MILITÂNCIA E VERITÂNCIA — CATÓLICOS DO DENZINGER

Pe. Hervé Belmont | 2013

Eis aqui transcrição de parte do último boletim Nossa Senhora da Santa Esperança — que, por sua vez, é transcrição de uma carta enviada a um amigo. Mas acredito que o exposto aí merece ter mais ampla audiência: não pela qualidade do exposto, mas porque de certas verdades, enfim banais, nem sequer mais se desconfia, na derrocada geral das inteligências e dos corações.

Católicos do Denzinger (1)

Não se deve ironizar acerca dos “católicos de Denzinger”. Certamente, ter em mãos e na ponta da língua o Denzinger não concede ipso facto a inteligência da fé nem a ciência teológica, longe disso. Existem certas caricaturas para recordar que um livro não outorga o discernimento. Mas já é ir buscar a luz na boa fonte: no ensinamento da Igreja, nos textos do Magistério.

Não se deve ironizar nem desencorajar, mas ajudar; não se deve retirar o Denzinger de suas mãos, mas ensiná-los a dele fazer uso, a compreender seus termos, a repor cada verdade em seu lugar no conjunto da doutrina católica (é o que se chama a analogia da fé), ver em que sentido a Igreja a aplicou, meditar a verdade para que ela se torne um elemento vital em nós e não um cacete para maçar o próximo etc.

Há na coleção de Itinéraires uma magnífica defesa da Cité Catholique (aprox. 1960) em que Jean Madiran assume a defesa dessa instituição que fez tanto bem, difundindo e fazendo estudar as encíclicas e os catecismos, contra os doutores zombeteiros que acusavam (equivocadamente) os membros de La Cité Catholique de não saberem ler as encíclicas — mas que não faziam nada para difundir a doutrina da Igreja. É um escrito faiscante como Madiran os sabia fazer, e de alta sabedoria saborosa e instrutiva.

Pensando bem, os “católicos do Denzinger” são muito preferíveis aos “católicos do já eu acho que”, raça ignóbil que se acredita dispensada de estudar e que não se fia senão em suas próprias trevas feitas de memória evanescente e de espírito próprio onipresente. Sua ignorância serve a eles de caução moral para copiosamente denegrir o próximo, sem vergonha.

Adrien Loubier, em sua obra tão útil e clarividente Groupes réducteurs et noyaux dirigeants [Grupos redutores e núcleos dirigentes], expõe que o sinal e consequência do funcionamento de uma société-de-pensée é a doutrina imaginada. É bem disso que se trata com os “católicos do já eu acho que”, principalmente se estão em grupo onde as relações são entre bajuladores e bajulados, ou entre guru e lorpas. Imagina-se, e, para tentar dar aparência douta à imaginação, passa-se a recortes e leituras de texto distorcidas, que só impressionam àqueles que não se dão ao trabalho de ir estudar nas fontes.

Prefiro também os “católicos do Denzinger” a uma raça que tem clara tendência a aumentar com o tempo que nos afasta de 1991: os “católicos Lefebvre”.

Não quero me referir àqueles que têm veneração e gratidão pela pessoa de Mons. Marcel Lefebvre: aí está algo perfeitamente justo, e eu me incluo entre estes. Não quero me referir, tampouco, àqueles que citam Mons. Lefebvre como se pode fazer com todo e qualquer autor, por prestar ele testemunho ou expor a verdade com a autoridade da ciência.

Chamo de católicos Lefebvre àqueles que recorrem a Mons. Marcel Lefebvre como a uma autoridade magisterial: ele falou, logo é verdade, não há nada a acrescentar, a causa está terminada. Mons. Lefebvre disse que a “missa nova” é válida… logo, ela é válida sem dúvida alguma. Mons. Lefebvre sagrou bispos… logo, é porque isso é legítimo. E assim por diante.

É uma atitude espantosa.

