A FANTÁSTICA TEOLOGIA DO PADRE GREGORY HESSE

ALGUMAS OBSERVAÇÕES PERTINENTES

Novus Ordo Watch
2024

O “Padre” austríaco Gregorius D. Hesse (1953-2006) era uma espécie peculiar de tradicionalista de Viena. De algum modo, ele sempre conseguia soar convincente ao apresentar ideias teológicas pouco convencionais que, em geral, eram exclusivas dele. Ele e sua torcida devota consideravam sua teologia como um exemplo de “catolicismo tradicional”, por óbvio, e sua base de fãs a “devorava” (caso recente em questão: Kennedy Hall).

Conquanto Hesse fosse popular entre muitos lefebvristas e tradicionalistas ligados à FSSPX, também é verdade que nem todos nesse meio apreciavam suas posições amiúde extremas ou a maneira como ele as defendia. Uma de suas últimas ideias estranhas antes de sua morte prematura foi a de que o Vaticano II não era de fato um concílio ecumênico – ao mesmo tempo em que insistia, é claro, que João XXIII, que convocou o concílio, e Paulo VI, que o ratificou solenemente, teriam sido verdadeiros papas. (O fato de ele ter chamado Paulo VI de herege e ter se referido à Igreja do Vaticano II como uma “igreja falsificada” não tornou as coisas melhores).

Um breve histórico da vida de Gregory Hesse

Quanto à sua personalidade, o Rev. Hesse tinha muito para impressionar o coração tradicionalista.

Primeiramente e acima de tudo, destaca-se sua formação educacional, juntamente com seu emprego no Vaticano. Hesse estudou em Roma e foi ordenado no rito duvidoso do Novus Ordo pelo Arcebispo Aurelio Sabattani (1912-2003) na Basílica de São Pedro, no Vaticano, em 21 de novembro de 1981.

Iniciando em 1986, ele trabalhou como secretário do “Cardeal” Alfons Maria Stickler (1910-2007), que era o chefe da Biblioteca e Arquivo Secreto do Vaticano. Após a aposentadoria de Stickler em 1988, Hesse continuou a trabalhar para o Arquivo Secreto do Vaticano até 1991, época em que recebeu o doutorado em Sacra Teologia e Direito Canônico do Angelicum (Pontifícia Universidade de Santo Tomás de Aquino) em Roma. Depois disso, ele se afastou da Igreja do Vaticano II e voltou para Viena, onde trabalhou como tradutor freelancer. Ele também começou a viajar pela Europa dando conferências sobre matérias teológicas e eclesiásticas. (Essas informações foram obtidas no site Gregorius-Hesse.at.)

Em segundo lugar, estão as preferências e peculiaridades individuais de Hesse que chamavam a atenção: Seu belo traje tradicional com todos os apitos e sinos, a aura de autoridade que ele exalava, sua personalidade excêntrica, sua retórica articulada, seu conhecimento de latim, sua refinada erudição (ao menos aparentemente), o fato de ter dois títulos de doutorado no Angelicum… O que mais se poderia desejar? Com efeito, pode-se suspeitar que, se Hesse não fosse uma pessoa tão extravagante – ele bebia vinho abertamente como se fosse água –, suas ideias talvez nunca tivessem encontrado tanta força logo de início.

A tese doutoral de Hesse de 1991, “An Introduction to the Theology of Gilbert Keith Chesterton”, foi recentemente publicada em formato de livro e vem com um prefácio do apologista da FSSPX e vendedor de óleo de barba Kennedy Hall – talvez um indicativo de que o renome de Hesse está prestes a voltar ao mundo do tradicionalismo RR, e com ele, é claro, sua perigosa teologia pseudo-tradicionalista.

Vejamos alguns exemplos concretos para ilustrar o absurdo de algumas das argumentações teológicas do Padre Hesse.

O Rito de Ordenação Novus Ordo – Ilícito, mas Válido?

Em 12 de novembro de 2000, Hesse deu uma conferência de duas horas intitulada “Quo Primum and the Validity of the Novus Ordo Sacraments” (Quo Primum e a Validade dos Sacramentos do Novus Ordo).

