DO AMOR DO PRÓXIMO

Santo Afonso de Ligório
Século XVIII

§ I. Necessidade e excelência de amor do próximo

É impossível amar a Deus sem amar ao mesmo tempo ao próximo. O mesmo mandamento que nos obriga ao amor de Deus nos impõe o amor do próximo. “Temos este mandamento de Deus, que quem ama a Deus ame igualmente a seu próximo” (1 Jo 4, 21). S. Tomás de Aquino conclui dessas palavras do Apóstolo que a única virtude da caridade abrange não só o amor de Deus, como também o amor do próximo, pois a única e mesma caridade faz que amemos não só a Deus, como também o próximo por amor de Deus (II-II, q. 25, a. 1). Assim se explica o que S. Jerônimo (In ep. ad Gall., с. 6) narra de S. João Evangelista. Perguntado por seus discípulos por que recomendava tão repetidas vezes a caridade fraterna, respondeu: Porque é o preceito do Senhor e a sua observância só basta para a bem-aventurança eterna.

S. Catarina de Gênova disse uma vez ao Senhor: Ó meu Deus, vós me mandais amar a meu próximo, e eu não posso amar senão a vós. Ao que lhe respondeu o Senhor: Minha filha, quem me ama, ama também tudo que eu amo. De fato, quando se ama uma pessoa ama-se também seus parentes, seus servos, seu retrato e até suas vestes, e por quê? Porque são estimadas pela pessoa amada.

Por que devemos amar a nosso próximo? Porque é amado por Deus. Com toda a razão o apóstolo S. João chama de mentiroso quem diz que ama a Deus, e entretanto odeia a seu próximo. Jesus Gristo disse que há de olhar como feito a si mesmo o bem que fizermos ao mínimo de seus irmãos: “Em verdade, vos digo, o que fizestes a um de meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Do que conclui S. Catarina de Gênova que, para se conhecer quanto alguém ama a Deus, basta examinar-se quanto ama ao próximo.

A caridade cristã é um dos frutos mais preciosos da redenção. O profeta Isaías a predisse com as palavras: “Então habitará o lobo com o cordeiro e o leopardo se alojará junto ao carneiro… e não prejudicará um ao outro, nem o matará” (Is 11, 6). Com isso queria dizer que os futuros discípulos de Jesus Cristo, ainda que tendo inclinações e caracteres diversos e pertencendo a várias nacionalida-des, haveriam de viver em toda a paz um com o outro, já que cada um cuidaria em se amoldar, pela caridade, à vontade e inclinação do outro. E, na realidade, assim viviam os primeiros cristãos. “A multidão dos fiéis tinha um só coração e uma só alma” (At 4, 32). Isso foi o resultado da oração do divino Salvador dirigida a seu Eterno Pai antes de sua morte: “Pai santo, conservai em vosso nome aqueles que me destes, para que sejam um, como nós o somos” (Jo 17, 11).

§ II. Da prática da caridade em pensamento

1) Se queres praticar a bela virtude do amor do próximo, empenha-te em repelir todo o juizo temerário, toda a desconfiança, toda a suspeita infundada a respeito de teu próximo. E uma grande falta duvidar sem razão da inocência do próximo; falta ainda maior é alimentar uma verdadeira suspeita contra ele e pior ainda ter por certo, sem motivo ou prova suficiente, que ele cometeu algum mal. Quem assim julga será, por sua vez, julgado. “Não julgueis, diz o divino Salvador, para que não sejais julgados; com o mesmo juizo que julgardes, sereis também julgados” (Mt 7, 12).

Disse eu — sem razão suficiente — porque quando há motivos ponderosos para se suspeitar ou mesmo crer algum mal de outrem, não se comete falta com tais pensamentos. Contudo, é sempre mais se-guro, conforme a doutrina do Apóstolo, e mais consoante à caridade crer o bem de outrem e abster-se de qualquer juízo desfavorável e suspeita a seu respeito. “O amor não pensa mal” (1 Cor 13, 5).

Isto, porém, não vale para os que estão encarregados da direção dos outros, desde que para estes é útil e, às vezes, mesmo necessário entreter uma certa desconfiança, porque, em razão de sua familiaridade, podem facilmente originar-se grandes males. Se não tiveres, porém, de cuidar de outros por vocação, deves pensar sempre bem de teu próximo. S. Joana de Chantal dizia: “Quando se trata do pró-ximo, não devemos dirigir nossas vistas para o mal, mas somente para o bem” E se nos enganarmos, julgando boa uma coisa em si má, não nos devemos contristar por isso, desde que “a caridade, segundo S. Agostinho, não se entristece por ter atributdo algum bem a uma pessoa má” (In Ps. 147).

2) Deves igualmente abster-te de investigar as faltas de teu próximo, como muitos o fazem. Não imites aqueles que se informam em toda a parte do que se diz deles, e enchem assim seu coração de suspeitas, amarguras e antipatias. Muitas vezes se narram as coisas de modo mui diverso do que se deram e as exageram consideravelmente.

Se, pois, ouvires que alguém se exprimiu desfavorávelmente a teu respeito, não ligues muita importância a isso, e não perguntes de quem procederam essas afirmações. Procede assim que cada qual possa falar bem de ti e deixa então os outros dizerem o que lhes aprouver. Dize contigo mesmo, ao ouvires que outros falam de teus defeitos: isso é o menos que se pode dizer de mim; o que se não diria se soubessem tudo — ou então — Deus será quem uma vez me há de julgar.

3) Se sobrevier a nosso próximo algum sofrimento ou doença, se lhe suceder alguma desgraça ou doença, a caridade exige, nesse caso, que tenhamos compaixão dele, ao menos na parte superior da alma. Digo na parte superior da alma, pois, ouvindo que pessoas que nos são antipáticas foram atacadas por alguma desgraça, nossa natureza rebelde sente alguma complacência nisso. Se te sentires incli. nado, na parte inferior da alma, a te alegrares com a desgraça de teu próximo, deixa então tua má inclinação gritar como um irracional e procura, na parte superior, compadecer-te de teu infeliz próximo.

Certamente é lícito alegrar-se do feliz resultado que se espera obter em consequência dos males temporais sucedidos a alguém. Por exemplo, se um pecador, que serve de escândalo a outros ou vive obstinado, fica doente, é lícito alegrar-se disso na esperança de que essa doença o levará a entrar em si e a converter-se ou, ao menos, a pôr fim a seus escândalos. Essa alegria, contudo, é sempre suspeita, se quem padece nos causou algum desgosto.

4) O amor do próximo exige também que nos alegremos com o bem-estar dos outros e nos abstenhamos cuidadosamente de alimentar em nós sentimentos de inveja. De quatro modos, diz o Doutor Angélico (II-II, q. 36, a. 2), pode nos desagradar o bem-estar do próxi-mo. Primeiro, sua felicidade nos pode contristar, porque tememos que com isso nos sobrevenha um dano qualquer. Se o prejuizo que tememos é injusto, nosso temor não é inveja, nem pecado, segundo as palavras de S. Gregório: “Muitas vezes acontece que a desgraça de nosso inimigo nos causa alegria, sem que com isso faltemos ao amor do próximo, quando, por exemplo, seu infortúnio é motivo de outros ficarem livres da miséria. Também pode acontecer que o bem-estar de nosso inimigo nos aflija sem, com isso, nos tornarmos culpados de inveja; por exemplo, quando tememos que abuse de seu bem-estar para injusta opressão dos outros” (Moral. 1. 22, c. 11).

Em segundo lugar, o bem do próximo pode nos contristar, não porque o próximo goza dele, mas porque nós não o possuimos. Este desgosio não é inveja; é mesmo uma virtude, quando se trata de bens espirituais.

Em terceiro lugar, o bem-estar do próximo nos entristece porque julgamos que ele não o merece. Este descontentamento é igualmente permitido se temos motivos de temer que o lucro, as dignidades, as riquezas que nosso próximo possui possam prejudicar a sua alma.

Em quarto lugar, o bem-estar do próximo pode nos desagradar, porque nós, por sentimentos malévolos, não o toleramos e, por isso, consideramos o seu proveito como nosso dano, no que consiste propriamente a inveja, contra a qual nos devemos precaver.

O Sábio diz que os invejosos imitam o demônio, que concitou Adão ao pecado porque lhe invejava o céu, do qual fora expulso. “Pela inveja do demônio entrou a morte neste mundo e os que são de seu partido imitam a ele” (Sab 2, 24). A caridade, pelo contrário, faz que nos alegremos pelo bem-estar do próximo, como se fosse o nosso próprio, e que consideramos a desgraça alheia como própria.