Para começar, porque Mons. Lefebvre em seu combate não era, de jeito nenhum, um órgão do Magistério da Igreja. Mas, na ordem dos fatos, ele bem que esteve em situação de exercer o magistério supremo da Igreja, ao ser padre conciliar no Vaticano II… bizarramente, não são nunca os textos do concílio que ele assinou os que são citados pelos que fazem dele uma autoridade magisterial.

E depois, há uma grande variedade nas tomadas de posição de Mons. Lefebvre, e cada qual concorda plenamente com ele, estimando que o “verdadeiro” Mons. Lefebvre seja aquele que está de acordo consigo. Assim, é a torre de Babel — todo o contrário do Magistério da Igreja Católica.

Militância e veritância

Estimo que essa deformação profunda consiste nisto: o primado da militância sobre a veritância (invento a palavra por exigências de simetria). Imagina-se que a verdade se encontre automaticamente na ponta da espada, e que baste combater “do lado bom” para ter razão, sem estar obrigado a remontar em linha reta aos princípios, sem ter o dever de verificar os fatos, sem necessidade de fazer um sério esforço de compreensão daqueles contra os quais se combate, etc.

A Igreja Católica é militante, mas essa qualidade decorre da posse da verdade. Inverter a ordem acarreta desordens morais permanentes, e constitui um contratestemunho que afasta os espíritos honestos que poderiam ser interessados em estudos ou textos úteis.

Isso é tanto mais verdadeiro porque posse da verdade não significa conhecimento verbal, superficial ou utilitarista. Essa posse consiste em ser possuído.

Não se trata, em absoluto, de reduzir a verdade às dimensões de nossas inteligências muito limitadas; não se trata de fazer da verdade um partido nem uma arma para suplantar, eliminar ou humilhar o próximo.

Trata-se de recordar-se de que a verdade é uma pessoa: Nosso Senhor Jesus Cristo; que esta pessoa é a verdade eterna, o Verbo de Deus; que ela depositou a verdade que ilumina e que salva na Igreja Católica que ela dotou de um Magistério para tanto (e de um governo, para que a verdade passe aos atos, e de um poder de santificação, para que se vá buscar a verdade na sua fonte: a graça e a misericórdia de Deus).

Situar nossa inteligência sob a luz da fé, na docilidade à Igreja, no espírito do Evangelho, no rigor da inteligência que Deus nos dá, na humildade e simplicidade das criancinhas: nada temos que inventar e tudo que receber; nada temos a distorcer por amor próprio, mas tudo a transformar em ação de graças e louvores: aí então, a militância será abençoada por Deus.

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(1) Denzinger é o nome dado usualmente ao Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum [Compêndio dos símbolos, definições e declarações] que foi publicado a partir de 1854 por Henrique Denzinger. Essa obra, que cabe nas mãos (é o sentido, segundo a etimologia grega, de Enchiridion), é um compêndio de excertos de textos do Magistério da Igreja sobre questões de dogma e de moral. Tornou-se obra de referência por sua seriedade e aspecto prático (as tabelas são bastante completas, e os textos são classificados por ordem cronológica).

Há duas séries de Denzinger. As trinta e uma primeiras edições vão de 1854 até 1960 (DenzigerDenzinger-BannwartDenzinger-UmbergDenzinger-Rahner). Elas se incrementaram à medida que o Magistério da Igreja se exercia, conservando a mesma numeração. A referência a esta série é a mais comum e mais segura.

As edições 32-38 vão de 1963 a 1995 sob o nome de Denzinger-Schönmetzer [N. do T. – E posteriormente, do Denzinger-Hünermann, melhor nem falar…]; elas transtornam a numeração, introduzem textos antigos duvidosos, integram os atos do Vaticano II e consortes, e eliminam passagens inteiras da Quanta Cura ou da Pascendi (por exemplo)… Algum vírus passou por aí, sem contar que a nova numeração se difundiu pouco.

Trad. por Felipe Coelho.

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