Embora Hesse faça uma apresentação muito confiante, muitos de seus argumentos não resistem a um exame crítico, como mostraremos a seguir.

Resumidamente, a posição que Hesse apresenta na conferência citada acima é que o rito de ordenação Novus Ordo de 1968 de Paulo VI (no qual ele foi ordenado) é definitivamente válido porque, a despeito de a forma essencial usada no rito omitir uma das palavras essenciais decretadas pelo Papa Pio XII como necessárias para a validade (na Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis), já que Pio XII estava legislando os requisitos para o rito latino/romano de ordenação, e o rito de ordenação de Paulo VI deve ser considerado um rito não-católico/cismático, não obstante Paulo VI ter sido um verdadeiro Papa. Ritos cismáticos como esse devem ser avaliados segundo os critérios da bula Apostolicae Curae do Papa Leão XIII sobre as ordens anglicanas e, de acordo com esses critérios, argumenta Hesse, o rito é válido.

Não se pode inventar esse tipo de coisa!

Se supormos por um minuto que Paulo VI foi um Papa autêntico, como Hesse insiste que foi, então seus documentos magisteriais eram legalmente eficazes, ou seja, tinham o poder de vincular as consciências. Sendo assim, o que ele ensinou ou legislou na terra também foi “ligado no céu” (Mt. 16, 18), ou seja, ratificado por Deus Todo-Poderoso. É dessa forma que o papado funciona, e isso por instituição divina.

Portanto, se Paulo VI foi de fato o Vigário de Cristo e o Sumo Pontífice da Santa Igreja Católica Romana, então o rito de ordenação que ele promulgou em 1968 foi exatamente o que ele decretou que fosse, ou seja, uma reforma do rito romano de ordenação utilizado anteriormente e não o estabelecimento de um novo rito não-católico (herético/cismático):

A reforma do Pontifical Romano não só é prescrita de um modo geral pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, mas também é regulamentada por normas particulares com que o mesmo Sagrado Concílio mandou alterar os ritos “quer quanto às cerimónias quer quanto aos textos”.
(…) Na reforma do rito das sagradas Ordenações, além dos princípios gerais por que se há de reger toda a renovação da Liturgia, de acordo com o preceituado pelo Concílio Vaticano II, deve dar-se maior atenção à doutrina sobre a natureza e os efeitos do Sacramento da Ordem exposta pelo mesmo Concílio na Constituição sobre a Igreja.
Na reforma do rito foi necessário proceder a adições, supressões ou mudanças, quer para restituir aos textos a fidelidade original, quer para tornar mais clara a doutrina, quer ainda para manifestar melhor os efeitos do Sacramento. Por isso, para acabar com todas as controvérsias e para obstar as ansiedades das consciências, julgamos dever declarar quais os elementos que devem ser considerados essenciais no rito agora reformado.
(…) Com a Nossa Autoridade Apostólica aprovamos este rito da colação das Ordens sacras do Diaconato, Presbiterado e Episcopado, que foi reformado pelo Consilium para a execução da Constituição sobre a Sagrada Liturgia com o auxílio de peritos e o conselho de Bispos das diversas partes do mundo, para que, no futuro, seja usado em vez do rito até agora existente no Pontifical Romano.
Queremos que estas Nossas determinações e prescrições tenham valor e eficácia agora e no futuro, não obstante, se for caso disso, as Constituições e as Ordenações Apostólicas dos Nossos predecessores, bem como quaisquer outras prescrições mesmo que sejam dignas de menção ou derrogação especial.  (Antipapa Paulo VI, ‘Constituição Apostólica’ Pontificalis Romani, 18 de junho de 1968 [itálico nosso])

Não é necessário ser um gênio para entender o que Paulo VI fez nessa constituição “apostólica”. Ele pegou o rito romano de ordenação e o reformou, com as novas rubricas substituindo o que estava em vigor antes, até o ponto de abolir toda e qualquer legislação anterior que pudesse ser contrária a essas novas rubricas, o que incluiria a Sacramentum Ordinis do Papa Pio XII.