§ III. Da prática da caridade em palavras

1) Quanto à prática da caridade no falar, deves, antes de tudo, evitar toda a espécie de detração. Quem tem esse mau costume, desfigura sua própria alma, como diz o Espírito Santo (Ecli 21, 31), e será odiado por todos. E se, às vezes, encontra alguns que o aprovam e animam a falar mal do próximo para seu contentamento ,estes mesmos se afastam logo dele e o evitam, já que, com toda a razão, julgam que não os poupará também em conversas com terceiros. S. Jerônimo nota que muitos que deixaram todos os outros vicios não podem abster-se de falar do próximo. Mesmo entre os que se obrigaram a tender à perfeição, alguns há que não podem mover a língua sem ofender os outros e falar de alguém a não ser mal. Estes faladores sem caridade deveriam ser expulsos de todas as comunidades ou, ao menos, viver presos a vida inteira, pois só servem para impedir o recolhimento, a devoção e a paz dos outros. Permita Deus que não findem sua vida como aquele difamador, que, no leito da morte, num impeto de cólera, cortou a sua própria língua e assim expirou. S. Bernardo fala de um outro, cuja língua inchou instantâneamente, quando pretendia detrair S. Malaquias, e foi devorada por vermes, morrendo ele depois de sete dias de atrozes sofrimentos.

Sumamente estimada por Deus e pelos homens é, pelo contrário, uma pessoa que só fala bem de todos. S. Maria Madalena de Pazzi diz que consideraria como um santo todo aquele que, durante sua vida, não tivesse falado mal de seu próximo. Evita cuidadosamente falar mal de alguém, em particular de teus parentes, teus superiores, teu confessor, etc., pois quando alguém toca na honra dos superiores, torna-se culpado da falta de amor à obediência por parte dos súditos.

Tornamo-nos culpados de difamação não só quando revelamos faltas ocultas do próximo, mas também quando interpretamos mal suas obras ou lhe atribuímos uma má intenção; quando contestamos suas boas ações ou lhe negamos o louvor merecido. De que não é capaz uma língua difamante, para tornar crível o mal que afirma do próximo! Ela começa com louvor e acaba com censura, dizendo, por exemplo: fulano possui muitos dotes, mas é muito soberbo; sicrano é muito liberal, mas vingativo, e assim por diante.

Procura falar unicamente bem de teu próximo, alma cristã; fala de tal modo dos outros como desejarias que falassem de ti. Quanto aos ausentes, segue o conselho de S. Madalena de Pazzi: “De um ausente não se deve dizer coisas que não se diriam se estivesse presente”. Ao ouvires alguém difamar o próximo, evita excitá-lo ainda mostrando agrado nisso, pois assim te tornarias igualmente culpado de seu crime. A um tal deves, repreender, cortar a conversa ou então abandoná-lo e não lhe dar resposta nem atenção. “Circunda teus ouvidos com espinhos e não ouças a uma lingua má”, diz o Espírito Santo (Ecli 28, 28). Pelo menos deves dar a conhecer, quer por teu silêncio ou semblante displicente, quer abaixando os olhos, que tal conversa te desagrada. Comporta-te de tal forma que, depois, ninguém mais ouse atacar, em tua presença, a boa reputação dos outros.

Guarda-te igualmente de relatar a teu próximo o que um outro disse dele, pois de tais mexericos originam-se, muitas vezes, rancores e discórdias que duram meses e anos. Rigorosas contas exigirá Deus das línguas que espalham intrigas. Quem ocasiona discórdia atrai sobre si a ira de Deus. “Seis são as coisas que o Senhor aborrece e sua alma detesta a sétima” (Sab 6, 16), Esta sétima coisa é a pessoa “que espalha a discórdia entre irmãos”. Se alguém, no calor da paixão, diz algum mal de outrem, sofre-se com paciência. Mas como poderá Deus suportar aquele que, com sangue frio, semeia a discórdia e perturba a paz dos outros? Se ouvires alguém falar mal do próximo, faze o que te ensina o Espírito Santo: “Ouviste alguma palavra contra teu próximo? deixa-a morrer juntamente contigo” (Ecli 19, 10). Não deves dar-te por satisfeito guardando-a em teu coração, mas deves deixá-la morrer nele. Quem estiver preso em algum lugar, poderá ainda escapar; quem está morto, porém, não poderá jamais abandonar o sepulcro. Não devemos dar a conhecer nem sequer a minima coisa do que ouvimos, pois, feita a menor alusão, ainda que seja por uma meia palavra ou aceno de cabeça, se poderá concluir das circunstâncias ou, pelo menos, suspeitar do que se trata. Há pessoas que, tendo ouvido algum segredo, parecem sofrer dores mortais por não poderem revelá-lo, como se esse segredo fosse um espinho que lhes traspassa o coração e que deve ser arrancado o mais depressa possível. Não procede assim; quando ouvires que teu próximo cometeu uma falta, cala-te a esse respeito e só a poderás revelar quando isso for necessário para o bem alheio ou do culpado.

3) Na conversa deves também abster-te de palavras ofensivas, mesmo que só sejam ditas por pilhéria, pois gracejos que desagradam ao próximo são contrários à caridade cristã e opõem-se às palavras de Cristo: “Tudo o que quereis que vos façam os homens, fazei-o também a eles” (Mt 7, 12). Sentir-te-ias satisfeito se outros zombassem e escarnecessem de ti? Certamente não: por isso evita proceder assim com teu próximo. Procura evitar, igualmente, tanto quanto possível, todas as contendas. Por causa de uma ninharia muitas vezes originam-se altercações que se transformam em rixas e agravos. Pessoas há que possuem um tal espírito de contradição, que, sem necessidade nem proveito algum, mas só para discordar, duvidam de coisas por completo insignificantes, impugnam afirmações, propõem toda sorte de perguntas capciosas, ofendendo assim a caridade.

“Não contendas por causa de uma coisa que te não diz respeito”, nos aconselha o Sábio (Ecli 11, 9). Mas eu tenho razão — dizes — eu não posso ouvir tais disparates. Ouve o que te responde o Cardeal Belarmino: “Melhor é uma meia onça de amor do próximo que umas cem carradas de razões”.

Se se conversa sobre algum assunto e desejas tomar parte na palestra, podes dar o teu parecer particularmente, se a coisa não é de grande monta; mas, feito isso, deves te conservar tranquilo e não defender teimosamente tua opinião: muito melhor é ceder então e contentar-te com o que afirmam os outros. Consegue-se uma brilhante vitória quando se cede em tais contendas, visto que então se dá um passo adiante na virtude e conserva-se a paz, que vale mais que ter razão.

4) Se a caridade do próximo te é cara, esforça-te por tratar afável e carinhosamente a todos os homens. A mansidão é chamada a virtude do Cordeiro, isto é, a virtude mais amada de Jesus Cristo, que, exatamente por sua causa, quis ser chamado cordeiro. Mostra-te, por isso, afável em tuas palavras e comportamento, não só para com teus superiores, como também para com todas as pessoas.

Empenha-te em praticar a mansidão particularmente com aqueles que antes te ofenderam ou que agora te olham com maus olhos ou fazem causa comum com teus inimigos. Sê afável também com os que não simpatizas, quer porque não são corteses para contigo, quer porque não se mostram gratos aos benefícios de ti recebidos. “A caridade é paciente e suporta tudo” (1 Cor 13, 4). Quem não quer suportar os defeitos de seu próximo, não tem a verdadeira caridade. Neste mundo não há pessoa sem defeitos, por mais perfeita que seja. Não tens defeitos também? e exiges que os outros te tratem carinhosamente e tenham paciência contigo. Deves, pois, também mostrar-te carinhoso para com teu próximo e suportar suas imperfeições, segundo o conselho do Apóstolo: “Levai as cargas uns aos outros” (Gál 6, 2). Quão pacientemente não suporta uma mãe as manchas de seus filhos! E por quê? Porque os ama. Se suportares pacientemente os defeitos do próximo, darás a conhecer que o amas com amor sobrenatural, que deve ser mais forte que o natural. Com que amor não suportou nosso divino Salvador os defeitos e as imperfeições de seus discípulos, durante o tempo que com eles conviveu! Com que amor não suportou a Judas, chegando até a lavar-lhe os pés para mover-lhe o coração.

