Dr. Brian Harrison
1995
Parte I de:
A Encíclica Spiritus Paraclitus
em seu contexto histórico,
in:
rev. Living Tradition, n.º 60
(set. 1995)
Rev. Dr. Brian HARRISON
Setembro de 1995 marca o septuagésimo-quinto aniversário de um documento sumamente importante do Magistério da Igreja Católica: a Carta Encíclica Spiritus Paraclitus, publicada pelo Papa Bento XV em 15 de setembro de 1920 para marcar o 1.500.º aniversário da morte do maior estudioso das Escrituras da Igreja na antiguidade, São Jerônimo. [1. Cf. AAS12 (1920), pp. 385-422, e EB 440-495. “Enchiridion Biblicum”, abreviado como “EB” neste estudo, refere-se à última edição desta coleção de referência dos documentos da Igreja sobre a Escritura: Enchiridion Biblicum: Documenti della Chiesa sulla Sacra Scrittura, Bologna, Edizioni Dehoniane, 1994 (segunda edição bilíngue, em latim e italiano). Os números remetem aos parágrafos, não às páginas, do EB.]
O Pontífice aproveitou esse centenário de relevo para fixar nesta encíclica normas e diretrizes suplementares para os exegetas, um quarto de século depois da promulgação da grande magna carta dos modernos estudos bíblicos católicos: a Encíclica de Leão XIII Providentissimus Deus (18 de novembro de 1893).
Não parece haver sinal algum de que a imprensa católica fará este ano qualquer menção ao aniversário da Spiritus Paraclitus, que em verdade é hoje uma encíclica quase esquecida. Com efeito, nas raras ocasiões em que chega a ser lembrada pelos mais destacados estudiosos da Escritura em nossos dias, o contexto geralmente parece ser de desdém pela doutrina dela e de lástima por seu efeito alegadamente negativo sobre os altos estudos bíblicos. Por exemplo, o Pe. Joseph A. Fitzmyer, em comentário recém-publicado ao documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica, julga apropriado exprimir o exato oposto de gratidão pela Spiritus Paraclitus. Ele não estima a encíclica de Bento XV digna de ser mencionada no corpo do texto de sua descrição histórica do movimento bíblico católico, mas escreve em nota de rodapé:
“Se hoje somos gratos às encíclicas dos Papas Leão XIII e Pio XII sobre os estudos bíblicos, temos de recordar que entre as duas apareceu também a encíclica do Papa Bento XV Spiritus Paraclitus…, comemorando o décimo-quinto centenário da morte de S. Jerônimo. Em sua reação ao modernismo das primeiras décadas do século, essa encíclica desenvolveu um enfoque da Escritura negativo, insistindo na inerrância desta e, de fato, negando que se tivesse de interpretar a Bíblia conforme suas formas literárias. O impacto da encíclica do Papa Bento XV foi sufocante.”
[2. J.A. Fitzmyer (ed.), The Biblical Commission’s Document, “The Interpretation of the Bible in the Church”: Text and Commentary (Roma: Editrice Pontificio Istituto Biblico, 1993), p. 20, n. 10.]
A despeito dessa moda atual de desqualificar a Spiritus Paraclitus – ou talvez por causa dela –, a mensagem dessa Encíclica provavelmente nunca foi mais relevante do que é hoje, de modo que seu 75.º aniversário parece um bom momento para recordar a mensagem da intervenção tempestiva e incisiva do Papa Bento. Contudo, será oportuno fazer isso situando sua encíclica, e as razões pelas quais ela nos últimos tempos caiu em esquecimento e mesmo em descrédito, no contexto mais amplo da história recente dos estudos bíblicos católicos – e, especialmente, da versão bastante unilateral dessa história que, embora tenha reinado praticamente inconteste entre os estudiosos das Escrituras católicas desde a década de 1960, requer uma avaliação crítica.
A. A Leitura Revisionista da Divino afflante Spiritu
Entre os exegetas e docentes da Escritura nas últimas três ou quatro décadas, tornou-se lugar-comum a observação de que o ano de 1943 marcou um divisor de águas na história do tratamento da Bíblia pela Igreja Católica. O vasto legado de exegese e comentários bíblicos produzido pelos grandes Padres e Doutores da Igreja durante dezenove séculos tende a ser considerado principalmente como uma coleção de piedosas, mas “pré-críticas” peças de museu de pouca utilidade prática para o estudioso moderno da Escritura; e embora a encíclica fundamental de Leão XIII Providentissimus Deus, de 1893, seja reconhecida como tendo iniciado um novo capítulo, ao suscitar uma resposta católica mais séria aos desafios da investigação histórica e científica do século dezenove, se diz que o progresso acadêmico foi generalizadamente sufocado pela “reação antimodernista” das autoridades da Igreja, iniciada pelo Papa S. Pio X em 1907, até que Pio XII supostamente escancarou os portões da livre investigação e abriu as portas para os estudos bíblicos “científicos”, com sua encíclica de 1943 Divino afflante Spiritu. Após um período de debate por vezes tenso no interior da Igreja com respeito à validade dessas orientações novas e mesmo “revolucionárias”, a visão “libertadora” de Pio XII, se nos diz, foi vindicada triunfalmente no Concílio Vaticano II, com a promulgação da Constituição sobre a Divina Revelação, Dei Verbum.[3]
[3. Para exposições típicas dessa interpretação da história recente dos estudos bíblicos católicos, ver R.E. Brown, The Virginal Conception and Bodily Resurrection of Jesus (New York: Paulist Press, 1973), pp. 3-9; e também R.E. Brown & T.A. Collins, “Church Pronouncements”, Jerome Biblical Commentary(Londres: Geoffrey Chapman, 1969), pp. 624-626; New Jerome Biblical Commentary (Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1990), pp. 1167-1168.]
Mas o que, exatamente, se supõe ter sido tão radicalmente novo acerca da Divino afflante Spiritu? É significativo que essa caracterização da encíclica de Pio XII não pareça ter sido exposta publicamente antes da morte dele, em 1958. Teria havido alguma percepção, enquanto Pio XII estava ainda vivo e atuante, de que o Papa que emitira a Humani generis não muito tempo após a Divino afflante Spiritu, como alerta severo contra tendências novas e perigosas na teologia e exegese, ficaria não pouco descontente em ser pintado como um inovador audaz em altos estudos bíblicos, determinado a relaxar as restrições de seus predecessores? Certamente, quando Pio XII foi, pela primeira vez, retratado de maneira saliente a esta luz, dois anos depois de sua morte (em editorial na prestigiosa revista romana La Civiltà Cattolica[4]), essa leitura “revisionista” de sua encíclica sobre os estudos escriturísticos resultou bastante controversa.[5]
[4. Cf. L. Alonso Schökel, “Dove va l’esegesi cattolica?”, La Civiltà Cattolica, III, cad. 2645, 3 de setembro de 1960, pp. 449-460. O Pe. Schökel alegava que em 1943 o próprio Pio XII “estava bem ciente de abrir uma porta nova e ampla, através da qual muitas novidades entrariam no recinto da exegese católica – novidades estas que teriam surpreendido mentes excessivamente conservadoras (…si rese ben conto di aprire una nuova ed ampia porta, e che attraverso di essa sarebbero entrate nel recinto dell’esegesi cattolica molte novità, che avrebbero sorpreso gli animi eccessivamente conservatori)” (p. 456).]
[5. Outro proeminente estudioso da Escritura, Mons. Antonino Romeo, celeremente publicou refutação detalhada e indignada da tese do Pe. Schökel (“L’enciclica ‘Divino afflante Spiritu’ e le ‘Opiniones Novæ’”, Divinitas, 4 [1960], pp. 387-456). Esse intercâmbio acalorado produziu repercussões que ecoaram por Roma e no estrangeiro, durante anos a fio.]