Portanto, se Paulo VI era Papa, então sua legislação tinha o poder de efetivar exatamente o que ele decretou. Por conseguinte, Hesse não pode absolutamente argumentar que Paulo VI estava instituindo um novo rito não-católico, e não legislando sobre o rito latino/romano. Não, foi o rito romano que ele modificou.

O mesmo se aplica ao “novo Ordo da Missa” (novus Ordo Missae) que Paulo VI instituiu em 1969. Também foi uma “reforma do Missal Romano” (“Constituição Apostólica” Missale Romanum) e não o estabelecimento de um novo rito não-católico, se estivermos admitindo Paulo VI como Papa. (O fato de que, obviamente, foi um rito maligno e não-católico da Missa que ele instituiu somente pode ser explicado sob a suposição de que ele não era um verdadeiro Papa. Eis a questão).

Hesse pode discordar da legislação de Paulo VI, mas isso simplesmente não importa. Afinal de contas, a legislação do Vigário de Cristo não está sujeita à revisão ou confirmação de ninguém, e as “Constituições Apostólicas” de Paulo VI incluíam as seguintes palavras solenes que dão aos documentos força de lei.

Aqui, novamente, está o que o “Vigário de Cristo” declarou em seu documento de reforma dos ritos de ordenação:

Queremos que estas Nossas determinações e prescrições tenham valor e eficácia agora e no futuro, não obstante, se for caso disso, as Constituições e as Ordenações Apostólicas dos Nossos predecessores, bem como quaisquer outras prescrições mesmo que sejam dignas de menção ou derrogação especial.  (Antipapa Paulo VI, Pontificalis Romani)

O mesmo tipo de linguagem foi utilizado para a instituição do “novo Ordo da Missa”:

O que prescrevemos por esta nossa Constituição entrará em vigor este ano, a partir do dia 30 de novembro, primeiro domingo do Advento.
Tudo o que aqui estabelecemos e ordenamos queremos que seja válido e eficaz, agora e no futuro, não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais. (Antipapa Paulo VI, ‘Constituição Apostólica’ Missale Romanum, 3 de abril de 1969)

O que Hesse está argumentando, na verdade, é que essas palavras do “Vigário de Cristo” são uma mentira, não têm valor, não vinculam ninguém e devem ser rejeitadas, ao que parece, sob pena de cisma. Pergunte-se o que isso significaria.

Isso significaria que um católico não pode mais aceitar a legislação pontifícia e outros atos de ensino ou governança da Igreja pelo valor aparente, mas deve primeiro passar tudo por um obscuro clérigo errante de Viena para ver se é algo bom – e, agora que ele faleceu, deve encontrar outro clérigo de sua escolha (mas não, é claro, o Papa!). Isso é um absurdo! Pouco importa que o cargo eclesiástico mais alto que Hesse já ocupou foi o de secretário de um arquivista e bibliotecário no Vaticano, e que muitos de seus argumentos não são compartilhados por outros teólogos.

Aqui vemos uma das ideias galicanas do tipo RR em operação: Praticamente qualquer um pode se sobrepor ao Papa, desde que o que ele diga pareça convincente e justifique o que os tradicionalistas já acreditam e querem ver confirmado. Porém, não é assim que o catolicismo funciona em absoluto:

Como o Romano Pontífice governa a Igreja Universal em virtude do direito divino do primado apostólico, também ensinamos e declaramos que ele é o juiz supremo de todos os fiéis, podendo-se, em todas as coisas pertencentes ao foro eclesiástico, recorrer ao seu juízo; [declaramos] também que a ninguém é lícito emitir juízo acerca do julgamento desta Santa Sé, nem tocar neste julgamento, visto que não há autoridade acima da mesma Santa Sé. Por isso, estão fora do reto caminho da verdade os que afirmam ser lícito apelar da sentença dos Romanos Pontífices para o Concílio Ecumênico, como sendo uma autoridade acima do Romano Pontífice.
Se, pois alguém disser que ao Romano Pontífice cabe apenas o ofício de inspeção ou direção, mas não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja, espalhada por todo o mundo; ou disser que ele só goza da parte principal deste supremo poder, e não de toda a sua plenitude; ou disser que este seu poder não é ordinário e imediato, quer sobre todas e cada uma das igrejas quer sobre todos e cada um dos pastores e fiéis: seja anátema. (Concílio do Vaticano, Constituição Dogmática Pastor Aeternus, Cap. III [itálico nosso])
“Quando alguém ama o Papa, não para para debater sobre o que ele aconselha ou exige, para perguntar até onde vai o estrito dever de obediência e para marcar o limite desta obrigação. Quando alguém ama o Papa, não objeta que ele não falou claro o bastante, como se ele fosse obrigado a repetir no ouvido de cada indivíduo a vontade dele, tão frequentemente enunciada claramente, não só de viva voz, mas também por meio de cartas e outros documentos públicos; não põem em dúvida as ordens dele sob o pretexto – facilmente invocado por todo o mundo que não quer obedecer – de que elas não emanam diretamente dele, mas dos que o rodeiam; não limita o campo no qual ele pode e deve exercer a vontade dele; não opõe, à autoridade do Papa, a de outras pessoas, não importa o quão cultas, que diferem de opinião com o Papa. Ademais, não importa o quão vasta é a ciência deles, falta-lhes santidade, pois não pode haver santidade onde há desacordo com o Papa.” (Papa São Pio X, Discurso aos Sacerdotes da União Apostólica, 18 de novembro de 1912; em Acta Apostolicae Sedis 4 [1912], p. 695; excerto extraído de Papal Teachings: The Church, n. 752)

Por ocasião da canonização do Papa Pio X em 1954, o Papa Pio XII se dirigiu à assembleia de cardeais e os lembrou de quem são os legítimos mestres na Igreja Católica e de como eles devem estar sujeitos ao Papa e não podem exercer sua função docente de modo independente do Romano Pontífice:

Com exceção dos legítimos sucessores dos Apóstolos, isto é, o Romano Pontífice para a Igreja universal e os Bispos para os fiéis confiados aos seus cuidados (cf. cân. 1326), não há outros mestres divinamente constituídos na Igreja de Cristo. Porém, tanto os Bispos como, primordialmente, o Mestre supremo e Vigário de Cristo na terra, podem associar outros a si mesmos em seu trabalho de mestre e recorrer a seus conselhos; delegam-lhes a faculdade de ensinar, seja por concessão especial, seja conferindo-lhes um ofício ao qual a faculdade está ligada (cf. cân. 1328). Aqueles que são assim chamados ensinam não em seu próprio nome, nem em virtude de seus conhecimentos teológicos, mas em virtude do mandato que receberam da legítima Autoridade Docente. Sua faculdade permanece sempre sujeita a essa Autoridade, e nunca é exercida por direito próprio ou de modo independente.
(…) Quanto aos leigos, é evidente que eles podem ser convidados por mestres legítimos e aceitos como cooperadores na defesa da fé. (…) No entanto, todos esses apóstolos leigos devem estar e permanecer sob a autoridade, a liderança e a vigilância daqueles que, por instituição divina, foram estabelecidos como mestres da Igreja de Cristo. Em matérias que envolvem a salvação de almas, não há autoridade docente na Igreja que não esteja sujeita a tal autoridade e vigilância. (Papa Pio XII, Alocução Si Diligis, 31 de maio de 1954 [itálico nosso])

Simplesmente não há margem para a ideia de Hesse quanto a declarar que as leis litúrgicas do (suposto) Papa são cismáticas e não-católicas.

Lamentavelmente, este era o estado do tradicionalismo RR há mais de 20 anos, e a situação não é melhor hoje.

Pode um verdadeiro Papa alterar a Missa?

Em 1547, o Concílio de Trento emitiu um documento doutrinário acerca dos sacramentos em geral. Entre outros, ele continha o seguinte anátema:

Se alguém disser que os ritos aceitos e aprovados pela Igreja Católica, que costumam ser usados na administração solene dos sacramentos, podem ser desprezados ou sem pecado omitidos a bel-prazer pelos ministros, ou mudados em novos por qualquer pastor de igrejas: seja anátema. (Concílio de Trento, Sessão VII, Cânon 13; Denz. 856 [itálico nosso])

Em sua conferência, Hesse afirma que esse cânone vincula até mesmo o Papa e, portanto, o novus Ordo Missae de Paulo VI foi inválido pelo fato de ele ter agido contrariamente a esse decreto infalível de Trento.

