anos.
Nesse tempo, uma das suas maiores devoções era ajudar seis ou mais Missas por dia, e o fazia sempre de joelhos, só se levantando nos momentos necessários.
O débil corpo do jovem noviço não pôde suportar tantos excessos, e foi-se encurvando a espinha dorsal. Aconteceu cair-lhe nas costas uma escada, que lhe produziu grave lesão, vendo-se o santo jovem obrigado a descobrir o seu sofrimento. Chamados médicos e cirurgiões, não puderam eles curar por completo a enfermidade. Em vista de seu triste estado de saúde, temia o Servo de Deus que o despedissem da Companhia; andava, por isso atribulado.
Encontrando-o, certo dia, o provincial Pe. Simão Rodrigues, assim lhe falou: “Filho José, deixa esse cuidado com que andas, porque Deus vos não quer com mais saúde”. Vendo ele que Deus manifestava seu interior ao Pe. Mestre Simão, ficou muito animado e consolado, entendendo que assim se queria Deus servir dele. Passavam-se os dias e continuava Anchieta adoentado. Opinaram então os médicos que o mandassem ao Brasil, onde os ares lhe seriam benéficos.
Eis que o Pe. Manuel da Nóbrega escreve, de S. Vicente, pedindo ao provincial Simão Rodrigues lhe enviasse mais obreiros para a esperançosa vinha do Senhor. Atendendo a esse pedido, determinou Simão Rodrigues mandar para as missões da nossa pátria, chefiados pelo Padre Luís da Grá, os Padres Brás Lourenço, Ambrósio Pires, os Irmãos João Gonçalves, Antônio Blasques, Gregório Simões e o nosso Anchieta. Embarcaram em maio de 1553, chegaram à Bahia a 13 de julho.
A 24 de dezembro [Vida do Venerável Padre José de Anchieta, Carlos Saint-Foy, Edição Salesina de 1922, pág. 41] do mesmo ano, após uma viagem cheia de contratempos, em que Anchieta e seus companheiros escaparam milagrosamente da morte, chegaram ao porto de S. Vicente.
Em janeiro de 1554, o Pe. Manuel da Nóbrega destacou treze religiosos da comunidade de S. Vicente, sob a chefia do Pe. Manoel de Paiva, para fundar o Colégio de Piratininga, contando-se nesse número o Irmão José de Anchieta.
Grandes foram as privações que sofreram esses religiosos no começo da nova fundação, como ele próprio nos conta:
“[…] Aqui se fez uma casinha pequena de palha, com uma esteira de cana por porta, em que moraram por algum tempo bem apertados os irmãos; mas este aperto era ajuda contra o frio, que naquela terra (Piratininga) é grande, com muitas geadas. As camas eram redes, que os índios costuram: os cobertores o fogo, para o qual os irmãos comumente, acabada a lição à tarde, iam pôr lenha no mato, e a traziam às costas, para passarem a noite. O vestido era muito pouco e pobre, sem calça nem sapato, e o ordinário de pano de algodão. Para a mesa usaram algum tempo de folhas largas das árvores, em lugar de guardanapos; mas bem se escusavam toalhas onde faltava o comer, o qual não tinham donde lhes viesse, senão dos índios, que lhes davam alguma esmola de farinha e algumas vezes (mas raramente) alguns peixinhos do rio, e mais raramente alguma caça do mato: e assim muito tempo passaram grande fome e frio; e contudo com muito fervor, lendo às vezes a lição fora, ao frio, com o qual se haviam melhor que com o fumo dentro de casa. A primeira Missa se celebrou no dia da conversão de São Paulo, em um altarzinho que para isso se aparelhou, porque não havia ainda igreja; e, por esta causa dedicou àquela casa a São Paulo, e tem seu nome”.
Os primeiros alunos de Anchieta, em S. Paulo, foram os seus companheiros de comunidade e alguns portugueses e mamelucos. Como os livros não eram suficientes para todos, o Servo de Deus dava-se ao trabalho de copiar em caderninhos as lições para cada dia.
Muitas vezes, às caladas da noite, quando todos dormiam, velava Anchieta. Curvado sobre um tosco móvel, de pena em punho, à luz frouxa de um candeeiro, o santo mestre copiava as lições que as lides do dia lhe não deixaram preparar.