Por que nos referimos, porém, aos outros? Com que paciência não nos tem o Senhor tratado. E não havemos de querer ter paciência com os outros? O médico odeia a doença, mas ama o doente. Assim também deves detestar os defeitos do próximo, mas ter amor à pessoa que os cometeu. — Que devo fazer? perguntar-me-á alguém; sinto tão grande antipatia a tal pessoa que não posso vencê-la. Respondo: Emprega todos os esforços para praticar as virtudes todas em geral e a caridade em particular, que essa antipatia desaparecerá por si mesma. Demais, não deixes de observar as regras seguintes:

Se te sentires arrastado à ira, procura te conter quanto estiver em tuas forças. Guarda-te de palavras inconvenientes e ainda mais de um trato desdenhoso e soberbo, que desagrada, muitas vezes, mais que palavras ofensivas. Se fores atingido por uma palavra des-prezivel, suporta-a por amor de Jesus Cristo, que por amor de ti sofreu desprezos muitíssimo maiores. Ah! como é triste ver pessoas que fazem todos os dias meditação, comungam amiudadas vezes, mostrarem-se tão suscetíveis ao ouvirem a mais leve palavra de desacato e serem alvo da menor inadvertência. A Irmã Maria da Ascensão, quando recebia uma ofensa, dirigia-se incontinenti à presença do SS. Sacramento e dizia-lhe: “Ó meu divino Esposo, ofereço-vos este pequeno presente e suplico-vos que o aceiteis benignamente, perdoando a quem me ofendeu”. Por que não fazes o mesmo? Para conservar-se a caridade, se deve suportar tudo.

Se alguém te dirige a palavra encolerizado ou te agrava e vitu-pera, responde-lhe com humildade e verás como se alcamará imedia-tamente. “Uma resposta branda quebra a ira” (Prov 15, 1). S. João Crisóstomo diz que, como o fogo não pode ser extinto pelo fogo, assim a ira não pode ser acalmada pela ira. Se alguém fala contigo irado, e da mesma forma lhe responderes, como poderá tranquilizar-se? Só o excitarás mais à ira e, ao mesmo tempo, faltarás com a caridade.

Narra Sofrônio que dois monges, que haviam empreendido uma viagem, perderam-se numa mata e vieram a sair num campo semeado. Ao vê-los, o campônio que fiscalizava o tal campo começou a cobri-los de injúrias. A princípio calaram-se, mas vendo que o homem enfurecia-se cada vez mais, disseram-lhe: Irmão, nós erramos perdoai-nos por amor de Jesus. Esta humilde resposta comoveu ao camponês, que não só lhes pediu perdão da ofensa, como também fez o propósito de abandonar o mundo e fazer-se religioso, vivendo com eles.

Parecer-te-á, algumas vezes, razoável e mesmo necessário, repelir em termos ásperos a impudência de certas pessoas, em especial se forem teus súditos e faltarem com o devido respeito. Acautela-te contra o engano, toma cuidado para que, nesse caso, a razão te conduza e não a paixão. Não nego que, às vezes, é lícito irar-se, contanto que não ocorra nenhuma falta, segundo as palavras do Salmista: “Trai-vos e não queirais pecar” (SI 4, 5). A dificuldade está, porém, justamente nessa condição. Quem se entrega à ira, assemelha-se a um homem que monta um cavalo indômito, que não obedece ao freio: não sabe para onde o arrastará o animal. Por isso diz mui acertadamente S. Francisco de Sales que sempre se deve reprimir a ira, por mais justa que se seja, e ajunta: “É melhor que se diga de ti que nunca te zangas, do que afirmar que te encolerizas com razão”. Segundo S. Agostinho, só com grande esforço se poderá expelir do coração a ira, depois de se ter deixado entrada franca, e por isso diz ele que se lhe deve fechar a porta para que não entre. Um filósofo antigo, chamado Agripino, ao perder todos os seus haveres, exclamou com todo o sossego: “Se perdi meus bens, não quero por isso perder também a paz de meu coração”. É o que deves igualmente pensar ao sofrer uma humilhação; já tiveste de suportar a confusao, cuida agora em não perderes o sossego d’alma pela ira. Se te irritares, te prejudicarás mais do que o foste pela injúria recebida e, por isso, diz S. Agostinho que quem se deixa dominar pela cólera por causa de uma ofensa recebida, castiga-se a si mesmo.

Disse que deves responder com mansidão quando alguém te ofender ou na ira te dirige a palavra; ajunto que, se te sentires irado, em tal caso farás melhor não respondendo nada, pois poderá acontecer facilmente que, no ardor da paixão, julgues justo e razoável o que pretendes responder e, depois de passada a irritação, tenhas de confessar que foi muito inconveniente e desarrazoado o que disseste. “A vista turvada pela ira, diz S. Bernardo, não vê mais o que é justo ou injusto”. A paixão é como um véu espesso, que não nos deixa mais distinguir o direito do falso. Se quem te ofendeu entrar em si e te pedir perdão, não o trates brusca e sombriamente, com os olhos no chão ou no ar, pois, dessa maneira, pecarias sèriamente contra a caridade e poderias arrastar o teu próximo ao perigo de conceber um grande ódio contra ti e darias um grave escândalo.

Se ofendeste a teu próximo, deves empregar todos os meios possíveis para aplacá-lo imediatamente e expelir de seu coração todo o rancor contra ti. Não há meio mais próprio para reparar as faltas cometidas contra a caridade que se humilhar, diz S. Bernardo. Faze isso e esforça-te para venceres o mais depressa possível a tua repugnância interna, pois, quanto mais protraíres tanto mais difícil se te tornará e, finalmente, tudo ficará sem resultado. Sabes o que disse Jesus: “Se estás fazendo a tua oferta junto ao altar, isto é, se queres comungar ou ouvir a Santa Missa, e aí te recordas que teu irmão tem contra ti alguma coisa, deixa aí, diante do altar, a tua oferta e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e depois virás fazer a tua oferenda” (1 Jo 3, 18). Uma tal humilhação poderia, contudo, ser inconveniente, algumas vezes, quando se previsse, por exemplo, que ela ocasionaria ao ofendido uma nova irritação. Em tal caso deve-se esperar uma ocasião mais apropriada ou fazer a reconciliação por meio de outras pessoas e, entrementes, se esmerar em patentear especial atenção e respeito para com aquele que se deseja aplacar.

§ IV. Prática da caridade em obras

Quanto ao amor do próximo nas nossas obras, devemos estar sempre prontos a auxiliar o próximo em todas as suas necessidades.

Muitos cristãos asseveram que amam a seu próximo, mas nada fazem por ele. A estes diz S. João: “Meus filhinhos, não amemos de palavra nem de língua, mas em obras e em verdade” (1 Jo 3, 18). O amor do próximo não se contenta com palavras, mas exige também obras.

A. Do amor aos parentes. — Deves praticar a caridade efetiva para com todos os homens, mas em particular para com os membros de tua família. Se morasses num deserto, a caridade do próximo te seria menos necessária; bastaria, para tua santificação, que te desses à oração e à penitência; vivendo na família, porém, te sobrecarregarás de muitas faltas e te condenarás talvez se não praticares a caridade. Se um navio se acha no mar durante uma forte tempestade, os viajantes só pensam em se auxiliarem uns aos outros e assim escaparem ao naufrágio. Da mesma forma Deus Nosso Senhor colocou-te e a teus pais e parentes em um navio, no qual vos deveis ajudar mùtuamente para escapardes do naufrágio da morte eterna e atingirdes o porto da salvação, o céu, isto é, aquele lugar feliz, onde haveis de cantar eternamente, uns com os outros, os louvores de Deus.

1) Se és pai ou mãe, pensa então continuamente em teus deveres para com os filhos que Deus te concedeu certo que o bom ou mau comportamento dos filhos procede regularmente da boa ou má educação recebida de seus pais. Deus instituiu matrimônio para que os filhos o sirvam sob a direção de seus pais e, deste modo, se salvem. Sem esta disposição de Deus ficariam os filhos entregues a al mesmos, e não teriam ninguém que os recordasse de seus deveres os repreendesse de seus defeitos, os castigasse quando não se quisessem emendar. A experiência ensina que pais virtuosos educam filhos virtuosos. S. Catarina da Suécia teve por mãe a S. Brigida. S. Luis; rei de França, teve por mãe a grande serva de Deus, a rainha Branca. Esta piedosa mãe repetia muitas vezes a seu filho: “Ó meu filho, preferiria ver-te morto a cometeres um pecado mortal”. Uma outra mãe que conheci, fazia também tudo o que estava em seu poder para que seus filhos vivessem santamente, e costumava dizer: Não quero ser mãe de filhos condenados.

Infelizmente, porém, existem pais que parecem não ligar a mínima importância à educação de seus filhos; que sejam bons ou maus, que se salvem ou condenem. Muitos receiam contristar a seus filhos com suas repreensões ou castigos e tornam-se, com isso, culpados de sua perdição eterna.

Esses pais são verdadeiros bárbaros. Não seria bárbaro um pai que, podendo salvar da morte um seu filho que caiu num rio, deixasse de o fazer para não causar-lhe uma pequena dor momentânea ao arrastá-lo pelos cabelos? Pois é uma crueldade muito maior deixar de corrigir ou castigar um filho culpado, para não lhe causar um aborrecimento. Não seria talvez cruel um pai que desse a seu filho uma faca afiada, pondo-o assim em perigo de ferir-se gravemente? Muito mais cruéis são, porém, os pais que dão dinheiro a seus filhos para que o empreguem a seu bel-prazer ou que eles permitem frequentar maus companheiros ou casas suspeitas.