Mas será que “qualquer pastor de igrejas” inclui o próprio Papa? Não, por óbvio:

(…) somente o Sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer quaisquer práxis do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles que julgar devem ser mudados; os bispos têm o direito e o dever de vigiar diligentemente para que as prescrições dos sagrados cânones relativamente ao culto divino sejam pontualmente observadas. Não é possível deixar ao arbítrio dos particulares, ainda que sejam membros do clero, as coisas santas e venerandas relativas à vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do sacerdócio de Jesus Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima Trindade, ao Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à salvação dos homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste campo ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a própria integridade da fé católica. (Papa Pio XII, Encíclica Mediator Dei, n.º 58 [itálico nosso])

O Papa, como é evidente, não é simplesmente “qualquer pastor de igrejas”, mas o Pastor Supremo da Igreja Universal, e não há realmente nenhuma razão para que o Papa não possa, tenha permissão ou seja suficientemente competente para fazer mudanças nos ritos litúrgicos da Igreja. A assistência divina ao papado garante que tais mudanças nunca serão em si mesmas prejudiciais, perigosas, heréticas ou de algum modo ímpias – o contrário foi condenado pelo Papa Pio VI em sua bula Auctorem Fidei (cf. Denz. 1578; cf. também Pio XII, Encíclica Mystici Corporis, n.º 66). Portanto, a única conclusão razoável é que Paulo VI não poderia ter sido um verdadeiro Papa.

Hesse afirma que a palavra latina usada por Trento para “qualquer [pastor que seja]” é quiscumque, mas isso não é apenas factualmente incorreto – a palavra usada por Trento é quemcumque, o que qualquer um pode verificar aqui –, a palavra quiscumque nem mesmo existe na língua latina (uma palavra semelhante, quicumque, existe; talvez seja isso que ele quis dizer). Tampouco é verdadeira a alegação de Hesse de que a palavra empregada por Trento tem apenas uma única tradução possível. (Consultamos um especialista em latim eclesiástico quanto a tudo isso.) Por isso, com relação a Trento, Hesse não está errado apenas uma vez, mas triplamente.

O teólogo americano Monsenhor Joseph Clifford Fenton (1906-1969), um anti-modernista ferrenho, também não sabia que Trento supostamente proibia até mesmo o Papa de mudar os ritos litúrgicos, já que ele escreveu pouco antes do início do Vaticano II que o concílio “pode mudar de forma significativa o ritual da Missa” (“The Virtue of Prudence and the Success of the Second Ecumenical Vatican Council”, American Ecclesiastical Review 147 [outubro de 1962], p. 263).

Hesse tenta fortalecer seu argumento de que nem mesmo um papa poderia mudar o que hoje é conhecido como a Missa Tradicional em Latim (“Tridentina”) pelo fato de o papa São Pio V, em sua bula Quo Primum, publicada em 1570, ter decretado que sua legislação seria obrigatória “perpetuamente”:

Ademais, em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo conteúdo da presente Bula, concedemos e damos o seguinte indulto: que doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição, seguir este Missal com a permissão e o poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem incorrer em nenhuma pena, sentença ou censura, e isso perpetuamente. Da mesma forma, decretamos e declaramos que os prelados, administradores, cônegos, capelães e todos os outros sacerdotes seculares, designados com qualquer denominação, ou regulares, de qualquer ordem, não são obrigados a celebrar a Missa de qualquer outra forma que não seja a ordenada por Nós; nem são coagidos e forçados, por quem quer que seja, a modificar o presente Missal, e a presente Bula nunca poderá, em tempo algum, ser revogada ou modificada, mas permanecerá sempre firme e válida, em toda a sua força. Não obstante todas as decisões contrárias anteriores e costumes de qualquer tipo: Constituições e Ordenações Apostólicas, ou Constituições e Ordenações, tanto gerais quanto especiais, publicadas em concílios provinciais e sinodais; não obstante também o uso das igrejas acima mencionadas, mesmo que autorizado por uma prescrição bastante longa e imemorial, mas que não remonta a mais de 200 anos. 
(…) Portanto, que a ninguém absolutamente seja permitido infringir ou, por temerária audácia, se opor à presente disposição de nossa permissão, estatuto, ordenação, mandato, preceito, concessão, indulto, declaração, vontade, decreto e proibição. Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na ira de Deus Todo-poderoso e dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.  (Papa Pio V, Constituição Apostólica Quo Primum, 14 de julho de 1570 [itálico nosso])