Agora, embora essa controvérsia pareça arrefecida já faz tempo, com a visão revisionista tendo hoje se tornado completamente convencional, dita visão é, na realidade, muito questionável, não somente com respeito à própria Divino afflante Spiritu, como também quanto à relação entre esse documento e as duas precedentes encíclicas papais dedicadas aos estudos da Escritura. Francamente, o presente escritor não tem nenhuma contenda especial com as descrições modernas convencionais da primeira delas, dado que geralmente reconhecem o fato de que o objetivo do Papa Leão XIII em promulgar a Providentissimus Deus (1893) foi equilibrado: ele procurou combater as interpretações liberais da Escritura, que de fato negavam sua inspiração e inerrância; mas, ao mesmo tempo, ele desejava promover estudos críticos que fossem ortodoxos, como meio de refutar tais ataques à origem divina da Bíblia.[6]
[6. Como o Pe. Fitzmyer corretamente observa, “Essa encíclica respondia em parte aos problemas levantados pela interpretação racionalista da Bíblia no século dezenove e por muitas descobertas históricas e arqueológicas, avanços científicos, progressos na crítica textual, e pelo estudo comparativo das antigas religiões. Mas Leão XIII era também movido em parte por um desejo ‘de dar impulso à nobre ciência da Sagrada Escritura e de transmitir ao estudo da Escritura uma direção adequada às necessidades da hora presente’” (op. cit., pp. 17-18).]
A confusão começa com aquilo que os estudiosos bíblicos de hoje em dia costumam dizer sobre o meio século após a publicação da Providentissimus– na metade do qual, apareceu a Spiritus Paraclitus de Bento XV. Comumente se nos apresenta uma visão absolutamente polarizada dos períodos pré e pós-1943, respectivamente. A representação desse contraste pelo Pe. Fitzmyer é bastante típica, graças a seus exageros e à desfaçatez com que ele descarta décadas de grave ensinamento magisterial, usando rótulos pejorativos. Ele escreve:
“É difícil todavia, para nós hoje, de conceber a nuvem escura de reacionarismo que pairou sobre a interpretação católica da Bíblia na primeira metade do século vinte. Parte disso foi decorrente da reação geral da Igreja ao racionalismo do século dezenove, especialmente ao modernismo, que se desenvolveu no interior da Igreja naquele tempo. Parte disso foi resultado de documentos específicos da Igreja, derivados das mais altas autoridades na Igreja, do Papa, das Sagradas Congregações e da Comissão Bíblica.”
[7. Fitzmyer, op. cit., pp. 19-20.]
Neste ponto, o Pe. Fitzmyer ajunta uma nota de pé de página em que, depois de fazer as observações nada lisonjeiras sobre a Spiritus Paraclitusque citamos no início do presente estudo, ele fala de modo pouco respeitoso da Pontifícia Comissão Bíblica original. Esta, diferentemente do corpo que hoje porta esse título, era um órgão do Magistério cujos decretos foram (e pode-se dizer que ainda são, de jure senão de facto[8]) vinculantes em consciência para todos os católicos.
[8. Na mais recente edição do Enchiridion Biblicum (cf. nota 1 acima), todos os decretos mais antigos da Pontifícia Comissão Bíblica vêm reproduzidos na íntegra, juntamente ao Motu Proprio do Papa São Pio X Præstantia Scripturæ(18 de novembro de 1907), que declara que as decisões da Comissão são “vinculantes em consciência para todos (universos omnes conscientiæ obstringi officio)” (EB 271). Nenhum documento oficial subsequente jamais acenou para rescisão alguma de qualquer dessas decisões: elas simplesmente deixaram de ser impingidas. (A Carta de 1948, da Comissão para o Cardeal Arcebispo de Paris, sobre os primeiros capítulos do Gênesis deixou claro, em resposta ao requerimento do Arcebispo de que uma ou mais das primeiras decisões fossem rescindidas, que as decisões de 1905, 1906 e 1909 ainda permaneciam em vigor. Cf. EB 579.) Aliás, o Vaticano II citou a Resposta de 18 de junho de 1915 da Comissão, sobre a natureza e os efeitos da autoria divina da Escritura – obviamente considerando-a ainda válida (cf. a nota 1 a Dei Verbum, 11, citando EB 420 {415 na edição de 1994}).
Às vezes é dito que o próprio Pio X depressa mitigou seu rigor inicial, no subsequente Motu Proprio Illibatæ custodiendæ, de 29 de junho de 1910, que promulgou o texto de um juramento a ser prestado por todos os que estivessem prestes a receber grau de doutor em Sagrada Escritura. Nesse texto, as palavras do Motu Proprio de 1907 estão incluídas no juramento, mas com uma ligeira mudança: os decretos da Comissão Bíblica que são agora chamados de vinculantes em consciência são aqueles “atinentes à doutrina (ad doctrinam pertinentibus)” (EB 341). Assim, diz-se, o Papa já estava efetivamente dispondo que todo exegeta poderia doravante sentir-se livre para dissentir dos decretos passados (e futuros) da Comissão, em questões que ele viesse a sentir não envolverem doutrina de fé e costumes. Mas essa não pode ser a verdadeira interpretação do Motu Proprio de 1910, porque:
(a) seria absurdo supor que as decisões pós-1910 da Comissão, formuladas exatamente da mesma forma que as anteriores a 1910 (i.e., com respostas afirmativas e negativas bem definidas acerca de quais opiniões poderiam ser sustentadas), fossem feitas para ser sujeitas ao juízo particular de cada exegeta;
(b) a Comissão mesma continuou a considerar o Motu Proprio de 1907 como ainda em vigor mesmo depois de seu homólogo de 1910, citando a formulação do primeiro (i.e., sem as três palavras adicionais) como vinculante num decreto de 1923 (cf. EB 503); e
(c) foi somente em 1954 que a Comissão Bíblica considerou a proposta – endossada por seu Prefeito, o Cardeal Eugênio Tisserant – de limitar a força vinculante dos decretos anteriores desta forma (cf. F. Spadafora, Leo XIII e gli Studi Biblici, Rovigo, Istituto di Arti Grafiche, 1976, p. 178). A Comissão, em sessão plenária, na realidade rejeitou essa proposta, mas em 1955 ambos o Secretário e o Subsecretário da Comissão publicaram artigos alegando que os decretos desta poderiam ser considerados não mais vinculantes, exceto na medida em que a fé e os costumes pudessem estar envolvidos. Isso foi considerado por alguns como “semi-oficial” (cf. ibid., 178-180, e Fitzmyer, op. cit., p. 21, n. 11), a despeito de esses artigos não terem absolutamente nenhuma força jurídica.
O sentido autêntico da formulação alterada no Motu Proprio posterior vem à tona ao recordar-se que em 1910 ficou previsto que a Comissão Bíblica às vezes emanaria documentos puramente administrativos, como o decreto de 1911 determinando os processos de avaliação para obter graus em Escritura (cf. EB 344-382). Resulta que as palavras: “atinentes à doutrina” (i.e., à interpretação bíblica como tal) foram adicionadas à formulação de 1907, no juramento de 1910, simplesmente a fim de excluir esses documentos meramente administrativos da categoria dos que eram vinculantes em consciência aos exegetas.]
Nosso autor assevera:
“Entre as encíclicas dos Papas Leão XIII e Pio XII houve também a atividade de cão de guarda da Comissão Bíblica, com suas responsaemitidas ao longo de mais de trinta anos. Elas criavam medo e desconfiança acerca de tudo o que estivesse ligado à Bíblia, de modo que tanto o clero como os leigos suspeitavam de todo aquele que tentasse interpretá-la como alguém perigoso e quase heterodoxo. A Carta Apostólica com que o Papa Leão XIII estabeleceu a Comissão Bíblica intitulava-se Vigilantiæ…, título este que deu o tom e resumiu o trabalho da Comissão por aproximadamente quarenta anos.”
[9. Fitzmyer, op. cit., p. 20, n. 10.]
Ora, é um fato histórico que a maioria esmagadora dos muitos doutos artigos, livros e conferências produzidos em toda parte por exegetas católicos durante esse período obedeceram lealmente aos documentos magisteriais pertinentes e nunca foram “suspeitos” de ser “perigosos e quase heterodoxos”.[10] As observações do Pe. Fitzmyer, portanto, denotam que, segundo esse ponto de vista “crítico”, os professores aprovados pelo Magistério responsáveis por aquela vasta coleção de material bíblico nunca sequer “tentaram interpretar” a Escritura – muito menos conseguiraminterpretá-la! Ele não cita prova alguma em respaldo dessa calúnia lançada contra uma geração inteira de seus sábios predecessores – provavelmente porque ele está ciente de que o seu público alvo não precisará ser convencido sobre esse ponto. Os católicos que questionam a tese “estabelecida” de uma completa reviravolta magisterial sobre a Escritura após 1943 são poucos e dispersos, e é bem mais provável que estejam lendo Faith & Reason, The Catholic World Report ou This Rock[11] do que os escritos do Pe. Fitzmyer.