De uma carta que ele dirigiu aos seus colegas de Coimbra, vamos transcrever alguns trechos edificantes: “(…) nesta quero somente dar-vos uma nova e é que – Virtus in infirmitate perfiscitur; a qual foi para mim assaz nova todo o tempo que aí estive. Muito tendes, caríssimos irmãos, que dar graças ao Senhor, porque vos faz participantes de seus trabalhos e enfermidades, nas quais motivou o amor que nos tinha: razão será que sirvamos algum tempo, tendo grande paciência nas enfermidades, e nestas aperfeiçoar as virtudes.
“A larga conversação que tive nessas enfermarias me faz não me poder esquecer de meus caríssimos coenfermos, desejando vê-los curar com outras mais fortes mezinhas [mezinha: medicamento caseiro] materiais que as que lá se usam, porque sem dúvida, pelo que em mim experimentei, vos posso dizer que estas mezinhas materiais pouco fazem e aproveitam.
“Por outras cartas vos tenho já escrito de minha disposição, a qual cada dia se renova, de maneira que nenhuma diferença há de mim a um são, ainda que algumas vezes não deixo de ter algumas relíquias das enfermidades passadas, porém não faço mais conta delas que se não fossem.
“Até agora sempre tenho estado em Piratininga, que é a primeira aldeia de índios, que está dez léguas do mar, como em outras cartas tenho escrito, na qual estarei por agora, porque é terra muito boa; e porque não tinha purgas nem regalos de enfermarias, muitas vezes era necessário comer folhas de mostarda cosidas com outros legumes da terra e manjares que lá se podiam imaginar, junto com entender em ensinar gramática em três classes diferentes; e às vezes, estando dormindo, me vêm a desesperar para fazer-me perguntas, e em tudo isto parece que saro; e assim é, porque em fazendo conta que não estava en-fermo, comecei a estar são; e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo, as quais parecia impossível poder escrever estando lá. Toda a quaresma comia carne, como sabeis, e agora jejuo toda.
“Neste tempo que estive em Piratininga, servi de médico e barbeiro, curando e sangrando muitos daqueles índios, de quem não se esperava vida por serem mortos daquelas enfermidades. Agora estou aqui em S. Vicente, que vim com o nosso Padre Nóbrega, para despachar estas cartas. Demais disto tenho aprendido um ofício, que me ensinou a necessidade, que é fazer alpercartas; e sou já bom mestre, e tenho feito muitas aos irmãos; porque não se pode andar de sapatos de couro pelos montes.
“Isto tudo é pouco, para o que Nosso Senhor vos mostrará quando cá vierdes. Quanto à língua eu estou adiantado, ainda que é muito pouco para o que soubera, se não me ocupara em ler gramática; todavia tenho corrigido toda a maneira dela por arte, e para mim tenho entendido quase todo o seu modo; não o ponho em arte porque não há cá a quem aproveite; só eu me aproveito dela e aproveitar-se-ão os que de lá vierem e souberem gramática. Finalmente caríssimos irmãos, sei dizer que, se o Padre Miram quiser mandar-vos a todos os que andais opilados e meio doentes, a terra é muito boa, e ficareis mais sãos. As medicinas são trabalhos, e tanto melhores quanto mais conformes a Cristo.
“Também vos digo que não basta com qualquer fervor sair de Coimbra, senão que é necessário trazer alforje cheio de virtudes adquiridas porque, de verdade, os trabalhos que a Companhia tem nesta terra, são grandes, e acontece andar um irmão entre índios infiéis, e sete meses no meio da maldade e seus ministros, sem ter outro com quem conversar senão com eles; de onde convém ser santo, para ser irmão da Companhia. Não vos digo mais, senão que aparelheis grande fortaleza interior e grandes desejos de padecer de maneira que, ainda que os trabalhos sejam muitos, vos pareçam poucos.
“Fazei um grande coração, porque não tereis lugar para estar meditando em vosso recolhimento, senão in medio iniquitatis et super flumina Babiloniae; e sem dúvida, porque em Babilônia: rogo-vos omnes ut semper oretis pro paupere frate Joseph. A meus caríssimos Padres e irmãos, em suas orações e particularmente a meu caríssimo Padre Antônio Correa e aos Padres que foram e são meus pais, rogo e peço se lembrem deste pobre que engendraram em Cristo, e nutrierunt: opto vos omnes bene valere. Pauper et inutili Joseph”.