Este argumento baseado na Quo Primum ainda é muito popular em nossos dias, mas é demonstradamente falso.

Na legislação pontifícia de caráter disciplinar, a expressão “perpetuamente” significa apenas que a lei que está sendo imposta não tem “data de validade”, por assim dizer – não significa que ela nunca poderá ser alterada ou rescindida pela autoridade competente, ou seja, por outro (ou até pelo mesmo) Papa. No caso da Quo Primum, a cláusula “perpetuamente” significa somente que a constituição tem efeito até que um futuro Papa a altere.

Isso difere essencialmente da definição de um dogma, a qual não pode ser modificada ou revogada por nenhum Papa depois de ter sido feita; porém, o dogma se refere ao que deve ser crido, enquanto a disciplina se refere ao que deve ser feito. E sim, a sacra liturgia se enquadra na categoria de disciplina (cf. Pio XII, Mediator Dei, n.º 53, 124).

Para provar isso em maior grau, vejamos um exemplo concreto da história da Igreja em que algo foi decretado pelo papa como válido “perpetuamente”, mas que foi alterado algumas décadas depois: a supressão da Companhia de Jesus (ordem jesuíta).

Quando o Papa Clemente XIV suprimiu os jesuítas em 1773, ele emitiu um decreto no qual declarava que essa supressão seria “perpetuamente válida” (perpetuoque validas) e ordenou que fosse “inviolavelmente observada por todos e cada um dos homens a quem ela diz respeito e por qualquer um a quem ela diga respeito no futuro” (Papa Clemente XIV, Bula Dominus Ac Redemptor, p. XXIX).

Essa linguagem bastante clara e contundente não impediu que o sucessor de Clemente, o Papa Pio VII, rescindisse a supressão e restabelecesse a ordem jesuíta em 7 de agosto de 1814, declarando que quem ousasse contrariar seu decreto “incorreria na ira de Deus Todo-Poderoso e dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo” (cf. Papa Pio VII, Decreto Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, p. 14). Sendo assim, no caso dos jesuítas, o “perpetuamente” durou apenas cerca de 41 anos.

Dessa maneira, podemos ver que o argumento de Hesse de que todos os papas verdadeiros estão vinculados para sempre à Quo Primum de São Pio V é simplesmente falso.

Na verdade, não é difícil verificar quão errada é a afirmação de Hesse sobre o fato de o papa supostamente não ter permissão para alterar os ritos sacramentais. Tudo o que é necessário é que a pessoa se dê ao trabalho de realmente pesquisar. Isso é muito mais fácil hoje do que era décadas atrás, mas isso não é relevante para a questão.

No popular manual Fundamentals of Catholic Dogma, o Padre Ludwig Ott observa:

Deve-se distinguir dos ritos essenciais dos Sacramentos baseados na ordenança Divina os ritos, cerimônias e orações acidentais que, com o passar do tempo, tornaram-se correntes por costume ou por prescrição positiva da Igreja, e que têm o propósito de representar simbolicamente a operação sacramental da graça, de expressar a dignidade e a sublimidade dos Sacramentos, de satisfazer a necessidade do homem por formas externas de culto e de prepará-lo para a recepção da graça. (Rev. Dr. Ludwig Ott, Fundamentals of Catholic Dogma [1954; reimpresso pela TAN Books, 1974], p. 338)

Com essa distinção em mente, podemos nos voltar para o próprio Concílio de Trento que Hesse elencou em apoio à sua tese aberrante:

Ademais, declara [este sagrado Concílio] que a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares. Isto parece ter insinuado claramente o Apóstolo com estas palavras: Assim nos considere o homem como ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus (1Cor. 4, 1). E consta claramente que ele mesmo usou deste poder, tanto em relação a este sacramento, como em se tratando de muitas outras coisas, pois, após ordenar algumas coisas a respeito de seu uso, diz: O resto disporei quando vier (1Cor. 1, 34). (Concílio de Trento, Sessão XXI, Cap. II; Denz. 931 [itálico nosso])

Não importa o quão autorizado ou convincente ele possa ter soado, em um exame mais detalhado, a argumentação de Hesse entra em colapso.

Infelizmente para o Padre Hesse, todas essas evidências, que incluem uma refutação abrangente de sua ideia de que o Concílio de Trento e o Papa São Pio V vincularam todos os futuros papas a se absterem de fazer quaisquer mudanças (exceto as menores) nos ritos sacramentais e litúrgicos da Igreja, destroem toda a base para sua alegação de que o novo rito de ordenação de 1968 é um rito cismático e não-católico dado por um verdadeiro papa. Porém, isso, por sua vez, foi o sustento essencial para a alegação de Hesse de que sua própria ordenação em 1981 era válida, sob a justificativa de que a Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis de Pio XII, que a tornaria duvidosa, só se aplicava a ritos católicos, não cismáticos.

Observações finais

Há algumas outras inanidades que Hesse apresenta na conferência supracitada que não podemos deixar de comentar.

Por exemplo, o notável acadêmico austríaco afirma: “Um sacerdote às vezes pode sentir seu sacerdócio…”, acrescentando que alguns santos também disseram isso. Infelizmente, ele não fornece nenhuma prova dessa afirmação curiosa (e se algum santo disse tal coisa, ele definitivamente não estava dizendo isso para provar a validade de sua ordenação).

Com efeito, embora Hesse tenha falado por duas horas, ele praticamente não forneceu documentação detalhada para provar seus argumentos. Assim, tudo permanece no nível de “o Padre Hesse disse…”, que é exatamente a abordagem que Kennedy Hall emprega em seu recente vídeo sobre a validade dos sacramentos Novus Ordo (refutado em nosso último podcast, TRADCAST EXPRESS 186).

Hesse também comete erros em várias outras coisas durante sua conferência. Ele aponta para o ensino dogmático do Concílio do Vaticano de que “o Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não para que eles pudessem, mediante sua revelação, tornar conhecida alguma nova doutrina, mas para que, com sua assistência, pudessem guardar religiosamente e expor fielmente o depósito da fé transmitido pelos apóstolos” (Constituição Dogmática Pastor Aeternus, Cap. IV).

Não obstante, ele interpreta a doutrina de forma normativa e não descritiva. Em outras palavras, ele acredita que isso significa que, se o papa proclamar novidades, os fiéis devem rejeitá-las, pois essa não é a razão por que o papa tem a assistência do Espírito Santo. Quando lida em seu contexto, no entanto, fica claro que o que o Concílio do Vaticano realmente quis dizer é que o Papa não ensinará novidades justamente porque a assistência do Espírito Santo não permitiria isso.

Dizer o contrário reduziria esse belíssimo e consolador ensinamento conciliar a pouco mais que uma trivialidade superficial: Isso significaria simplesmente que o papa não deve criar novas doutrinas, mas é capaz de fazê-lo. Porém, isso é verdade para qualquer um, não apenas para o Papa. Na verdade, qualquer protestante concordaria que o pastor de sua própria igreja não deve ensinar doutrinas novas e estranhas. Essa não é uma visão profunda a ser ensinada por um concílio ecumênico católico acerca do Papa!