Antes de tudo devem os pais empenhar-se em afastar seus filhos das más ocasiões do pecado, pois estas são as fontes de todos os males.

Quando não bastam as boas palavras e admoestações, deve-se empregar o castigo. Não se deve esperar até que os filhos se tornem grandes, pois, tendo chegado a uma certa idade, tornar-se-á quase impossivel corrigi-los. “Quem poupa a vara, aborrece seu filho; mas quem o ama, corrige-o continuamente” (Prov 13, 24), É odiar não castigar quando necessário. Deus castigará com todo o rigor os pais que não castigarem seus filhos. Porque o sumo sacerdote Heli deixou de castigar seus filhos, que procediam mal, enviou-lhe o Senhor a morte no mesmo dia em que seus filhos pereciam na batalha, como nos conta a Escritura.

Contudo, deve-se castigar os filhos com medida e não com ira, Como costumam fazer muitos pais. Faltando a moderação, os pais não conseguirão seus fins e só induzirão seus filhos a maiores faltas. Primeiramente se deve admoestar, então ameaçar, e, finalmente, castigar, mas como pai, com amor e sem imprecações. Muitas vezes bastará prender em um quarto o filho culpado, negar-lhe alguma coisa nas refeições, proibir-lhe certos brinquedos ou roupas que mais lhe agradam, etc. Se for necessário um castigo corporal, use-se uma vara e não de um pau. Tome-se como regra nunca pôr as mãos num filho enquanto dura a ira ou cólera; espere-se até que se tenha aquietado por completo.

É obrigação dos pais vigiar também seus filhos; devem sempre saber onde se acham e com quem andam os filhos. De forma alguma, pois, se poderá desculpar aquelas mães que, para verem suas filhas em breve casadas, consentem que sejam visitadas a toda hora por seus namorados que pouco se importam que vivam em estado de pecado ou de graça de Deus. Estas são aquelas mães de que fala David, que sacrificam suas filhas ao demônio por proveitos materiais. “E imolaram ao demônio seus filhos e suas filhas” (S1 105, 37). Algumas mães introduzem pessoalmente rapazes em suas casas, para que se entretenham com suas filhas e, finalmente, emaranhados nas redes do pecado, vêem-se obrigados a contrair casamento com elas. Essas mães infelizes não vêem que assim se acorrentam ao inferno com outras tantas cadeias quantos são os pecados cometidos nessas oca-siões. E dizem ainda: Não acontece nenhum mal, como se fosse pos-sivel não se queimar uma palha lançada no fogo.

Os pais estão igualmente obrigados a dar bom exerplo a seus filhos. Estes, principalmente quando pequenos, imitam tudo o que vêem, com a agravante de seguirem mais facilmente o mal, ao qual nos sentimos inclinados por natureza, que o bem, que contraria nossas inclinações perversas. Como poderão os filhos comportar-se irrepreensivelmente, se ouvirem seus pais blasfemar a miúdo, falar mal do próximo, injuriá-lo e desejar-lhe mal, prometer vingar-se, conversar sobre coisas indecentes e defender máximas impias, como estas: Deus não é tão severo como dizem os Padres; ele é indulgente com certos pecados, etc.? O que se tornará a filha que ouve sua mãe dizer: É preciso deixar-se ver no mundo e não se enclausurar como uma freira em casa? Que bem se pode esperar dos filhos que vêem seu pai o dia inteiro sentado na taberna e, depois, chegar bêbedo a casa, ou então visitar casas suspeitas, confessando-se uma só vez no ano ou só muito raramente? S. Tomás diz que tais pais, de certo modo, obrigam seus filhos a pecar. Este é um mal de que se origina a perdição de muitas almas, pois os filhos imitam o mau exemplo dos pais e dão, mais tarde, por sua vez, mau exemplo a seus filhos, e desta maneira pais, netos e gerações inteiras perdem-se miseràvelmente.

Muitas vezes queixam-se os pais que seus filhos são maus, mas como se poderá colher uvas de espinhos? pergunta o divino Salvador. Como poderão os filhos ser bons, se os pais não prestam? Só por milagre.

Um pai de família que quiser bem governar a sua família deve-rá, antes de tudo, cuidar em afastar o mal de sua casa e em promover o bem. Quanto ao primeiro ponto, atenda ao seguinte: 1) Impeça que seus filhos convivam com maus companheiros ou criados corruptos, ou que aste de suaem em casas de pessoas que não tenham boa fama; 2) Afaste de sua casa todos os criados ou criadas que possam ser ocasião de pecados para seus filhos ou filhas. Um bom pai evita ajustar criadas moças quando tem filhos púberes. 3) Não permita em sua casa nenhum livro que contenha coisas indecentes ou histórias amorosas: tais livros são, uma peste para os jovens. Certo rapaz, objeto de admiração e veneração de uma cidade inteira, leu, por acaso, um livro imoral, e tornou-se tão depravado que, para evitar escândalo público, viu-se o magistrado forçado a desterrá-lo. Um outro jovem, que se esfoçava em vão por vencer a virtude de uma moça, conseguiu o seu intento dando-lhe a ler um romance amoroso. — Maior seria ainda a desgraça, se um pai de familia permitisse em sua casa livros que atacam a fé e impugnam a Santa Igreja; 4) Retire de sua casa todos os quadros inconvenientes e, particularmente, os indecentes; 5) Proiba severamente a seus filhos tomar parte em divertimentos que oferecem ocasião de pecado.

Quanto ao segundo ponto, observe o seguinte: 1) Cuide que todos os que lhe são sujeitos peçam a Deus, pela manha, a graça de não cometerem pecado algum durante o dia e que rezem, nessa in-tenção, três Ave-Marias, pedindo a proteção da Virgem; 2) Cuide que seus filhos se aproximem, no tempo conveniente, dos santos sacramentos. Não os obrigue, contudo, a se confessarem e comungarem amiudadas vezes, nem lhes imponha a obrigação de se confessarem com determinado confessor, para se evitarem sacrilégios.

Para que se acostumem a cumprir com o que lhes é rigorosamente prescrito, é muito útil acostumá-los a exercícios de piedade, que não são propriamente de preceito, como a recitação cotidiana do terço e das ladainhas de Nossa Senhora, o exame de consciência, à noite, recitação dos atos de fé, esperança e caridade, visitar o SS. Sacramento, fazer novenas em preparação às festas de Nossa Senhora, praticar pequenas mortificações e privações, como deixar de comer frutas, doces, etc., nos sábados. Não deixe de mandar à igreja seus filhos, quando há pregações ou exposição do SS. Sacramento, retiros ou qualquer outra devoção.

O Espírito Santo diz: “Tens filhos? Instrui-os e dobra-os desde a sua meninice” (Ecle 7, 25). S. Luis, rei de França, costumava fazer o sinal da cruz antes de começar qualquer ação. “Isto me ensinou minha mãe, dizia ele, quando era ainda pequeno”.

Oxalá que todos os pais incutissem bons costumes a seus filhos; infelizmente cuidam eles mais em procurar para os filhos bens temporais que espirituais e eternos, e, assim, perdem uns e outros. 3) Empenhe-se em inculcar a seus filhos máximas cristãs, por exemplo, a necessidade de fugir das más companhias e ocasiões perigosas, a conformidade com a vontade divina, o paciente sofrimento das adversidades da vida, a insignificância das riquezas e prazeres terrestres, etc. Ponha muitas vezes diante de seus olhos a desgraça imensa dos que vivem em pecado mortal e a importância do negócio de nossa salvação. Previna-os contra a vaidade do mundo, lembre-lhes a hora da morte, com a qual tudo se acaba, mostre-lhes a grande importância da devoção à SS. Virgem.

Impressas no espírito ou coração dos filhos estas verdades, começarão a agir conforme elas e acostumar-se-ão a regular cristãmente sua vida.

2) Os filhos, por sua parte, devem praticar a caridade, socorrendo de bom grado a seus pais em todas as suus necessidades, quer temporais, quer espirituais, Se os pais se acham gravemente enfermos, é dever dos filhos avisá-los de seu estado perigoso e cuidar que recebam a tempo os santos sacramentos. Se os pais necessitam de apoio em seu estado fisico, e obrigação dos filhos prestar-lhes todos os auxílios necessários, segundo suas forças. “Meu filho, cuida de teu pai em sua velhice e… não o contristes em sua vida”, diz-nos o Sábio (Ecli 3, 14). Nossos pais nos prestaram todos os cuidados quando iramos pequenos, e, portanto, nada mais justo que encarregarmo-nos de suas necessidades, agora que são velhos.