[10. Muitas teses foram censuradas em decretos da anterior Pontifícia Comissão Bíblica; mas tais decretos por si mesmos não silenciaram nenhum autor específico nem proibiram livro específico algum. Com efeito, de todas as milhares de obras sobre a Escritura publicadas ao redor do mundo católico durante o período anterior a 1943, apenas quatro livros e dois artigos chegaram a ser especificamente censurados nominalmente, em decisões publicadas pela Santa Sé. Isso parece uma contagem moderadíssima de proibição de livros para um Magistério que supostamente estava espalhando “medo”, “suspeita” e uma “nuvem escura de reacionarismo” que é “difícil… para nós hoje de conceber”. O Pe. Fitzmyer parece não ter refletido muito na possibilidade de que a maioria dos exegetas católicos daquele período simplesmente deram assentimento aos ensinamentos do Magistério sobre a Escritura em espírito de humildade, continuando assim os seus labores investigativos com um sentido de ser auxiliados, e não “sufocados”, por aqueles ensinamentos. (Os quatro livros reprovados nominalmente foram: Kurzgefasstes Lehrbuch sobre o Antigo Testamento, de Holzhey; Die Heilige Schrift des Neuen Testament, de Tillmann; {ambos condenados em 1912; cf. EB 400a}; o Manuel Biblique de Brassac, condenado pelo Santo Ofício em 1923 {cf. EB 497-504}; e a história do Antigo Testamento por Schmidtke intitulada Die Einwanderung Israels in Kanaan, censurada por resposta de 27 de fevereiro de 1934 da Comissão Bíblica {cf. EB 515-519}. Em todos os casos a principal imputação era a de que os autores tinham fracassado em propugnar a historicidade e inerrância integrais dos relatos bíblicos que eles expunham. Os dois artigos censurados {ambos em 1919} eram sobre a autoria do Pentateuco: um foi “Moïse et Josué” no Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique e o outro foi “Moïse et le Pentateuque” na Revue du Clergé français{cf. EB 439s}).]
[11. Esta excelente revista mensal de apologética e evangelização católica é editada por Karl Keating, cujo livro best-seller Catholicism and Fundamentalism (San Francisco: Ignatius Press, 1989) é uma das obras mencionadas pelo Pe. Fitzmyer como exemplos de uma nova tendência que ele julga perturbadora e que ele descreve como segue: “Infelizmente, católicos em tempos recentes têm desenvolvido sua própria forma de leitura fundamentalista da Bíblia” (op. cit., p. 107, e cf. a nota 143 a essa página). Esses recentes movimentos apologéticos católicos, que têm surgido ao redor da última década em resposta ao desafio renovado e agressivo do proselitismo fundamentalista protestante, habitualmente procedem dando por pressuposto, como terreno comum com seus oponentes, a historicidade dos registros bíblicos, e disputando somente a interpretação anticatólica desses registros. Especificamente, eles compartilham com seus adversários sectários da crença – que de fato é a crença autenticamente católica – de que os Evangelhos em sua forma canônica são relatos historicamente fiáveis que sempre nos dizem a verdade sincera acerca do que Jesus realmente fez e disse (cf. Vaticano II, Dei Verbum, 19, e o Catecismo da Igreja Católica, passim). Mas, para o Pe. Fitzmyer, essa crença sustentada pelos novos apologistas católicos é uma das razões para rotulá-los de “fundamentalistas”, pois uma das deficiências do fundamentalismo, diz-nos ele, é que “equaciona o estágio final da tradição do evangelho (aquilo que os evangelistas puseram por escrito, aprox. A.D. 65-95) com o seu primeiro estágio (aquilo que Jesus de Nazaré fez e disse, aprox. A.D. 1-33). Consequentemente, ignora a maneira como as primeiras comunidades cristãs entenderam o impacto produzido por Jesus e sua mensagem” (op. cit., p. 106). Neste ponto, o Pe. Fitzmyer recomenda como comentário sobre tal “perigoso” e “pré-crítico” fundamentalismo (ibid., pp. 106-108) um grupo de obras que incluem um livro do bispo mais radical da igreja anglicana, John S. Spong, intitulado Rescuing the Bible from Fundamentalism: a Bishop Rethinks the Meaning of Scripture (ibid., p. 106, n. 141).]
Enquanto que o Pe. Fitzmeyer vê trevas e trepidação como tendo envolvido os estudos católicos escriturísticos por toda parte antes do tempo de Pio XII, ele aplaude esse pontífice como autor do grande “documento libertador”[12]: a Divino afflante Spiritu. [12. Op. cit., p. 20.] Ainda buscando resposta à questão que já levantamos, de por que essa intervenção é agora tida como tão “libertadora” e “revolucionária” depois da “sufocante” e “negativa” influência da Spiritus Paraclitus, lemos:
“Cinquenta anos depois [i.e., depois da Providentissimus Deus] o Papa Pio XII compôs outra encíclica importante sobre a promoção dos estudos bíblicos, a Divino afflante Spiritu, publicada na festa de S. Jerônimo, 30 de setembro de 1943. Esse escrito de Pio XII foi igualmente ocasionado pelas necessidades da época, mas estas eram de tipo diferente. Originavam-se principalmente de pessoas no interior da Igreja Católica, especialmente daqueles que procuravam desviar os fiéis do uso de um método crítico-científico de interpretação da Bíblia rumo a um tipo de exegese mais “meditativa” ou “espiritual”. A encíclica de Pio XII foi, na realidade, muito mais significante que a de Leão XIII e foi, de fato, revolucionária. Ela colocou a Igreja Católica num caminho de interpretação da Escritura que deu muitos frutos.”
[13. Ibid., pp. 18-19.]
B. O Que Motivou a Publicação da Divino afflante Spiritu?
Essa visão convencional do que foi que principalmente motivou Pio XII a publicar a sua célebre encíclica bíblica merece também exame cuidadoso. Pois lendo a própria Divino afflante Spiritu, não encontramos indicação alguma de que o Pontífice enxergasse as “necessidades da época” como originadas principalmente da confusão causada por ultraconservadores que se opunham aos estudos bíblicos científicos. Com efeito, a única de tais “pessoas no interior da Igreja Católica” de quem temos algum indício específico e concreto foi um solitário sacerdote italiano, Dolindo Ruotolo, que em 1941 redigiu um ataque pseudônimo e anti-intelectual contra os estudos bíblicos contemporâneos, que ele distribuiu ao Papa e aos cabeças da Igreja na Itália. [14. Cf. ibid., p. 19, n. 9.] Mas a motivação prioritária de Pio XII em publicar a Divino afflante Spiritu, segundo a encíclica mesma [15. Cf. EB 538.], foi simplesmente: comemorar o 50.º aniversário da Providentissimus Deus, confirmar o ensinamento dela e dos Papas subsequentes, e oferecer um renovado encorajamento e direcionamento a todos os estudantes da Escritura. Longe de proverem o “principal” estímulo para a encíclica de Pio XII, os disparates do Pe. Ruotolo (e de quaisquer outros que pudessem concordar com ele) foram objeto de alusão em somente duas breves sentenças deste documento de 28 páginas.
Uma delas surge no contexto de exortar os exegetas a recordar que a justa preocupação deles em fixar o sentido literal da Escritura não devia se tornar ocasião de preterir o genuíno sentido espiritual da Escritura. Dentre os muitos efeitos positivos de dedicar a devida atenção a este último, disse o Papa, estava o de “reduzir ao silêncio” os que se queixam de não encontrar nenhum alimento espiritual na exegese moderna, e por isso reagem exageradamente, descartando a importância do sentido literal e refugiando-se numa leitura vaga, subjetiva e simbólica da Escritura: “uma certa interpretação espiritual e, como dizem eles, mística” [16. “…spiritualem quamdam et mysticam, ut aiunt, interpretationem” (EB 552).].