Para maior incremento da catequese, instruiu Anchieta, de tal maneira, aos filhos dos índios, que muitos dentre eles o ajudavam, levando à casa de seus pais os ensinamentos da fé. E esses pequeninos apóstolos não só doutrinavam os seus progenitores, como também lhes ensinavam os belos cantos religiosos que o seu santo mestre compusera na língua brasílica, para substituírem as bárbaras cantigas de seu uso.
Há um período da vida do santo missionário, que não podemos deixar de evocar: foram os cinco meses que ele passou entre os tamoios de Yperoig. Dispostos a todos os sacrifícios para a pacificação desses índios, Nóbrega e Anchieta partiram de S. Vicente, chegando a 4 de maio de 1563, a Yperoig.
Bem acolhidos pelo chefe da tribo, trataram logo de improvisar uma capela, onde a 9 do mesmo mês foi celebrada a primeira Missa.
Anchieta, já sabedor dos segredos da língua indígena, não encontrou dificuldades para evangelizar aqueles filhos das selvas.
Os ferozes tamoios do Rio de Janeiro, aliados dos franceses, cientes da vinda dos missionários, em numeroso grupo se dirigiram para Ype-roig, com intenção de os matar.
“[…] Quando se ajuntaram os principais a tratar das pazes, um, que tinha vindo do Rio com dez canoas de guerra, disse com resolução que, se queriam pazes, se lhe haviam de entregar três índios seus inimigos, que estavam em S. Vicente. A isto, depois de outras razões, disseram os Padres que o negócio se propusesse aos do governo de S. Vicente. Vindo nisto os índios, quis ele mesmo ir em suas canoas. Lá deram tão boas razões, e sobretudo lhe fizeram tão bom acolhimento, que o bárbaro se amansou e voltou muito mudado. Livres deste perigo, estiveram a ponto de serem mortos junto da praia pelos índios, que vieram em uma canoa, com intento de perturbarem o negócio das pazes. Deles era capitão um filho do principal da aldeia em que estavam.
“Vendo os Padres a canoa e suspeitando o que seria, se retiraram, e tiveram nisto assaz de enfado, porque ao passar de um rio, tomando o Padre José às costas ao santo velho Nóbrega, não podendo com a carga, o deixou cair no meio da água, e com grandíssimo trabalho se puderam recolher na aldeia, em casa do capitão dela, que então estava ausente.
“Logo se puseram de joelhos a rezar; após eles entrou o índio da canoa, com intento de matar os Padres; mas tanto que deu com os olhos neles, Deus lhe infundiu um tal respeito, que ficou suspenso. Então, falando-lhe o Padre Anchieta, ficou tão mudado que, confessando seus maus intentos, disse que tais pessoas não podiam vir com engano. Depois vindo o pai, contou ao filho a bondade dos Padres, com que se confirmou no conceito que deles fizera”.
Salvos desses perigos, continuaram Nóbrega e Anchieta o seu árduo apostolado. Já havia dois meses que aí permaneciam, quando receberam chamado de S. Vicente, onde se julgava necessária sua presença.
Mas, como abandonar a obra já iniciada?
Resolveram que somente um deles partisse, ficando o outro com os tamoios. Ouviu o Padre Nóbrega as razões de Anchieta, e partiu, deixando-o com os selvagens. Para resguardar a sua pureza, entre os mil perigos que o rodeavam, rogou Anchieta à Santíssima Virgem que o protegesse, prometendo-lhe escrever a sua vida em versos.
Diariamente, depois do serviço da catequese, ia o santo missionário para a praia, e aí, ouvindo apenas o marulhar das ondas, traçava na branca areia os lindos versos do imortal poema da Virgem.
Enquanto ele escrevia, pasmavam os índios que o contemplavam, vendo um pássaro de belíssimas cores pousar, ora nas mãos, ora na cabeça e nos ombros do grande apóstolo.
Era uma demonstração que Deus lhe fazia, de quanto lhe agradava essa homenagem prestada à sua Mãe Santíssima. Várias vezes escapou de ser morto, só se livrando da sanha dos tamoios por verdadeiros milagres.
Anchieta em Nossa Senhora confiava. Ela lhe prometera que nenhum mal lhe fariam esses índios, em cujo meio deveria concluir o seu poema. E assim aconteceu.