Um rasgo comovente de piedade filial conta-se de três irmãos, que viveram pelo ano de 1604, no Japão. Por não poderem levar à sua mãe, apesar de todos os esforços, os socorros necessários, tomaram uma resolução heróica. O imperador determinara que fosse altamente remunerado quem entregasse qualquer ladrão ao juiz. Os três irmãos combinaram entre si que um deles, designado pela sorte, cometesse um furto aparente, devendo ser conduzido como ladrão, pelos outros dois, à presença do rei, recebendo em seguida a quantia estipulada, que deveria ser entregue à mãe. A sorte caiu no mais novo, que foi, de fato, lançado na prisão para ser condenado à morte, castigo reservado aos ladrões. Notou-se, porém, que os acusadores, ao se despedirem do preso, abraçaram-no e choraram amargamente. Isso foi comunicado ao juiz, que deu ordem de não se perderem de vista os dois outros rapazes. Estes dirigira-se para casa e narraram a pobre mãe o que haviam feito para socorrê-la. Imagine-se o desespero da pobre mulher, que declarou preferir morrer de fome a permitir que seu filho sofresse a morte por sua causa. Entregai novamente o dinheiro e trazei-me meu filho, disse ela, em prantos. O juiz, inteirado de tudo, comunicou-o ao imperador, que, profundamente comovido, concedeu uma pensão anual aos três generosos rapazes. Assim pagou-lhes Deus a caridade que mostraram para com a mãe.

B. Da caridade para com os pobres. — Um dever importante que temos de preencher para com nosso próximo é dar-lhe esmola, caso seja pobre, e, principalmente, se pertence à classe dos pobres envergonhados, se estamos em estado de o fazer. O Salvador nos diz: “Dai esmola do que vos sobra” (Lc 11, 41). É peciso, porém, distinguir: Se o pobre se acha em extrema necessidade, estamos obrigados a socorrê-lo com os bens que não são de absoluta necessidade para a sustentação de nossa vida; se não se encontra em tal estado de miséria, mas em grave necessidade, devemos socorrê-lo com os bens de que não precisamos para a manutenção conveniente da nossa posição.

Enorme será o nosso lucro se socorrermos os pobres. O arcanjo Rafael disse a Tobias: “A esmola livra da morte, purifica dos pecados e faz achar misericórdia e a vida eterna” (Tob 12, 9). A esmola salva da morte, isto é, da morte eterna, pois, quanto à temporal, todos lhe estão sujeitos. Purifica dos pecados, porque nos obtém o auxílio divino, que nos lava de nossas manchas. Faz que alcancemos misericórdia e a vida eterna, porque a misericórdia que exercemos com nosso próximo dispõe o Senhor a usar também de misericórdia conosco e a nos receber no céu. “Quem se compadece do pobre, diz a Escritura, dá o seu dinheiro a juro ao Senhor, que lbe retribuirá o que lhe tiver emprestado” (Prov 19, 17). Se nada pudermos fazer por nosso próximo, empenhemo-nos então em recomendá-lo a Deus e rezar ao menos uma Ave-Maria por sua alma, o que é também uma esmola, pois, sob a palavra esmola, não se entende unicamente dinheiro e bens, mas todo o auxílio que se presta ao próximo. “O que, tendo riquezas deste mundo, vir seu irmão em necessidade, diz. S. João (1 Jo 3, 17), e lhe fechar as suas entranhas, como poderá permanecer nele a caridade?” E Jesus diz: “Com a medida com que medirdes, vos medirão também a vós” (Mt 7, 2). Por isso ensina S. João Crisóstomo (Hom. 33 ad pop. Antioch.) que o dar esmolas é uma arte por meio da qual muito se ganha de Deus, e S. Maria Madalena de Pazzi dizia que se sentia muito mais feliz quando podia socorrer ao próximo que quando era elevada em êxtases. “Achando-me em êxtases, Deus é que me ajuda; socorrendo, porém, ao pobre, sou eu que ajudo a Deus”, dizia ela. E, realmente, declarou o divino Salvador que prestamos a ele mesmo o bem que fazemos ao próximo. Quando prestares, porém, um serviço a teu próximo, não deves contar com alguma recompensa, com algum agradecimento, antes alegra-te se, por ele, receberes só injúrias e exprobrações, pois então dupla será a tua recompensa da parte de Deus.

C. Da caridade para com os inimigos. — De modo especial te recomendo o exercício da caridade para com aqueles de que não gostas. Muitos dizem: Sou bom para os que se mostram bons para comigo; mas não posso sofrer ingratidões. A estes responde o divino Salvador, que também os infiéis são gratos para com os que lhes fazem bem. Um cristão, porém, deve desejar e praticar o bem aqueles que odeiam e lhes fazem mal. “Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos; fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam” (Mt 5, 44).

Triste é ver um cristão, que faz todos os dias, talvez, oração mental e comunga amiúdo, nutrir ódio em seu coração contra seu próximo, não se envergonhando sequer de patenteá-lo externamente. Quando se fala de quem ele não pode ver, procura desprestigiá-lo tanto quanto pode; não o saúda, quando se encontra com ele, volta-lhe as costas quando o outro lhe dirige a palavra. Com que vistas contemplará o Cordeiro de Deus a um homem tão hostil?

O infeliz que tolera ódio em seu coração terá de sofrer um duplo inferno; um neste mundo, tendo de viver com homens cuja vista não pode suportar, e outro na eternidade, em pena de seu ódio… Mas esse homem é por demais impudente, é impossível suportá-lo! Respondo: Exatamente nisso consiste o amor do próximo, suportar o que parece intolerável. Aquele homem te desprestigia, frustra teus planos, rouba talvez teu bom nome! Pois bem: faze como se nada soubesses; esforça-te em não lhe mostrar a mínima indiferença; conversa amigavelmente com ele em toda a ocasião; e, se ele se mostrar frio, previne-o, cumprimenta-o primeiro e procura ganhá-lo pela mansidão. Muito longe de te rebaixares com tal proceder, te elevas, porque o fazes por motivo sobrenatural e para agradar a Deus.

Se alguém te causa, de fato, algum prejuízo, vinga-te, mas à moda dos santos. Em que consiste essa vingança? S. Paulino no-la define: “Uma vingança celeste é amar a seu inimigo” (Ep. ad Server.). Consiste, pois, em amar, louvar e cumular de benefícios a quem te fez mal. S. Catarina de Sena vingou-se de uma mulher, que tinha atacado a sua honra, prestando-lhe os serviços de uma criada, durante uma longa enfermidade que a acometeu. S. Acácio vendeu seus bens para sustentar quem o havia privado de sua boa reputação. S. Ambrósio concedeu a um sicário, que atentara contra sua vida, uma pensão, com a qual podia cômodamente viver. O governador da Umbria, Venustiano, que era um perseguidor da Igreja, mandou cortar as mãos de S. Sabino, Bispo de Spoleto, por ter destruído um ídolo, em vez de adorá-lo, conforme era sua vontade. Pois bem; aconteceu que esse tirano, atacado por agudas dores de olhos, implorou o auxílio do santo, levado pela necessidade. S. Sabino orou por ele, e não só lhe alcançou a saúde do corpo, como também a da alma, por sua conversão, S. Crisóstomo nos refere o seguinte: S. Melécio, patriarca de Antioquia, vendo que o povo queria apedrejar o tribuno que o devia conduzir ao desterro, estendeu seus braços sobre ele, que estava assentado a seu lado no carro, e livrou-o de uma morte certa. O Pe. Ségneri narra um fato ainda mais notável: Um dia foi assassinado o filho único de uma nobre senhora de Bolonha. O assassino, para fugir às mãos da justiça, fugiu para a casa da mãe do assassinado. Que fez esta? Não só o subtraiu às pesquisas da polícia, mas também o constituiu herdeiro de seus bens, em lugar do filho que já não possuía, e disse-lhe: Entretanto, toma este dinheiro e salva-te em qualquer parte, porque aqui não estás seguro. Diante de tais fatos, dirá alguém: Ora, esses todos eram santos, e eu não possuo tal virtude. Ouve, porém, o que te diz S. Ambrósio: “Se te falta força, pede-a a Deus, e ele ta concederá”.

Quando se perdoam as ofensas sofridas, pode-se ficar certo de encontrar perdão junto de Deus, pois que ele disse: “Perdoai e ser-vos-á perdoado” (Lc 6, 27). A Beata Batista Varani, da Ordem franciscana, dizia: “Se eu ressuscitasse mortos, estaria menos certa de ser amada por Deus do que estando pronta a fazer bem àqueles que me fazem mal”. Nosso Senhor mesmo disse uma vez à Beata Angela de Foligno: “O sinal mais certo de amor mútuo entre mim e meus servos é amarem os que os ofenderam”.