A outra passagem é mais conhecida porque, se bem que entendida em seu verdadeiro contexto histórico ela não seja mais “revolucionária” do que a expressão que acaba de ser citada, ela foi desde então amolada em uma afiada arma apologética por exegetas que a utilizam para golpear com indignação santarrã àqueles membros dos fiéis que expressam alarme com as teses racionalistas deles (teses, em muitos casos, que são substancialmente as mesmas que as condenadas pelo próprio Pio XII em sua encíclica subsequente, a Humani generis, de 1950). Estamos nos referindo à sentença frequentemente citada em que o Papa exorta todos os católicos a exercer caridade e justiça ao avaliar o trabalho dos exegetas (esses “trabalhadores estrênuos na vinha do Senhor” [17. “…strenuorum in vinea Domini operariorum” (EB 564).]), acrescentando que todos “devem tomar o cuidado de evitar aquele zelo insuficientemente prudente que julga tudo aquilo que for novo como, por essa razão mesma, merecedor de ataque ou de suspeita.” [18. “…qui quidem ab illo haud satis prudenti studio abhorrere debent, quo quidquid novum est, ob hoc ipsum censetur esse impugnandum, aut in suspicionem adducendum” (ibid.).]
Essa sentença específica foi elevada a locus theologicus maior, na releitura moderna da Divino afflante Spiritu: um “princípio magnífico”, como o chamam os padres Raymond Brown e Thomas Aquinas Collins. [19. Op. cit.(citada na nota 3 acima), p. 626.] Os católicos foram assegurados pelo Pe. Brown de que, com estas palavras, Pio XII na realidade censura o “vigilantismo de direita” daqueles “literalistas”, “ultra-direitistas” e “escritores de editoriais e colunas fundamentalistas” [20. R.E. Brown, op. cit.(citada na n. 3), p. 13.] que ousam pôr em dúvida a ortodoxia doutrinal da erudição bíblica revisionista que ele tão destacadamente representa. Ele prossegue acusando tais críticos de constituir “um perigo para o progresso contínuo dos estudos bíblicos católicos neste século” e de ameaçarem “frustrar a visão de Pio XII, que bem pode comprovar-se o maior Papa-teólogo do século” [21. Ibid., pp. 13-14.].
Só se pode pasmar com a audácia do Pe. Brown em alegar o respaldo implícito do Papa Pio XII para o tipo de exegese que lança dúvidas sobre a confiabilidade histórica das Narrativas da Ressurreição do Evangelho e de se a Concepção Virginal de Cristo pode realmente ser provada pela Escritura. O abismo que separa essa alegação e a realidade histórica referente à Divino afflante Spiritu fica ainda mais claro quando nos damos conta daquilo que o autor da encíclica realmente teve em mente ao alertar brevemente os católicos para não terem o excesso de zelo de criticar tudo aquilo que for novo nos estudos bíblicos. A verdade é que a posição doutrinal do sacerdote italiano idiossincrático aludido aqui por Pio XII não tinha virtualmente nada em comum com a daquelas publicações católicas pós-conciliares que habitualmente impugnam o Pe. Brown e seus colegas que pensam como ele.
Já em 1941, dois anos antes de a encíclica ser publicada, o panfleto do Pe. Ruotolo chegou mesmo a ser refutado por um documento menor da Pontifícia Comissão Bíblica, publicado somente em italiano e enviado ao mesmo público ao qual o padre distribuíra sua própria diatribe. Com base nessa refutação da obra dele, somos informados de que não somente ele queria que os exegetas quase que ignorassem o sentido literal da Escritura, a fim de excogitar arbitrárias interpretações alegóricas e “místicas”; ele também repreendia o zelo “moderno” deles em estudar as línguas e literaturas orientais antigas, e em pacientemente comparar manuscritos para chegar à mais exata versão possível do texto original inspirado. Por quê? Porque, de acordo com esse sacerdote “tradicionalista”, tais investigações “mundanas” e “não-espirituais” chocavam-se todas com o Concílio de Trento! Entendendo mal o ensinamento desse Concílio sobre o status da versão Vulgata latina da Bíblia, o Pe. Ruotolo fustigava todos esses estudos científicos modernos como piores do que inúteis, pois ele achava que o texto da Vulgata era já uma versão tão perfeita quanto era possível de desejar, e considerava perigoso até mesmo contemplar corrigir a Vulgata por referência ao grego ou hebraico originais. [22. Cf. a Carta da Pontifícia Comissão Bíblica aos Bispos da Itália, Un opusculo anonimo denigratorio (“Um opúsculo anônimo e difamatório”) (20 de agosto de 1941), EB 522-533. Por causa de seus defeitos doutrinários, os 13 volumes de comentários escriturísticos do próprio Pe. Ruotolo (do Gênesis a Siraque), intitulados La Sacra Scrittura, psicologia-commento-meditazione, foram postos no Índex dos Livros Proibidos donec corrigatur (“enquanto não forem corrigidos”). Cf. AAS 32 (1940), p. 554.]
À luz destas informações de fundo, podemos ver prontamente o quão completamente infundada é a alegação de que a breve admoestação de Pio XII aos católicos que pudessem ser excessivamente suspeitadores de qualquer coisa nova indique algum tipo de “revolucionária” e “libertadora” mudança de direção por parte do Magistério, e que uma suposta ameaça conservadora a “um método crítico-científico de interpretação da Bíblia” fosse o que “principalmente” motivou o Papa a produzir sua encíclica. Com efeito, tão pequena foi considerada esta ameaça pelas autoridades da Igreja na época, que a carta da Comissão Bíblica começava quase pedindo desculpas aos Bispos italianos por tomar o valioso tempo deles em refutar o panfleto anônimo que todos eles tinham recebido poucas semanas antes! [23. A carta reconhecia que até mesmo a maneira inepta em que essa diatribe anônima fora apresentada tinha provavelmente sido suficiente para demonstrar de imediato a muitos ou à maioria dos Bispos que ela era coisa inconsequente, e “bem poderia dispensar de fazer observações suplementares a seu respeito” (potrebbero dispensare da altri rilievi). Contudo, a carta prosseguia explicando que a Comissão estava se dando ao trabalho de responder ao panfleto, para o caso de “algum Pastor ou outro” (qualche Pastore) poder ter ficado perturbado com suas denúncias. Cf. EB 522.] E, dado que essa carta, em todo o caso, cuidou do assunto bem adequadamente em 1941, como é que se poderia sustentar acreditavelmente que, dois anos depois de essa tempestade local em copo d’água ter sido devidamente apaziguada, o Sumo Pontífice enxergasse essa questão como o “principal” problema em meio àquelas “necessidades da época” que pediam uma encíclica de envergadura, dirigida à Igreja universal?[24]
[24. Infelizmente, a visão historicamente infundada logrou distorcer a tradução oficial em inglês da alocução de 23 de abril de 1993 do Papa João Paulo II celebrando o 100.º aniversário da Providentissimus Deus e o 50.º da Divino afflante Spiritu (EB 1239-1258). A alocução é reproduzida no começo do livreto publicado pelo Vaticano que traz o texto do documento de 1993 da Comissão Bíblica (A Interpretação da Bíblia na Igreja, Libreria Editrice Vaticana, 1993). À pág. 9 do livreto, como em Fitzmyer, op. cit., p. 3, lemos que Sua Santidade disse: “A Divino afflante Spiritu estava primordialmente preocupada em defender a interpretação católica dos ataques que se opunham ao uso da ciência pelos exegetas e que queriam impor uma interpretação não-científica, dita ‘espiritual’, da Sagrada Escritura.” A palavra “primordialmente” é uma tradução injustificável do original francês: a palavra davantage, que significa “antes que” ou “mais” (corretamente traduzida em italiano como piuttosto em EB 1241). O contexto da observação do Papa é uma passagem em que ele está comparando uma parte determinada da encíclica de Pio XII (não o documento inteiro) com a parte correspondente da de Leão XIII, nomeadamente, “a parte polêmica ou, para ser mais exato, apologética das duas Encíclicas”. João Paulo II diz que, enquanto o aspecto apologético da Providentissimus Deus estava preocupado em “proteger dos ataques dos racionalistas a interpretação católica da Bíblia”, o da Divino afflante Spiritu “estava mais (davantage) preocupado” em protegê-la do tipo oposto de ataques, nomeadamente, daqueles “que se opõem ao uso da ciência pelos exegetas”. Embora o Santo Padre aluda ao panfleto anticientífico do Pe. Ruotolo, ele nunca diz que refutá-lo fosse a preocupação “principal” ou “primordial” de seu predecessor ao redigir a Divino afflante Spiritu.]