Mais três meses esteve Anchieta em Yperoig. “[…] Todo o tempo que lhe sobejava do trato com Deus e com a Virgem, gastava em explicar aos tamoios as verdades da fé… Teve a Senhora tanto cuidado do seu devoto, que no meio de tanto fogo nem levemente se tisnou sua pureza. Assim o confessou nos versos, e assim o disse a um Padre amigo de aí a muitos anos. Queixou-se este das tentações desonestas que o afligiam. Aconselhou-lhe o santo varão que não pedisse a Deus que lhe tirasse, mas que lhe desse vencimento nelas. E acrescentou: Porque eu sei de outro (é certo que falava de si) que o pediu desta maneira e foi ouvido; porque combatido largo tempo de semelhantes tentações, favorecido por Deus, e de sua Mãe Santíssima, não só não caiu, mas recebeu promessa segura de não cair jamais…”.
“Concluídas assim as pazes, tratou o Padre (Anchieta) de partir para S. Vicente, tendo assistido alguns cinco meses entre aqueles bárbaros. Tinham-lhe eles cobrado tanto amor e ele aos índios, que houve muitas lágrimas de parte a parte: choravam por se haver de apartar dele o seu pai maior, que lhes adivinhava os sucessos futuros, que lhes ensinava coisas santas, que os curava e consolava em suas doenças. Chorava o santo varão, por ver ficar ao desamparo tantas almas tão bem-dispostas para o santo Batismo. Também lhe fazia saudades o lugar em que Deus tanto o consolava…
“Quanto às suas virtudes, diremos que absolutamente ele as praticou em grau heroico. Assim o afirmou a Igreja, pela boca do Sumo Pontífice Clemente XII, na reunião da Congregação Geral dos Ritos, realizada a 30 de julho de 1736, mandando que se declarasse no processo instaurado para a beatificação do apóstolo do Brasil, o seguinte: “Constar das virtudes do Venerável Servo de Deus, José de Anchieta, em grau heroico, no caso e para o efeito de que se trata, tanto das Virtudes teologais, a saber: fé, esperança e caridade; como das cardeais; prudência, justiça, fortaleza e temperança”. [Op. cit., pág. 235-236.]
Quando Anchieta orava, era tal o seu fervor, que muitas vezes ficou em êxtases, chegando a ser visto suspenso do solo alguns palmos. Ao iniciar os trabalhos para construir a estrada de S. Paulo a S. Vicente, a qual ficou conhecida com o nome de caminho do Padre José, em dado momento afastou-se o Servo de Deus do meio dos operários, embrenhando-se no mato. Daí a pouco tempo desencadeia-se forte tempestade, e passada a tormenta, saíram os operários em busca do Padre Anchieta.
Depois de procurar algum tempo, chamando-o em altas vozes, foram encontrá-lo embaixo de uma árvore, todo absorto em Deus…
Certa vez percebeu o Pe. Amaro Gonçalves que da cela do Servo de Deus saíram reflexos de luz. Estranhando o caso, para lá se dirigiu, e, ao abrir a porta, deparou o Pe. Anchieta envolto em resplendores…
Admiradíssimo, foi logo chamar a dois colegas que também presenciaram o prodígio.
Visitando, certa vez, a aldeia de índios de Bertioga, depois de agradecer a hospedagem que lhe ofereceu o principal da povoação, disse-lhe que queria passar a noite na ermida de Nossa Senhora.
Quando a noite ia alta, reparou a mulher do chefe indígena que da capela saíram luzes e partiam vozes misteriosas, cantando…
Despertou o marido, que viu e ouviu o mesmo. Quiseram ir ver o que era, mas foram impedidos de um pasmo e tremor de membros, que os retardou elevados na suavidade da harmonia. No dia seguin-te, vendo-se o Padre descoberto, lhes mandou por obediência por serem seus filhos de confissão, que tal coisa não dissessem, enquanto ele vivesse. Assim o fizeram; mas depois de morto Anchieta, confirmaram o ocorrido.
Já nos referimos a algumas mortificações do Servo de Deus, e agora diremos que ninguém jamais o excedeu nos rigores com que macerava seu corpo: jejuns amiudados, constante uso de cilício, diárias disciplinas, repouso escasso, contínuo viajar a pé, sempre descalço, varando matas, atravessando despenhadeiros, pousando ao relento..