Se, pois, nada podes fazer, ora ao menos por aqueles que te perseguem e caluniam, segundo a recomendação do Salvador. A Beata Joana da Cruz rezava continuamente por aqueles que a tinham ofendido, de tal forma que as suas irmãs de hábito costumavam dizer: Quem quiser que Madre Joana reze por ele, basta fazer-lhe uma ofensa. S. Isabel da Hungria, quando rezava, um dia, por uma pessoa que a tinha ofendido, ouviu Nosso Senhor dizer-lhe: “Fica sabendo que nunca fizeste uma oração que mais me agradasse do que essa e, por isso, perdoo-te todos os teus pecados”. Segue o exemplo desta santa e conquistarás o amor e o perdão de leu divino Esposo.

D. Da caridade para com os pecadores. — As provas mais excelentes de amor são as que têm por fim o bem espiritual do próximo. Na mesma proporção de superioridade que está a alma ao corpo estão também os benefícios que visam a alma aos que se referem ao corpo, sendo, portanto, aqueles mais agradáveis a Deus. “Aos olhos de Deus tem uma alma maior valor que o mundo inteiro”, diz S. Bernardo. Poderá então haver uma coisa mais sublime que trabalhar com Jesus Cristo na salvação das almas? Talvez digas: Eu não estou incumbido da cura das almas e deixo esse trabalho aos sacerdotes. S. Agostinho responde-te: “Se amas em verdade a Deus, empregarás, certamente, todos os meios para ganhares teu próximo para o amor de Deus; quem converte um pecador, não só o salva, como também a si mesmo”. E noutra parte, diz o mesmo Santo: “Se salvaste uma alma, predestinaste a tua própria”.

Depois de Jônatas ter livrado os judeus, com grande perigo pró-prio, das mãos dos filisteus, foi condenado à morte por seu pai, porque, contra sua proibição, gastara um pouco de mel. O povo, porém, disse a Saul: “Pois então há de morrer Jônatas, que trouxe a salvação a Israel, e que nos livrou da morte?” (1 Rs 14, 45). E alcançaram-lhe o perdão. Todo o que conseguiu, por seus esforços, salvar uma alma, poderá esperar coisa semelhante na hora da morte. As almas salvas dirão a Jesus: “Quereis talvez lançar no inferno, Senhor, aquele que nos livrou dele?” E como Saul, em atenção à súplica do povo, suspendeu a pena de morte em favor de Jônatas, também o Senhor nos concederá seu perdão em razão das súplicas dessas almas salvas por nós. Os que trabalham na salvação das almas ouvirão, na hora da morte, o próprio Deus anunciar-lhes o descanso eterno: “De hoje em diante, que descansem de seus trabalhos, pois suas obras os seguirão” (Apoc 14, 13).

Que consolação e confiança não experimentaremos na hora da nossa morte, pensando que ganhamos uma alma para Deus. Como é doce o descanso depois do trabalho, será doce a morte para quem trabalhou para Deus. Quanto mais contribuiu um pecador por palavras e exemplos a arrancar as almas da escravidão do pecado, tanto mais depressa alcançará o perdão de seus próprios pecados, diz S. Gregório.

Quem é tão feliz de trabalhar na conversão dos pecadores, pode regozijar-se de ter um indício seguro de sua própria predestinação e de que seu nome está assinado no livro da vida. É o que deu a entender o Apóstolo, escrevendo aos que o coadjuvaram na conversão dos pecadores: “Rogo-te também, fiel companheiro, que ajudes aquelas pessoas que comigo trabalham no evangelho… cujos nomes estão no livro da vida” (Filip 4, 3).

S. Paulo colocava uma confiança especial nos que convertera para Deus; estava inteiramente convencido que lhe trariam uma grande recompensa no céu: “Pois qual é a nossa esperança, ou nosso gozo. ou coroa de glória? não sois vós, porventura, vós, ante Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua vinda?” (1 Tess 2, 19). S. Gregório diz que se adquirem tantas coroas quantas as almas que se ganham para Deus. No Cântico dos Cânticos se diz: “Vem do Líbano, esposa minha… serás coroada… das cavernas dos leões, dos montes dos leopardos” (Cânt 4, 8). Esta promessa sublime se refere aos que se dedicam à conversão dos pecadores, pois as almas que, antes, se assemelhavana a animais ferozes e a monstros infernais, depois de sua conversão tornam-se agradáveis a Deus e, uma vez no céu, serão outras tantas pérolas que ornarão a coroa daqueles que as colocaram na vereda da virtude.

Doutro lado, quem vê seu próximo lançar-se no precipício, diz S. Agostinho, irando-se, ou injuriando a seu irmão, e deixa de o repreender, merece maior castigo por seu silêncio que o outro por sua injúria. Não te desculpes com tua incapacidade em corrigir defeitos alheios, já que para isso não se requer tanta sabedoria como caridade, diz S. Crisóstomo. Corrige a teu próximo em tempo oportuno, com caridade e mansidão, e conseguirás o teu intento.

Se fores superior, é teu dever repreender; a caridade, porém, ja exige que o faças todas as vezes que puderes esperar um feliz resultado.

Não seria cruel o que visse um pobre cego dirigir-se para um abismo e não o avisasse do perigo iminente de morte em que se acha?

Muito mais cruel ainda é quem, podendo preservar seu irmão da morte eterna, deixa de o fazer. Se puderes, com fundamento, prever que tua admoestação não dará resultado, procura alguém que possa curar o mal, participando-lhe em segredo o que sabes. Não digas, porém: Isso não é comigo. Nisso não me intrometo. Foi essa a resposta de Caim: “Sou eu, talvez, o guarda de meu irmão?” cada um, podendo, está obrigado a preservar seu próximo da perdição eterna.

Quando se trata de auxiliar o próximo, em particular nas necessidades espirituais, é mui conforme à vontade de Deus, quando necessário, se deixarmos a própria oração, diz S. Filipe Néri. Querendo, uma vez, S. Gertrudes fazer oração em vez dum ato de caridade que devia praticar, disse-lhe o Senhor: Dize-me, Gertrudes, o que mais preferes: desejas que eu te sirva ou queres servir-me? “Se quiserdes chegar até Deus, esforçai-vos para não chegar sozinhos”, diz S. Gregório (Hom. 6 in Evang.). E. S. Agostinho diz semelhantemente (Enar. 2 in ps. 33): “Se, amais a Deus, atral todos os homens a seu amor”. Se, pois, amas ão Senhor, empenha-te em arrastar a seu amor todos os homens com quem convives, teus parentes, conhecidos e amigos.

Uma alma devota pode santificar muitas almas por suas conversas e bom exemplo, podendo também, sem escrúpulos, fazer seus exercícios de piedade com a intenção de excitar os outros a imitá-la. Isso não é orgulho ou vã glória, pois as obras, que não têm o cunho de esquisitas, mas são comumente praticadas por todos que aspiram à perfeição, devem ser feitas com a intenção de edificar os outros e movê-los a um amor sincero para com Nosso Senhor. “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”, diz Jesus Cristo (Mt 5, 16).

Quem, por conseguinte, se mostra piedoso, mortificado, amante da oração, comunga muitas vezes para dar bom exemplo, não pratica atos de vaidade, mas de caridade, muito agradáveis a Deus.

Procura tornar-te útil a todos, tanto quanto te for possível, por palavras, obras e, especialmente, orações. O divino Salvador prometeu ouvir a todo que orar: “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma coisa a meu Pai em meu nome, ele vo-la dará” (Jo 16, 29). Muitos teólogos, que se apóiam na autoridade de S. Basílio, afirmam que essa promessa vale não só para os que pedem, como também para aqueles por quem se pede, contanto que estes não ponham obstáculos à súplica. Nunca deixes, pois, de recomendar a Deus, em tuas orações, na ação de graças depois da comunhão e na visita ao SS. Sacramento, os pobres pecadores, os infiéis, os hereges e todos os que vivem longe de Deus. Imensamente grata a Deus é a oração feita pelos pecadores. Nosso Senhor mesmo disse um dia a soror Serafina de Capri: “Ajuda-me, minha filha, a salvar as almas por meio da oração”. E a S. Maria Madalena de Pazzi: “Vê, Madalena, quantos cristãos se encontram nas mãos do demônio; se meus eleitos não os libertarem por suas orações, tornar-se-ão sua presa para todo o sempre”.

E. Da caridade para com os doentes. — Devemos tomar bem a peito que é muito mais meritório tratar dos enfermos que servir aos sãos, por necessitarem aqueles muito mais de assistência e se acharem muitas vezes abandonados de todos e atormentados, além disso, por dores, inquietações e tédio. Não há, pois, dúvida que é uma obra muito agradável a Deus procurar consolá-los e socorrê-los em tal estado de aflição. E também por haver mais ocasiões de se padecer no tratamento dos doentes é esta obra mais meritória; não é pequena mortificação suportar o ar impuro, o desalinho de seus quartos e suas mesmas enfermidades.