Em conclusão, é digno de nota que, pouco depois de a Divino afflante Spirituser publicada, ou seja anos antes de os acadêmicos revisionistas começarem a retratá-la como predominantemente “anticonservadora” em seu conteúdo e motivação, um destacado exegeta “progressista”, o Pe. Jean Levie, que certamente buscava dar todo o peso ao que quer que encontrasse de inovador na encíclica [25. Ver abaixo.], reconheceu que, embora o recente ataque de Dolindo Ruotolo à exegese científica aprovada fosse, de fato, referido implicitamente e refutado por Pio XII, isso foi somente um “incidente local” sem paralelos significativos fora da Itália, e “não foi a motivação essencial para a publicação da encíclica Divino afflante Spiritu.” [26. “…ce n’est pas cet incident local qui a motivé, pour l’essentiel, la publication de l’encyclique ‘Divino afflante Spiritu’.” J. Levie, “L’Encyclique sur les Études Bibliques” (Part I), Nouvelle Revue Théologique, Vol. 68, N.º 6, Out. 1946, p. 652.]
C. Pio XII Relaxou as Proibições de Seus Predecessores?
É verdade, claro, que a Divino afflante Spiritu inclui algumas observações e recomendações que não tinham sido formuladas explicitamente em documentos magisteriais anteriores. Ela nota que muitas questões bíblicas continuam abertas a futura resolução, e que o significado de somente poucas passagens que tocam à fé e moral foi já autoritativamente decidido pelo Magistério ou pelo consenso dos Padres. [27. Cf. EB 565. Ao falar destas “poucas” passagens cujo significado já foi decidido, Pio XII diz que está falando dos livros “jurídicos, históricos, sapienciais e proféticos”. A escolha dessas palavras sugere que ele tinha em mente principalmente o Antigo Testamento.]Especificamente, a encíclica declara que os exegetas devem prestar atenção especial ao discernimento de qual gênero literário está sendo empregado pelo escritor inspirado. [28. Cf. EB 555-561.]
É significativo, porém, que na época em que a encíclica foi publicada nenhum dos eruditos comentadores viu nada de especialmente radical ou “libertador” nessa recomendação papal, como se o Papa tivesse por aí permitido alguma novidade exegética anteriormente proibida. Isso não surpreende, em vista do fato de que Pio XII insistiu reiteradamente, na primeira parte da encíclica, que ele desejava confirmar e reforçar tudo o que seus predecessores desde Leão XIII haviam estipulado com relação aos estudos da Escritura. [29. Cf. EB 539-545.] Noutras palavras, é óbvio que o Papa quis que as suas observações sobre o discernimento dos gêneros literários fossem entendidas em harmonia com, e não em oposição a, os pronunciamentos anteriores do Magistério sobre tais matérias.
Mesmo estudiosos que subsequentemente tornaram-se um bocado mais (ou mais abertamente) liberais em sua exegese foram incapazes, no período imediatamente posterior à promulgação da encíclica de Pio XII, de encontrar nela o que quer que fosse, que permitisse o que até então estivera proibido. O Pe. Jean Levie já tinha ficado conhecido, no fim da década 1950, como um estudioso bíblico definitivamente “progressista”; mas, em seu próprio comentário à Divino afflante Spiritu publicado em 1946, Levie não fez alegação alguma de que ela estivasse abrindo quaisquer portas até então fechadas – muito menos que Pio XII tivesse cientemente pretendido abri-las. Embora empregasse adjetivos como “progressista” e “ampliadora” para descrever seu espírito geral,[30] o abrangente exame da encíclica pelo Pe. Levie nada descobriu nela de radical. Ao tratar da crescente tendência, entre exegetas do meio século anterior, de apreciar melhor os aspectos “encarnacionais” e historicamente condicionados da linguagem bíblica e seus vários gêneros literários, ele resume a significação da intervenção de Pio XII dizendo que ela “consagra” a “vitória” desse enfoque, sobre o enfoque mais antigo e excessivamente literalista. Mas ele rapidamente ajunta que essa “vitória” é uma que “já estava virtualmente ganha fazia muitos anos”.[31] Referindo-se à gradual mudança do Magistério nessa direção, desde o começo do século, quando a Pontifícia Comissão Bíblica pela primeira vez reconheceu explicitamente a possibilidade – se bem que muito cautelosamente – de que algumas partes da Escritura, até então consideradas históricas, calhassem talvez de pertencer a um gênero não-histórico, Levie reconhece que o progresso certamente ocorreu na mesma direção e sem contradição alguma. Desde 1905, nota ele, certas aplicações do princípio dos gêneros literários haviam sido reconhecidas como legítimas; mas foi somente em 1943 que isso foi proposto formalmente pelo Magistério mesmo, como grande meio de “resolver muitas objeções à verdade e ao valor histórico das Sagradas Letras.”[32]
[30. “…progressiste, élargissante“, ver Levie, op. cit., p. 655.]
[31. “C’est la victoire de cette seconde mentalité, déjà virtuellement acquise depuis bien des années, que consacre l’encyclique” (op. cit. nota 26 acima, Parte II, Vol. 68, N.º 7, Nov.-Dez. 1946, p. 781).]
[32. “Certes le progrès est dans la même ligne et sans contradiction aucune; dès 1905 certaines applications du principe des genres littéraires avaient été reconnues légitimes; mais ce n’est qu’en 1943 qu’il est proposé formellement par l’autorité elle-même comme le grand moyen de ‘résoudre beaucoup d’objections contre la vérité et la valeur historique des Saintes Lettres’” (Levie, op. cit., p. 782 – destaque no original).]
Como se pode falar disso como “revolução” ou “libertação”, quando se trata de uma questão de desenvolvimentos que não somente foram “na mesma direção e sem contradição alguma”, como, em todo o caso, tinham sido admitidos já anos antes pelo Magistério, e agora estão sendo meramente “propostos formalmente” pela encíclica de 1943? Nem é preciso dizer que Pio XII, ao mesmo tempo que punha maior ênfase do que seus predecessores na importância de determinar o gênero literário de uma dada passagem bíblica, não tinha nem a mais remota intenção de rescindir ou contradizer a decisão de 1905 da Comissão Bíblica sobre este tópico, a qual afirmou que o caráter não-histórico de um livro ou passagem até então considerada histórica “não deve ser admitido facilmente ou temerariamente”, e tem de ser “provado com sólidos argumentos”. [33. Cf. a resposta de 23 de junho de 1905 da Pontifícia Comissão Bíblica, tratando de “narrativas que são históricas somente em aparência” (EB 161). A Comissão decidiu que, como regra, a existência de tais gêneros não deveria ser admitida na Escritura, mas concedeu que poderia haver exceções, caso se pudesse provar com argumentos sólidos que, em livros ou passagens específicos, “o escritor inspirado não intentou escrever história em sentido verdadeiro e próprio.”]
Em nome do estudo de “gêneros literários” e “formas literárias”, hoje comumente se nos diz que quiçá a maior parte dos Evangelhos – incluindo certamente as Narrativas da Infância e da Ressurreição – são guias bem pouco confiáveis quanto ao que realmente fez e disse o Jesus histórico, porque foram profundamente “retrabalhadas” pelo contributo “teológico criativo” das anônimas comunidades e redatores cristãos primitivos. Ainda maior dúvida é projetada sobre a confiabilidade histórica do Pentateuco e de praticamente todo outro livro histórico do Antigo Testamento. A conclusão é tirada – bem logicamente – de que a tentativa de defender a historicidade de qualquer afirmação concreta, quer no Antigo ou no Novo Testamento, à luz de fontes profanas aparentemente conflitantes ou de uma aparente contradição em algum outro lugar na Escritura, é “concordismo” fútil e não-científico. Por quê? Porque, assim se diz, os “gêneros literários” utilizados pelos autores antigos exigiam pouca preocupação com “meros” fatos históricos: aqueles autores de bom grado “remodelavam” e “reliam” os fatos, de acordo com suas preocupações “teológicas” preponderantes.