É evidente, portanto, que o Concílio do Vaticano ensina, não que o Papa não deve ensinar uma doutrina nova (ou falsa), mas que ele efetivamente não o faz. Este é o significado da assistência especial do Espírito Santo para o papa. É isso que significa dizer que a doutrina do concílio sobre a assistência do Espírito Santo ao papa é descritiva – ela descreve uma verdade sobre o papado – e não meramente normativa – estabelecendo uma norma que se espera que o papa siga. O Espírito Santo age a prioriantes que o papa faça qualquer coisa, impedindo-o de ensinar ou legislar erros graves, como a heresia – e não a posteriori, por meio dos inferiores [hierárquicos] ao papa corrigindo seu magistério após o fato.

Em sua conferência, Hesse também menciona que, na época do Concílio do Vaticano, o bispo de Brixen (Bispo Vinzenz Gasser) perguntou ao Papa Pio IX o que deveria ser feito no caso de um Papa vir a ensinar heresia. Segundo Hesse – sem absolutamente nenhuma evidência fornecida – Pio IX respondeu com uma resposta despreocupada: “Bem, vós simplesmente não deveis segui-lo!” – como se isso resolvesse o problema. Em verdade, isso derrubaria o próprio ensinamento de Pio IX sobre o papado.

Qualquer um que esteja familiarizado com os ensinamentos do Papa Pio IX, portanto, sabe que essa anedota não pode ser verdadeira. Isso não quer dizer que Hesse a inventou. Longe disso. Não, provavelmente ele se enganou quanto a isso. Na verdade, parece que a história a seguir, contada pelo Arcebispo John Purcell, de Cincinnati, que também estava presente no concílio, relata o que realmente de fato ocorreu:

A questão também foi levantada por um cardeal: “O que deve ser feito com o papa no caso de ele se tornar um herege?” Foi-lhe respondido que nunca houve tal caso; o concílio dos bispos poderia depô-lo por heresia, porque, a partir do momento em que ele se torna um herege, ele não é o chefe ou mesmo um membro da Igreja. A Igreja não seria, nem por um momento, obrigada a ouvi-lo quando ele começasse a ensinar uma doutrina que a Igreja sabe ser uma doutrina falsa, e ele deixaria de ser o papa, sendo deposto por Deus mesmo.
Caso o papa, por exemplo, dissesse que a crença em Deus é falsa, vós não seríeis obrigados a crer nele, ou caso ele negasse o restante do credo: “Creio em Cristo”, etc. A suposição é injuriosa ao Santo Padre por sua própria noção, mas serve para mostrar a abrangência com que o assunto foi considerado e a grande consideração dada a toda possibilidade. Caso ele negue qualquer dogma da Igreja defendido por todo crente verdadeiro, ele não é mais Papa do que vós ou eu; e, portanto, sob esse aspecto, o dogma da infalibilidade não é nada como um artigo de governo temporal ou cobertura para a heresia. (Arcebispo John B. Purcell, citado na obra do Rev. James J. McGovern, Life and Life Work of Pope Leo XIII [Chicago, IL: Allied Printing, 1903], p. 241; imprimatur pelo Arcebispo James Quigley de Chicago; [itálico nosso]).

Curiosamente, Hesse foi inflexível ao afirmar que o sedevacantismo é falso. “Quem sou eu para dizer que ele não é o papa?”, perguntou ele referindo-se a João Paulo II, então reinante em Roma, e, por extensão, a qualquer um dos ‘papas’ posteriores a Pio XII. Talvez sua própria convicção de que o homem em Roma havia ratificado um concílio herético, instituído um rito cismático da Missa, etc., devesse ter sido um grande indício.

E assim, quando se tratava de tirar conclusões logicamente necessárias, Hesse subitamente constatou sua falta de autoridade. Por outro lado, uma humilde consciência de sua própria incompetência nunca lhe ocorreu quando se tratou de declarar cismático o rito da Missa de Paulo VI ou de rotular a Igreja do Vaticano II como uma “seita neognóstica”.

Evidentemente, oramos e esperamos que o Rev. Gregorius D. Hesse estivesse em estado de graça santificante quando Deus o chamou para o juízo em 25 de janeiro de 2006.

Porém, devemos incessantemente anatematizar sua insana teologia anti-católica.

Trad. por Abner Benedetto. De: Novus Ordo Watch, “The Fanciful Theology of Fr. Gregory Hesse (1953-2006):
Some Worthwhile Observations
”.

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