Se tiveres, pois, de tratar de algum doente, terás, de fato, um encargo bem incômodo, mas tens uma ocasião de abundantíssimos merecimentos. Para isso deves ver em cada doente o próprio Jesus, que declarou aceitar como feito a si mesmo tudo o que se fizer pelos enfermos. “Estive doente e me visitastes” (Mt 25, 36). Deves, contudo, estar provido de muitas virtudes.

Em primeiro lugar, precisas de grande caridade, para tratares o enfermo o melhor que puderes. Não te inquietes se não puderes, às vezes, ouvir o sermão, assistir à Missa, ou fazer as orações de cos-tume; alcançarás maiores merecimentos tratando de teu irmão enfermo que fazendo as tuas devoções. Compadece-te dele e procura-lhe todos os alívios corporais possíveis; se não puderes dar-lhe o que deseja, por nocivo, consola-o ao menos com boas palavras. Traze-lhe à memória, de vez em quando, um pensamento salutar, recorda-lhe a paixão de Jesus Cristo, recita-lhe alguma coisa de um livro devoto, se isso lhe apraz. Não te esqueças também de ministrar-lhe os remédios nas horas marcadas.

Em segundo lugar, deves ter uma grande humildade para cuidar de todos os doentes, mesmo dos mais miseráveis. Não reputes como indigno de ti auxiliá-lo em todas as suas necessidades. Essas são as ações mais dignas de um cristão.

Em terceiro lugar, deves ter muita paciência para tratá-lo durante o tempo de sua doença, ainda que seja longa.

Em quarto lugar, deves ter uma grande mansidão para suportar os caprichos de certos doentes que, em vez de agradecerem, queixam-se sempre de todos os serviços que se lhes prestam, e, por assim dizer, não podem contentar-se com nada. Deves te compadecer deles, pensando no quanto devem sofrer.

Repele o pensamento de que tal pessoa não está tão doente como parece, e nunca ouses lançar-lhe em rosto que sua doença é unicamente fantasia. Também não deves esconder ao doente a gravidade do mal, se realmente existe, mas mesmo avisa-lo, dizendo: Amigo, não é caso para desesperar, mas devo-lhe dizer com franqueza que sua doença é mui perigosa e que Nosso Senhor parece querê-lo junto de si. Mandarei chamar o confessor. Os sacramentos não só servem para a alma, como também para o corpo. Prezarei que recupere a saúde; mas, em todo o caso, deve-se entregar à vontade de Deus.

Não receies fazer ao doente esta comunicação, mesmo que isso o contriste, pois nunca se deve esperar até desaparecer toda a esperança, como infelizmente acontece tantas vezes com os filhos do mundo. É este um deplorável abuso, que lança tantas almas no inferno.

Logo que ouvires do médico que o estado do doente é perigoso, cuida da administração dos sacramentos ao enfermo, principalmente se tens razão de recear que não seja bom o seu estado de consciência. Um enfermeiro que desempenha assim o seu cargo é, em toda a verdade, um amigo de Deus.

Quanto mais pobres e abandonados estiverem os doentes, mais deves cuidar em prestar-lhes assistência, principalmente se as doenças durarem muito. Consola-os, então, servindo-os e socorrendo-os.

Se se trata de uma doença contagiosa, ensina a teologia e o martirológio romano que são considerados como verdadeiros mártires os que sacrificam sua vida no tratamento de tais doentes.

F. Da caridade para com os moribundos. — Nenhuma obra de caridade é tão agradável a Deus e tão útil às almas como preparar os moribundos para uma boa morte, pois na hora da morte, que é decisiva para a salvação do homem, assalta o inferno os enfermos com duplicado furor, ainda mais que eles se acham então mais fracos para lhe oporem resistência.

O Senhor mostrou repetidas vezes a S. Filipe Néri como os Anjos punham na boca dos enfermeiros as palavras que deviam repetir aos moribundos, para mostrar-lhe quão meritória e salutar é a assistência prestada aos moribundos.

Se tiveres de tratar de algum doente, deves, em segredo, inquirir do médico se a doença é perigosa. Digo em segredo, porque os médicos têm o detestável costume de esconder o perigo e de enganar o doente com promessas enganadoras, quando disso se trata em sua presença.

Sabendo que a doença é perigosa, não fales logo no principio em confissão, mas certifica-te primeiro do estado de alma do doente, interrogando-o pessoalmente, e anima-o a unir suas dores com os sofrimentos de Jesus Cristo, que pendia tão dolorosamente da cruz, e a oferecê-la a Deus em desconto de seus pecados. Anima-o a colocar em Deus sua esperança, que pode fácilmente restituir-lhe a saúde.

Mas também de um modo conveniente dá-lhe a entender que há perigo e não deve dar muito crédito aos parentes e amigos, porque costumam enganar os doentes para não aterrá-los e que, por isso, será bom fazer, enquanto está em pleno uso de suas faculdades, uma boa confissão, contanto que isso seja útil para a salvação de sua alma.

Entrementes, deves chamar o sacerdote e exortar o enfermo a recebê-lo como um enviado de Deus. Depois de o doente ter recebido os SS. Sacramentos, trata de prepará-lo para a morte. Coloca em sua cabeceira um crucifixo, uma pequena imagem de SS. Virgem, para que tenha às mãos esses objetos, beije-os e se possa munir contra as tentações do inferno.

Um meio excelente contra as tentações é a invocação contínua dos santos nomes de Jesus e Maria e o uso do sinal da cruz. Não será sem utilidade indicar aqui os meios mais apropriados para vencer certas tentações particulares.

Se o enfermo for tentado contra a fé (o que se dá em especial com os que levaram uma vida dissoluta, principalmente se forem sábios ou pessoas aferradas à sua opinião), deves exortá-lo a não fazer caso das dúvidas e sutilezas que o inimigo lhe sugere, mas a responder-lhe imediatamente com energia: Creio tudo o que crê a Santa Igreja, pois ela só crê e ensina a verdade. Exorta-o também a agradecer a Deus por tê-lo feito nascer no seio da Igreja Católica e a protestar que deseja perseverar até ao último instante de sua vida nessa santa fé. O melhor meio, porém, de expulsar tais tentações é preocupar o espírito com a prática de outras virtudes, por exemplo, com atos de contrição, de confiança, de amor de Deus, etc.

Se o doente for tentado de desespero, deves evitar falar com ele: sobre a justiça de Deus, os castigos dos condenados e a gravidade dos pecados; antes, procura inspirar-lhe confiança na misericórdia de Deus, na paixão de Jesus Cristo, nas promessas divinas e na intercessão da SS. Virgem. Se falares com o doente sobre a misericórdia divina, dize-lhe então que Deus se chama “pai de misericórdia” (2 Rs 1, 2), e que, de fato, o é; que ele se deixa encontrar mesmo por aqueles que o não procuram: “Encontraram-me aqueles que me nao buscaram” (Is 65, 1); que Deus tem maior desejo de conceder-nos a bem-aventurança que nós de recebê-la; que Deus “não quer a morte do pecador, mas que se converta de seu caminho e viva” (Ez 32, 33). Dize-lhe mais que um só ato de contrição basta para alcançar o perdão de inumeráveis pecados; que o publicano foi justificado apenas por pronunciar as palavras: “Senhor, sede propício a mim, pecador” (Lc 18, 13); que o filho pródigo foi abraçado por seu pai, apenas voltado a ele (Lc 15, 20) e que David mal pronunciara a palavra: Pequei, e já o profeta Natã assegurou-lhe: “O Senhor transferiu o teu pecado” (2 Rs 12, 13).

Para inspirar ao enfermo confiança na paixão de Jesus Cristo, basta dizer-lhe que Jesus não veio chamar os justos, mas os pecadores (Mt 9, 13), que não expele ninguém que se chega a ele (Jo 6, 37): “O que vem a mim, eu não o lancarei fora”, que ele procura as ovelhas perdidas e que, tendo encontrado uma, cheio de alegria, a aperta em seus braços. Dize-lhe que não há motivo de se temer ser condenado por um Deus que, para não nos condenar, condenou-se a si mesmo à morte de cruz.

Se recordares ao doente as promessas de Deus, não te esqueças da de Jesus Cristo de ouvir a todos que lhe suplicarem (Jo 16, 23): “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma coisa a meu Pai em meu nome, ele vo-la dará”.

Se falares da intercessão dos santos, deves mencionar, de maneira especial, o poder da divina Mãe. Dize-lhe que a invocamos com a Igreja “refúgio, vida e esperança nossa”, nas ladainhas e na Salve-Rainha.