O quão longe esse tipo de hermenêutica estava das intenções de Pio XII fica óbvio, a partir daquelas passagens mesmas da Divino afflante Spiritu em que o Papa frisa a importância de discernir os gêneros literários. Um resultado da recente perquirição nessa área, afirma Pio XII, é o seguinte:
“A investigação mesma demonstrou lucidamente que, entre as nações do antigo Oriente, o povo de Israel detinha uma extraordinária eminência na escrita da história, no que se refere tanto à sua antiguidade como à sua fiel narração dos fatos (ob fidelem rerum gestarum relationem). Tal alta prerrogativa, com efeito, pode ser deduzida do carisma de divina inspiração e da finalidade especificamente religiosa da história bíblica (ex peculiari historiæ biblicæ fine, qui ad religionem pertinet).”
[34. Divino afflante Spiritu, EB 559.]
Noutras palavras, o Papa considera evidente que a finalidade religiosa da história bíblica, longe de tornar os autores humanos mais laxos ou indiferentes com relação a “meros fatos”, foi motivação suplementar para registrarem os fatos fielmente. A história escrita para Deus tinha de ser história escrita com a maior fidelidade possível! No parágrafo seguinte, quando Pio XII passa a frisar que o discernimento dos gêneros literários não pode ser preterido sem grande prejuízo para a exegese, a ilustração que ele fornece torna claríssimo o seu pensamento sobre este ponto: tal discernimento é essencial, não – como escutamos nos garantirem hoje – a fim de eximir os exegetas da tarefa de defender cada afirmação histórica específica na Escritura (o supostamente desatualizado “concordismo”), mas precisamente a fim de ajudá-los a desempenhar mais eficazmente essa tarefa:
“Com efeito – para dar somente um exemplo – não é incomum de acontecer que, quando determinados críticos acusam os autores sagrados de erro em alguma questão histórica, ou de terem relatado alguma coisa incorretamente, o alegado erro acaba se mostrando ser nada mais que um caso daquela maneira peculiar de falar ou de narrar que os antigos empregavam costumeiramente em seus modos refinados de intercambiar ideias, e que eram em verdade considerados legítimos no uso comum. …Assim, auxiliados por esse conhecimento e correta avaliação dessas antigas formas de falar e de escrever, será possível responder a muitas objeções lançadas contra a verdade e fiabilidade histórica das Divinas Letras (multa dissolvi poterunt, quæ contra Divinarum Litterarum veritatem fidemque historicam opponuntur). Não menos preciosos serão tais estudos como meio de chegar a um mais pleno e mais luminoso entendimento do pensamento dos escritores inspirados.”
[35. Ibid., EB 560.]
O Papa também mencionou, nesse contexto, “certas características típicas das linguagens semíticas, certas formas de expressão aproximadas, hiperbólicas, e por vezes mesmo paradoxais, que servem para inculcar mais profundamente na inteligência aquilo que se diz.” [36. Ibid., EB 559.] Isso tudo era tão não-revolucionário, que o Pe. Jean Levie sentiu-se constrangido a exprimir um certo desapontamento com a cautela do Papa:
“Há realmente na encíclica uma verdadeira desproporção entre a amplitude dos princípios fixados (la largeur des principes posés) – que afetam profundamente partes amplas e essenciais do Antigo Testamento – e a simplicidade ou mesmo banalidade dos exemplos aduzidos à guisa de ilustração (la simplicité, voire la banalité des exemples de-ci de-là allégués); sem dúvida esta página foi atentamente examinada e cuidadosamente retrabalhada – como era apropriado –, ao mesmo tempo que levando em conta várias opiniões, e com a preocupação de excluir de antemão toda interpretação excessiva (et avec le souci d’écarter d’avance toute interpretation excessive).”
[37. Levie, op. cit., pp. 787-788 (grifo adicionado).]
O Pe. Levie insinua aqui a opinião pessoal dele, de que o princípio dos gêneros literários tenha implicações mais radicais para a história no Antigo Testamento (hoje o Novo Testamento é tratado similarmente); ele é honesto o bastante para reconhecer, no entanto, que Pio XII, cuja mente é manifestada nas cautelosíssimas ilustrações desse princípio apresentadas na Divino afflante Spiritu, não está abrindo nenhuma nova porta nessa linha, e “de maneira nenhuma tenciona dar carta branca aos exegetas no que tange ao alcance e amplitude das aplicações.” [38. “…n’entend nullement donner carte blanche aux exégètes quant à l’étendue et à la largeur des applications” (ibid., p. 788).]
Não quer isto sugerir que Pio XII estivesse excluindo por completo a ideia de que passagens mais longas, ou mesmo livros inteiros, do Antigo Testamento (distintamente de meras palavras e frases aqui e ali) também pudessem ser demonstrados, à luz de sólida argumentação, pertencerem a um gênero menos estritamente histórico do que supuseram os comentadores clássicos. Mas o ponto que estamos salientando é o de que isso já tinha sido reconhecido como princípio pelo Magistério da Igreja desde 1905, e não era de maneira alguma uma inovação de Pio XII. O Pe. Alonso Schökel, por exemplo, em sua memorável enunciação de 1960 da tese revisionista [39. Cf. nota 4 acima.], sugeriu que uma das “novidades” agora capazes de entrar pela porta exegética graças à Divino afflante Spiritu era a permissão de questionar a historicidade plena e literal do Livro de Judite. Mas a refutação por Mons. Romeo fez notar que o gênero literário desse livro já fazia tempo que tinha sido reconhecido como obscuro e debatível por autores católicos aprovados, e que já em 1933 o renomado erudito bíblico G. Ricciotti “pôde escrever … com plena aprovação eclesiástica: ‘Hoje os estudiosos em todos os campos concordam nisto, como um mínimo, que o Livro de Judite não faz o menor sentido se o interpretamos literalmente.’” [40] [40 bis]
[40. Cf. Schökel, op. cit., p. 457, e Romeo, op. cit., pp. 434-435, n. 113 (citados nas notas 4 e 5 acima). Ricciotti referia-se indubitavelmente a fatos como, por exemplo, o de que o Livro de Judite retrata Nabucodonossor como rei da Assíria, vivendo em Níneve (1:1), quando na realidade ele foi Rei da Babilônia – e numa época em que Níneve já tinha sido destruída (em 612 a.C.) por seu pai, Nabopolasar. Além disso, Judite 4:3 e 5:19 afirmam que, no tempo em que se passaram os acontecimentos descritos no livro, os judeus já tinham retornado do exílio babilônico. Mas esse retorno foi, na realidade, quase um século depois da queda de Níneve. Esses fatos históricos elementares seguramente teriam sido conhecidos dos estudiosos antigos que admitiram Judite ao cânon, de modo que parece inteiramente plausível sustentar que certas discrepâncias notáveis com a história foram incluídas deliberadamente como artifício literário para informar aos leitores que o livro não se pretende história real, muito embora ele quase certamente tenha base histórica. O comentário sobre Judite em A. Jones (ed.), The Jerusalem Bible(New York: Doubleday & Co., 1966) afirma: “O autor parece ter deliberadamente atentado contra a história, para distrair do contexto histórico a atenção do leitor e focá-la exclusivamente no conflito religioso e seu resultado” (p. 603).]
[40 bis (N. do T.) – Sed contra, num manual bastante autorizado e posterior em uma década, lê-se (mantive a variação de tamanho de fonte do original):
“124. Autoridade histórica e origem do Livro de Judite
O Livro de Judite é verdadeiramente histórico; como tal, reconheceu-o toda a antiguidade, e o prova também claramente a índole da narração. Portanto, devem-se rechaçar as opiniões dos que dizem que é um fato histórico poeticamente embelezado, ou que toda a narração é forjada, ou que trata de coisa futura e não já realizada.
Segundo São Jerônimo, os próprios judeus, embora não contem este Livro em seu cânon, admitiram-no sem embargo entre os livros históricos. Por verdadeira história tiveram-no os Padres e Intérpretes até a Idade Média. Lutero foi o primeiro que perturbou esse unânime consenso, relegando esta narrativa às fábulas, e teve sequazes. O conjunto e os detalhes do relato provam também a tradição universal. Nenhuma das dificuldades aduzidas contra a veracidade dos fatos consignados neste Livro é concludente.