Um dos maiores dons que Deus concedeu ao santo sacerdote, foi o realizar milagres portentosos. Foi profeta e teve pleno conhecimento dos corações humanos. Lia no futuro, como em um grande livro perenemente aberto ante os seus olhos.
Curava enfermos e ressuscitava mortos. Foi notabilíssimo o seu poder sobre os elementos da natureza. A uma só palavra, ou gesto seu, o mar enfurecido se acalmava; se amansavam as ventanias e cessavam as tempestades. Os pássaros e os peixes lhe atendiam; as terríveis serpentes e animais ferozes vinham rastejar-se submissos, a seus pés!
Vejamos alguns dos seus inúmeros milagres. Era noite de Natal. Acabava Anchieta de celebrar a terceira Missa, numa igreja da vila de Santos, quando lhe comunicou o sacristão não haver mais vinho para o Santo Sacrifício. Disse-lhe, então, o taumaturgo: – “Ide, irmão, trazei o vinho que está na botija”. Respondeu-lhe o irmão ter certeza absoluta de que a botija estava vazia. Insistiu Anchieta: – “Ide, que eis de achar”. Obedecendo, foi o irmão examinar a botija e encontrou-a cheia de vinho.
Houve uma época em que faltou azeite na capitania de S. Vicente. No colégio da Companhia existia apenas um barril, do qual se iam valendo as casas em que os jesuítas tinham jurisdição. Certo dia, porém, esgotou-se o barril e o irmão dispenseiro levou essa notícia ao Padre Anchieta.
Calmamente lhe disse o Servo de Deus: – “Irmão, nas necessidades não deixeis de acudir ao vosso barril, que Deus é pai, e fará que não falte azeite”. Fez-lhe ver, o irmão, que o barril estava seco, podendo ser aproveitado para outro ofício. Insistiu o santo religioso: – “Fazei o que vos digo”.
Imediatamente fez o dispenseiro o que lhe era ordenado, e, com maior admiração, verificou que o barril continha azeite, do qual se serviu não só nessa ocasião, mas cada vez que era preciso. Durou esse milagre dois anos, até que chegou um navio, no qual se mandava ao colégio, de esmola, uma pipa de azeite. Então cessou o barril de gotejar.
O sertanista João de Souza Pereira havia dois anos que saíra de S. Paulo, distanciando-se trezentas léguas. Correndo a notícia de sua morte, foram celebrados sufrágios pela sua alma.
Quando a viúva estava prestes a seguir para S. Vicente, por ordem de seu pai, para de novo se casar, foi despedir-se do Servo de Deus. Disse-lhe este que desistisse da viagem, pois seu marido estava vivo, devendo regressar dentro de poucos dias, com perfeita saúde e com cabedal. E tudo se realizou conforme a profecia.
Indo o santo missionário a certa aldeia, encontrou um índio encarcerado, prestes a ser morto e comido pelos inimigos, conforme seu bárbaro costume. Ao avistar o apóstolo, disse-lhe o preso: – “Oh! pai, se eu soubesse agora a língua dos cristãos, houvera de pedir ao vosso Deus me livrasse do estado em que me vejo”.
Condoendo-se da triste condição do pobre selvagem, respondeu-Ihe Anchieta: – “Filho, pedi a Deus na vossa língua porque Ele sabe todas. Eu vos ajudarei e rogarei por vós”.
Assim que anoiteceu, caíram milagrosamente as cordas que o manietavam e fugiu, indo depois pedir o Batismo ao seu salvador.
Caminhava Anchieta, certo dia, pela praia de Itanhaém, quando, inspirado por Deus entrou no mato, deparando-se, embaixo de uma árvore um índio muito idoso, que foi logo dizendo, assim que o avistou: – “Chega, chega com pressa, que há muito que aqui te espero”.
Indagou-lhe o santo missionário, quem era, de que terra, e de onde viera ter ali. Da resposta que obteve do selvagem, entendeu Anchieta que ele não era do Brasil, “e que por virtude divina fora ali trazido, e não por forças humanas, pois em tanta idade não as tinha”.
Continuando o apóstolo a interrogar o índio, convenceu-se de que ele nunca quebrara a lei natural, e sabia, embora confusamente, da existência do Criador, que “julga do bem e do mal”.
Explicou o Servo de Deus ao catecúmeno os principais mistérios da Religião e tudo quanto era necessário para que pudesse ser batizado.