Entre as dificuldades históricas, a principal é a que se refere ao tempo em que se passaram estes acontecimentos. Contudo, na metade do século VII, ou seja no tempo em que Manassés estava cativo em Babilônia e também quando, apenas voltado da escravidão, não tinha ainda tomado as rédeas do governo, viu-se na Palestina e na Assíria aquele estado de coisas que é descrito no Livro de Judite. É hipótese provável (que resolve otimamente todas as dificuldades históricas) que com o nome de Nabucodonosor se designe a Assurbanipal, rei da Assíria, e que neste Livro se narrem as expedições com que Assurbanipal pretendeu reduzir à sua obediência os povos da Ásia, que dele se haviam apartado. Isso se deduz com grande verossimilhança dos descobrimentos assírios.
As dificuldades geográficas com que se quer impugnar a autoridade deste Livro provêm de os adversários não atentarem o bastante para a corrupção do texto atual e suporem que se descreva somente a expedição de Holofernes, ao passo que o autor distingue quatro expedições. Quão grande é a corrupção dos nomes geográficos, demonstram-no claramente as inúmeras diferenças entre os textos e códices, todavia os erros dos intérpretes, copistas e amanuenses não se devem atribuir ao autor. Contudo, apesar de todas essas corrupções, a narração se explica bem, contanto que se distingam quatro expedições de Holofernes. A última foi a que ele fez contra os judeus.
Nada seguro se pode dizer da origem do Livro de Judite. São Jerônimo o atribui a Judite. Outros a Eliaquim. Parece não carecer de verossimilhança a opinião dos que dizem ter sido escrito até o princípio do cativeiro de Babilônia, por um judeu da Palestina. Torna provável esta opinião o conhecimento exato dos lugares da Palestina que o autor revela na descrição de Betúlia. Dificilmente se pode definir em que tempo o autor viveu. A narração é tão viva e minuciosa, que a recordação dos fatos parece ter sido muito recente quanto estes foram escritos. No entanto, não foram escritos imediatamente depois de acontecidos, pois se recorda a morte de Judite (XVI, 25 ss.) e na Vulgata se fala também da descendência de Aquior (XIV, 6). Aderimos aos que sustentam que este Livro foi escrito uns cinquenta anos depois da libertação de Betúlia; nem rechaçamos a opinião dos que creem que o autor, para escrever este Livro, serviu-se dos comentários feitos por Aquior ou por algum outro que foi contemporâneo dos acontecimentos.”
(Pe. Luis MACCHI, Nociones de Sagrada Hermeneutica, o Introducción a los Libros Sagrados del Antiguo y Nuevo Testamento. Recopiladas sobre autores modernos y en conformidad con las respuestas de la Comisión Pontificia de “Re Biblica”. Segunda edición aumentada y corregida. Buenos Aires: S.E.I., 1943, pp. 194-196).
Acrescento ainda as seguintes precisões – a primeira, de caráter geral, sobre um princípio de exegese que parece pertinente ao caso; a segunda, sua aplicação a este caso –, tomadas ambas de um exegeta bastante insuspeito de “fundamentalismo”, antes pelo contrário…, mas, no trecho a seguir, deveras esclarecedor:
“CAPÍTULO IV: NOME E NÚMEROS NA SAGRADA ESCRITURA
[…] § 1.º A FILOSOFIA DO NOME […]
Será preciso, porém, referir ainda outra modalidade da ‘Filosofia do nome’ vigente entre os orientais, a qual também teve sua influência na redação de algumas passagens escriturísticas. Ei-la:
O nome de um indivíduo podia designar toda a linhagem do mesmo; as qualidades de um Patriarca prolongando-se na posteridade desse varão, o semita não via dificuldade em aplicar o nome do pai à coletividade dele descendente. Destarte é que ‘Israel, Jacó’ designam a nação eleita inteira em Is 41,8; ‘Esaú’ e ‘Jacó’ representam dois povos em Mal 1,2s; nos oráculos de Gên 49, os nomes dos filhos de Jacó significam ora uma pessoa, ora uma tribo; o autor sagrado transfere a sua atenção daquela a esta e vice-versa, sem o indicar expressamente. [CITA-SE EM NOTA: Gên 49,8.10-12.]
Os exegetas modernos explicam este modo de falar pela tendência dos orientais a pensar segundo categorias coletivas (pelo thinking in totalities, conforme os ingleses, o ganzheitliches Denken, conforme os alemães): os semitas costumavam julgar um indivíduo em função do todo a que pertencia. [3. Veja-se a respeito B. J. Le Frois, “Semitic Totality Thinking”, em The Catholic Biblical Quarterly, XVII (1955) 2,315-323.] Na raiz deste fenômeno parece estar a chamada ‘lei da participação’, vigente entre os povos antigos, lei em virtude da qual se admitia a comunicação de qualidades da parte ao todo e do todo à parte, [4. Cf. W. Robinson, “The Hebrew Conception of Corporate Personality”, em Beiheft zur Zeitschrift fuer alttestamentliche Wissenschaft, 66 (1936), 53-56.] de sorte que a pessoa que nomeava um indivíduo se podia estar referindo a toda uma coletividade e vice-versa.
[…] Fenômeno semelhante se verifica em alguns salmos: toda a coletividade de Israel aí aparece como que concentrada na pessoa do seu rei. Este representa o povo, não como simples lugar-tenente, mas como se ‘o povo inteiro nele estivesse, e ele, por sua vez, fosse o povo’ [5. Le Frois, art. cit., 318.] (cf. Sl 59; 107; 137; 143).
Em conclusão: será necessário recorrer à ideologia particular dos semitas para interpretar, ao menos em muitos casos, o significado que toca ao nome nas páginas da Sagrada Escritura. Também este aspecto da mentalidade oriental foi utilizado pelo Espírito Santo para exprimir a mensagem perene da Palavra de Deus!”
(D. Estêvão BETTENCOURT, O.S.B., Para Entender o Antigo Testamento, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1959, p. 64-65).
Nessa Introdução ao A.T., Dom Estêvão não trata especificamente do emprego do nome “Nabucodonosor” no Livro de Judite; faz exatamente isso, porém, na sua tradução anotada deste Livro sagrado:
“À luz desta interpretação, o nome de Nabucodonosor, por exemplo, não designaria o famoso rei da Babilônia, mas apenas um tipo, o tipo do rei ímpio, hostil em qualquer tempo ao povo de Deus.”
(A Santa Bíblia, tradução feita dos originais sob os auspícios da Liga de Estudos Bíblicos. Tobias, Judite e Ester, Tradução, Introdução e Notas de D. Estêvão BETTENCOURT, O. S. B., Rio de Janeiro: Agir, 1955, p. 76)
De resto, a explicação geral proposta na Introdução ao Livro de Judite pelo pranteado beneditino parece menos confiável que a do Pe. Macchi acima citada; sem embargo, vale notar a divergência entre os dois sobre a identificação do “Nabucodonosor” (hoje se diria talvez, aproximadamente, do “Stalin” ou “Hitler”) cuja ação é relatada no Livro de Judite, e portanto também da respectiva “Níneve”:
“Suposta a identificação de Nabucodonosor com Artaxerxes III Ocos (359/8–338), rei da Pérsia (cf. Introdução, pág. 76), o ano duodécimo do seu reinado seria 347/6 a.C.; Nínive corresponderia a uma das capitais persas: Persépolis ou Susa”
(op. cit., nota 1 ao Livro de Judite, p. 81).
*** FIM DA NOTA DO TRADUTOR *** ]
Que Pio XII não ensinou nada de “revolucionário” em sua encíclica de 1943 é também confirmado pelo comentário mais bem informado sobre a Divino afflante Spiritu que já foi publicado, a saber, o artigo do Padre (mais tarde Cardeal) Agostinho Bea publicado em La Civiltà Cattolica na mesma edição que a versão italiana da encíclica mesma, sendo assim claramente apresentado como um comentário autoritativo. [41. Cf. A. Bea, “L’enciclica ‘Divino afflante Spiritu’”, La Civiltà Cattolica, N.º IV, cad. 2242, 10 de novembro de 1943, pp. 212-224.] É probabilíssimo que o próprio Papa tenha lido o artigo do Pe. Bea antes de ser publicado. Era este último, na época, o Reitor do Pontifício Instituto Bíblico, e estava em contato pessoal constante com Pio XII, em virtude de ser seu confessor regular. Além disso, não era segredo em Roma que ele tinha sido o principal estudioso bíblico cuja assistência o Pontífice procurara na preparação e redação de seu novo documento sobre a Escritura.