Em seguida, Anchieta “recolhendo água da chuva, que estava nas folhas de uns cardos silvestres, por não haver ali outra, o batizou, pondo lhe por nome Adão”. Dando o índio graças a Deus por tão extraordinário favor recebido, expirou momentos depois. E nesse mesmo lugar Anchieta o sepultou.
Sendo já provincial, aconteceu ficar enfermo e de cama. O enfermeiro levou-lhe um prato de abóbora, que julgava ótimo alimento para quem estava de dieta. Ao prová-lo, o Servo de Deus achou-o muito amargo, mas assim mesmo o comeu, sem nada reclamar. Terminada a refeição, perguntou Anchieta ao irmão se tinha de dar igual alimento a outro enfermo.
Tendo resposta afirmativa, disse-lhe o taumaturgo: – “Pois não lhe deis desta abóbora, sem primeiro a provar”. Suspeitando o enfermeiro que, por engano, lhe tivesse trazido abóbora venenosa, provou o resto que ficara no prato, e, convencido da realidade, gritou: – “Ai padre, que matei a Vossa Reverência”.
Retrucou-lhe Anchieta: – “Não matastes, irmão; antes é o Senhor servido de me querer dar saúde, por tomar esta semelhança de fel, que Ele por mim e por vós provou na Cruz”. E pouco depois, levantou-se curado da enfermidade que o detivera no leito.
Quando se construía a fortaleza que mais tarde se chamou de “Santa Cruz”, na entrada da barra do Rio de Janeiro, disse o Padre Anchieta que seria inútil esse trabalho, pois que, embora edificada sobre a rocha, não resistiria ela aos embates das ondas… Concluída a fortaleza, o mar a levou com artilharia e casas.
Em certo dia do ano de 1570, a fim de desempenhar importantíssima missão, foi necessário ao servo de Deus ir a uma aldeia de índios, que estavam em luta com os civilizados. Embarcou-se, para esse fim, numa canoa com o Pe. Vicente Rodrigues e alguns índios cristãos. la a viagem correndo sem novidade, quando em dado momento, sem que os remadores reparassem no perigo que os ameaçava, “cai a canoa de uma cachoeira, faz-se em pedaços, todos se vão com ímpeto ao fundo”.
Sabendo nadar, o Pe. Rodrigues e os índios facilmente alcançaram a margem. Dando todos pela falta do Pe. Anchieta, puseram-se em sua procura. O índio Araguaçu mergulhou várias vezes, sem proveito algum. Finalmente, depois de meia hora de pesquisas inúteis, deu o mesmo indio outro mergulho, encontrando o apóstolo sentado no fundo do rio, rezando o breviário.
Segurou-o o índio pela batina e o trouxe acima, bom e com o seu breviário enxuto… Mais tarde, perguntando-lhe o Pe. Pedro Leitão como sucedera esse prodígio, assim lho explicou o nosso herói: – “Eu não reparei quando a canoa se virou, porque estava rezando as horas de Nossa Senhora da Conceição, e assim assentado, como estava me fui ao fundo, e continuei com a mesma reza, sem que a água me fizesse mal”.
Em casa de Domingos Dias, “homem nobre” que residia na vila de Santos, aconteceu adoecer e morrer um índio, que se chamava Diogo. Quando se preparavam para levá-lo à sepultura, eis que o morto, ressuscitando, pede que o livrem da mortalha e que chamem o Pe. Anchieta para o batizar. Disseram-lhe que o Servo de Deus se achava em S. Vicente. Diogo, porém, insistiu, afirmando que Anchieta estava bem próximo da vila, junto a um ribeirão, onde sua alma, por determinação divina, o fora encontrar no corpo para receber o Batismo.
No lugar indicado pelo índio, Anchieta foi encontrado, e logo que se acercou do silvícola, este lhe perguntou se trazia o relicário que lhe mostrara em caminho.
Respondeu o missionário que sim, e lhe mostrou, com intensa alegria do índio. Em seguida ordenou-lhe Anchieta que narrasse às pessoas presentes, o “mistério da sua ressurreição”.
Assim falou o índio: – “Eu parti desta vida, e à primeira entrada da outra ouvi uma voz, que me dizia que não caminhava para o céu pelo caminho real e direito, porque não havia sido batizado. O que, em verdade, assim era, porque quando vieram os portugueses à minha terra, me ensinaram a fé e deram-me por nome Diogo, mas não o Batismo, que eu, por erro, não cuidei ser necessário. Só tratava de guardar os mandamentos, como os demais cristãos. Esta foi a causa que tive para tornar ao corpo. Foi também ordenado do Senhor, que encontrasse ao Padre José no caminho para me batizar; a quem peço que pelo Batismo me receba na Igreja de Deus, para entrar no céu”.
Depois de instruído, o índio foi batizado pelo Servo de Deus. Fez Diogo algumas recomendações piedosas, pediu a benção de Anchieta e de novo morreu.
Concluindo a narração de tão estupendos milagres, fazemos nossa, estas palavras do Pe. Antônio Franco: “Coisas são estas tantas e tão jun-tas, que mais parecem sonho que verdade; mas, quem sabe que Deus tem em suas obras fins tão profundos, nem as tem por ociosas, nem há porque se cuide ser fingimento, pois foram à vista de tantas testemunhas e as escrevem homens de grande virtude e verdade, e constam de processos autênticos, que se fizeram em ordem à canonização deste santo Padre, ao qual parecia ter Deus vinculado a sua onipotência, para com estes prodígios confirmar na fé aquela primitiva Igreja do Brasil”.
Era domingo, 9 de junho de 1597. Tinha o Servo de Deus, já completos, sessenta e três anos de idade. Havia quarenta e quatro anos que habitava o Brasil, no preparo ininterrupto das almas. A sua existência toda fora um prodígio de amor a Deus e ao próximo, de desprendimento do mundo e de mortificação. Ia extinguir-se agora, na paz do Senhor, essa mesma existência consagrada, desde a juventude, ao serviço divino.
Com a fronte envelhecida, combatera o bom combate e lutara muita vez:
O martírio, o deserto, o cardo, o espinho, A pedra, a serpe do sertão maninho,
A fome, o frio, a dor;
Os insetos, os rios, as lianas;
Chuvas, miasmas, setas e savanas,
Horror e mais horror.
[Jesuítas, Castro Alves.]
Achava-se Anchieta em Reritiba, na capitania do Espírito Santo. Ao pressentir que a morte era chegada, pediu o sagrado Viático e a Extrema-Unção. Abraçado com as imagens de Jesus Crucificado e Maria Imaculada, depois de piedosas jaculatórias, ouviu as orações pelos agonizantes, calmo, paciente e resignado. Pouco depois desprendeu-se do macerado corpo sua alma santa, indo gozar no céu a eterna glória.
Depois de mais de quatorze léguas de caminho, sem que ninguém sentisse nenhum cansaço, chegou finalmente à vila do Espírito Santo, o cortejo fúnebre, que acompanhava os restos mortais do santo missionário.
Saíram ao seu encontro, o capitão da terra Miguel Azevedo, o prelado administrador Bartolomeu Simões, os Padres de S. Francisco, os Irmãos da Misericórdia com esquife rico e todas as confrarias. Chegou também João Soares, a quem o Padre Anchieta tinha dito que o veria naquele ponto… então disse ao administrador que, enquanto se dispunha a pompa, lhe mandasse abrir a caixa e dar vista de seu amigo, em cumprimento da sua profecia. Não se pôde negar tão justa petição; abrindo-se a caixa à vista de João Soares e de muitos outros, em quem com a vista se acenderam as saudades, e estas despertaram em todos, lágrimas.
Aqui se viu como, havendo quatro dias que (Anchieta) era falecido, andando ao sol e sereno dois dias, estava incorrupto e sem algum cheiro ruim, sendo assim que nenhum defensivo se tinha com ele usado… Terminados os solenes funerais, a que assistiu, consternada, toda a população da vila, foi o corpo sepultado na capela de S. Tiago.
Em 1611, por ordem do superior geral Acquaviva, foram as relíquias do Servo de Deus transportadas para a igreja do colégio da Bahia e, anos depois, para Roma. A causa da sua beatificação vai adiantada, continuando os fiéis a receber graças por sua intercessão. Permita Deus que, em breve, possamos venerar em nossas igrejas a imagem do apóstolo e taumaturgo do Brasil – o santo José de Anchieta.
Excerto de: MANUEL E. ALTENFELDER SILVA; Brasileiros Heróis da Fé, Santa Cruz – Editora & Livraria, 2020, pp. 13-26.
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