Ninguém, portanto, estava melhor situado do que o Pe. Bea para conhecer e explicar que finalidades o Papa tinha em mente ao promulgar a Divino afflante Spiritu. Ele não deu o menor indício, porém, de que Pio XII tivesse intenção alguma de “abrir portas” que até então o Magistério mantivesse fechadas aos exegetas católicos. Pelo contrário, Bea começou seu artigo afirmando vincadamente que a Providentissimus Deus, cujo 50.º aniversário foi ocasião para a nova encíclica, “fixou para sempre as linhas fundamentais dos estudos bíblicos na Igreja Católica”. [42. “…fissò per sempre le linee fondamentali dello studio biblico nella Chiesa cattolica” (ibid., p. 212).]
O comentário de Bea é basicamente uma retrospectiva do progresso feito, no último meio século, no seguimento destas “linhas fundamentais”, e frisa que a principal diferença entre a Divino afflante Spiritu e a grande encíclica de Leão XIII é de ênfase e de tom. O novo documento, Bea observa, é efetivamente mais sereno e menos apologético em seu tom que a Providentissimus, precisamente porque os princípios estipulados pelo Papa Leão, para defender as Escrituras contra o ataque racionalista do século dezenove, foram desde então implementados fielmente e frutuosamente por uma geração ou mais de estudos eruditos, sob a vigilância do Magistério. Agora que tantas objeções antigas e novas à verdade da Escritura foram assim eficazmente respondidas, Pio XII estima oportuno confirmar esse progresso dos últimos cinquenta anos, e sublinhar a importância dos recentes progressos científicos (na crítica textual, na arqueologia, na linguística e no conhecimento das formas literárias antigas próximo-orientais) não só por seu valor na defesa da inerrância bíblica, mas agora mais positivamente como meio de entender os textos sagrados com maior profundidade. [43. Cf. ibid., pp. 216-217.]
Longe de proporcionar qualquer respaldo à visão hoje convencional, segundo a qual Pio XII é pintado como um proto-liberal “principalmente” ou “primordialmente” preocupado em combater a horrível ameaça à exegese “crítica-científica” representada pelo obscurantismo “ultraconservador” e “fundamentalista”, Bea dedica apenas meia página comentando as breves advertências da encíclica acerca de uma falsa leitura “mística” da Escritura, e simplesmente menciona de passagem, sem comentário, a admoestação do Papa contra a suspeita, por excesso de zelo, de tudo que for novo.[44]Equivale isto a apenas 5% de suas treze páginas de comentário. Bea conclui seu artigo com palavras que, frisando a continuidade da Divino afflante Spiritu com o ensinamento imutável dos precedentes Sucessores de Pedro, apresentam a encíclica de modo inconfundível como um documento decididamente não-revolucionário. Ele afirma que “a doutrina dela certamente entrará na série daqueles documentos pontifícios que continuarão sendo, para sempre, guia e norma do ensinamento bíblico.”[45]
[44. Cf. ibid., pp. 220-221. O Pe. Jean Levie, que ninguém acusará de ter estado do lado conservador da erudição bíblica, também reconheceu, em seu artigo de 1946, que o recente ataque do Pe. Ruotolo contra a exegese científica aprovada não tinha paralelos significativos fora da Itália e não era um fato maior a motivar a encíclica de Pio XII. Escreveu ele: “…este incidente local não foi motivação essencial para a publicação da encíclica Divino afflante Spiritu (ce n’est pas cet incident local qui a motivé, pour l’essential, la publication de l’encyclique ‘Divino afflante Spiritu’).” Op. cit. (Parte I), p. 652.]
[45. “…entrerà certamente nella serie di quei documenti pontifici, che rimarranno per sempre guida e norma dell’insegnamento biblico” (Bea, op. cit., p. 224).]
Alguém poderia querer argumentar que a publicação da Divino afflante Spiritu em 1943, considerada como evento histórico dentro de uma corrente contínua de causas e efeitos, mostrou-se, durante os anos subsequentes, um fator importante favorecedor de uma circulação enormemente mais ampla de teorias bíblicas radicais, como a da crítica das formas e outras, do que jamais fora possível na Igreja Católica antes da II Guerra Mundial. Semelhantemente, é não somente argumentável, mas inegável, que o Concílio Vaticano II foi, de facto, a ocasião histórica para um enorme relaxamento da disciplina da Igreja e para um pluralismo radical de teses doutrinais, de práticas litúrgicas e de estilos de vida eclesiais, coisa inaudita antes do Concílio. Mas assim como isso não prova de maneira alguma que um tal estado de coisas fosse aquele almejado e objetivamente inculcado pelos Padres Conciliares em seus dezesseis documentos magisteriais, assim também os efeitos históricos da Divino afflante Spiritu – seja lá o que a investigação cuidadosa possa revelar terem sido eles – não podem simplesmente, em razão de sua ocorrência de facto, ser objeto da presunção de que reflitam fielmente o ensinamento objetivo dessa encíclica.
Agora, a tese sustentada no presente estudo é que, se quaisquer tendências “revolucionárias” na exegese católica do pós-guerra foram em parte causadas pela Divino afflante Spiritu, elas não foram, de absolutamente modo nenhum, justificadas por essa encíclica, mas pelo contrário, resultaram de interpretações seletivas e abusivas dela. Mas a tese revisionista, comumente apresentada pelos estudiosos bíblicos modernos, é precisamente o oposto da nossa: tais estudiosos mantêm que o tipo de crítica totalizante que eles hoje aplicam tanto ao Antigo como ao Novo Testamento – realmente “revolucionária”, quando comparada à exegese católica tradicional que predominou até pouco mais que a metade do século [vinte] – é, na realidade, aplicação perfeitamente fiel ou resultado lógico dos princípios hermenêuticos conscientemente estipulados por Pio XII, o qual, se nos diz, cientemente permitiu – e até mesmo mandou! – aquilo que os Papas anteriores, como Bento XV, tinham proibido. O Pe. Raymond Brown, por exemplo, dá um jeito de encontrar no ensinamento de Pio XII uma seca contradição à posição de seus predecessores: se nos diz que o pontificado dele viu “uma completa reviravolta de atitude” por parte do Magistério, dado que a Divino afflante Spiritu “instruiu os estudiosos católicos a usar os métodos da crítica bíblica científica que até então lhes tinham sido proibidos.” [46. Brown, op. cit., p. 4.]
Deve estar claro, com base nas evidências documentais já aduzidas, que todas essas interpretações interesseiras da encíclica são flagrantemente não-históricas. Deixemos que o próprio Pio XII tenha a palavra final a esse respeito. Apenas sete anos depois da Divino afflante Spiritu, a encíclica dele sobre os erros contemporâneos em teologia e exegese fustigou, entre outras coisas, aquelas correntes acadêmicas que minimizavam ou restringiam a inerrância bíblica, depreciavam as aprovadas interpretações patrísticas e eclesiais da Escritura, e abandonavam a tentativa mesma de defender a verdade do sentido literal da história no Antigo Testamento. [47. Cf. Encíclica Humani generis (12 de agosto de 1950), EB 613.] Tendo chamado a atenção para estas opiniões – e elas são basicamente iguais às que são hoje propagadas em nome da Divino afflante Spiritu! – o Papa continuou:
“Todos podem ver quão longe essas opiniões se afastam dos princípios e normas hermenêuticas justamente estabelecidos por Nossos predecessores de feliz memória, Leão XIII na encíclica Providentissimus Deus, Bento XV na encíclica Spiritus Paraclitus, e em Nossa própria encíclica Divino afflante Spiritu.”
[48. Encíclica Humani generis (12 de agosto de 1950), EB 613.]
Trad. por Felipe Coelho de: “Was Spiritus Paraclitus Rendered Obsolete By Divino Afflante Spiritu?”, in: rev. Living Tradition, n.º 60, set. 1995.
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