Se o doente for tentado à soberba e presunção em suas boas obras, pondo nelas demasiada esperança de salvação, dize-lhe que só o pecado nos pertence, ao passo que todo o bem que praticamos vem de Deus: “Que possuis tu, que não recebeste?” (1 Cor 4, 7) e que, segundo os ensinos de nossa fé, ninguém sabe certa e infalivelmente se é digno de amor ou de ódio (Ecle 9, 1) e que, por isso todos devemos estar cheios de receio e operar sua salvação com temor e tremor (Filip 2, 12).

Se o doente for tentado de impaciência, traze-lhe à memória quanto padeceram os santos mártires; como um foi esfolado vivo, outro retalhado em pedaços, um terceiro assado lentamente, em fogo brando. Particularmente recorda-lhe os muitos sofrimentos suportados pelo inocente Jesus por amor de nós.

Se o entermo for tentado de ódio, repete-lhe o preceito da lei de Deus: “Amai a vossos inimigos”. Faze-lhe ver que quem não quiser perdoar não terá direito de esperar de Deus o perdão, pois, para perdoarmos, exige Deus que perdoemos aos outros: “Perdoai, e ser-vos-á perdoado” (Lc 6, 37).

Enfim, sejam quais forem as tentações que atormentarem um moribundo, deves cuidar em movê-lo a santos afetos. Para isso seguem aqui algumas santas aspirações:

Em vossas mãos encomendo o meu espírito. Vós me remistes, Senhor, Deus da verdade.

Nós vos suplicamos que socorrais a vossos servos, que remistes com vosso sangue precioso.

Em vós, Senhor, esperei, não serei confundido eternamente.

Ó bom Jesus, escondei-me em vossas chagas.

Vossas chagas, ó Jesus, são os meus merecimentos.

Ó Jesus, não me recusareis vosso perdão, já que me não recusastes o vosso sangue e a vossa vida.

Paixão de Jesus, és a minha esperança.

Merecimentos de Jesus, sois a minha esperança.

Chagas de Jesus, sois a minha esperança.

Sangue de Jesus, és a minha esperança.

Morte de Jesus, és a minha esperança.

Maria, minha Mãe, a vós compete salvar-me; apiedai-vos de mim.

Salve, Rainha, esperança nossa, salve.

Santa Maria, rogai por mim, pecador.

Refúgio dos pecadores, rogai por min.

Um coração contrito e humilhado não havereis de desprezar, ó Senhor.

Para reparar as ofensas que vos tenho feito, vos ofereço em sacrificio minha morte e todas as dores que tenho de suportar até ao fim.

Ó meu Deus, porque vós sois a bondade infinita, amo-vos sobre todas as coisas, amo-vos mais que a mim mesmo, amo-vos de todo o coração.

Ó meu Deus, porque vos ofendi, não mereço amar-vos mais; fazei, pelo amor de Jesus, que eu vos ame.

Ó meu Jesus, quero padecer e morrer por vós, que tanto padecestes por mim e por meu amor morrestes.

Castigai-me, Senhor, como vos aprouver; mas não me priveis da felicidade de poder amar-vos.

Desejo o céu para vos amar por toda a eternidade com todas as minhas faculdades.

Quero padecer enquanto isso vos aprouver; quero morrer para vos comprazer.

Uni-me, Senhor, a vós, e não permitais que de vós jamais me aparte.

Fazei, ó meu Deus, que vos pertença inteiramente antes de morrer.

Ó meu Deus, desejo vos amar tanto quanto mereceis.

Ó Maria, atraí-me todo para Deus.

Em vossas mãos entrego a minha alma e o meu corpo, minha vida e minha morte.

Quero louvar o Senhor por toda a eternidade.

Quer me consoleis, quer me aflijais, ó meu Deus, amo-vos e quero amar-vos sempre.

Ó meu Deus, uno a minha morte à morte de Jesus, e, assim unida, vo-la ofereço.

Ó vontade de meu Deus, és o meu único amor.

Ó complacência de meu Deus, a vós me ofereço todo.

Quando virei e aparecerei diante da face de meu Deus? Quando, Senhor, contemplarei vossa beleza infinita? Quando vos verei face a face?

Espero amar-vos sem interrupção, no céu, e vós também me amareis sempre, e, assim, nos amaremos eternamente, ó meu Deus, meu amor, meu tudo.

Ó meu Deus, quando poderei beijar essas chagas que sofrestes por meu amor?

Ó minha Mãe, Maria, quando me verei a vossos pés, junto de vós, que tanto me amastes, que tantas vezes me socorrestes?

Ó advogada nossa, volvei esses vossos olhos misericordiosos para nós, e, depois deste desterro, mostrai-nos o fruto bendito de vosso ventre.

Ó meu Jesus, não olheis para o que por vós eu fiz, mas para o que vós fizestes por mim.

Recordai-vos que também eu sou uma de vossas ovelhas, pela qual igualmente morrestes.

Estou pronto, ó meu Jesus, a ser sacrificado por vós, que vos sacrificastes incondicionalmente por mim.

Ó meu Jesus, vós vos destes todo a mim e eu me entrego também sem reserva a vós.

Ó meu Salvador, vós padecestes muito mais por mim do que eu por vós, e vós éreis inocente, e eu pecador.

Apresentando ao doente o crucifixo, diga-se:

Beija esses pés que tanto se fatigaram em te procurar para te trazer a salvação.

Ó meu amado Salvador, abraço vossos pés como Madalena; fazei-me ouvir que estou perdoado.

Ó meu Deus, perdoai-me por amor de Jesus e dai-me uma boa morte.

Ó Padre Eterno, vós me destes vosso divino Filho; entrego-me todo a vós.

Ó meu dulcíssimo Jesus, não permitais que eu me separe de vós.

Quem me separará do amor de Cristo?

Meu Senhor Jesus Cristo, jor aquela amargura que vossa alma santíssima padeceu ao separar-se de vosso corpo sagrado, compadecei-vos de minha alma pecadora ao deixar meu corpo. — Amém.

Meu Jesus, vós morrestes por amor de mim e eu também quero morrer por amor de vós.

Se a agonia começa, continue-se a fazer com o moribundo atos de fé, de esperança, de caridade, de contrição. Deve-se aspergi-lo muitas vezes com água benta para expelir os maus espíritos. Faça-se amiudadas vezes o sinal da cruz sobre ele. Apresente-se-lhe, de tempos a tempos, o crucifixo ou a imagem da SS. Virgem para beijar.

Mande-se os circunstantes rezar o terço ou a ladainha de Nossa Senhora por ele. Finalmente, aproximando-se o momento da morte, ponha-se-lhe na mão a vela benta como sinal de que quer partir deste mundo professando a santa fé católica.

G. Da caridade para com as almas do purgatório. — A caridade exige que socorramos o nosso próximo, quando necessita de nosso auxílio e nós podemos ajudá-lo sem grande incômodo nosso. Ora, as almas do purgatório acham-se entre os nossos próximos, pois, apesar de não viverem mais neste mundo, não deixam de fazer parte da comunhão dos santos. “As almas dos falecidos em piedade não estão separadas da Igreja”, diz S. Agostinho. S. Tomás exprime-se mais claramente ainda. Segundo ele, a mesma caridade que nos leva a amar o próximo aqui na terra, deve se estender também àqueles que morreram na graça de Deus. Por conseguinte, devemos socorrer com todos os meios possíveis as almas do purgatório como a nossos próximos, e porque se acham em maior necessidade que nossos irmãos vivos, parece que temos maior obrigação de auxiliá-las que a estes.

Mas em que consiste propriamente os sofrimentos desses pobres prisioneiros? Certo é que suas penas são atrocíssimas. Segundo S. Agostinho (In ps. 37) o fogo lhes causa um tal tormento que sobrepuja tudo o que o homem pode sofrer aqui na terra. O mesmo ensina. S. Tomás, que ajunta que o fogo é o mesmo que o do inferno.

Isso quanto ao que se refere as penas dos sentidos; muito maior, porém, é a pena ocasionada pela privação da visão beatifica. Por se sentirem essas esposas amantes de Jesus Cristo, de um lado atrai-das com grande veemência para seu sumo bem, em vista do ardente amor de Deus, não só natural como também sobrenatural, e, de outro lado, repelidas com força ainda maior de sua união, por causa dos pecados ainda não expiados, padecem uma dor tão intensa que, se fosse possível, morreriam a cada instante.

A privação, pois, da visão de Deus é para as pobres almas uma pena incomparavelmente maior que todos os tormentos dos sentidos.

Por isso as santas esposas de Cristo estariam prontas a suportar qualquer outro tormento em vez da privação, mesmo momentânea, da união com Deus, pela qual suspiram ardentemente.

S. Tomás afirma que as penas do purgatório excedem a todas as penas imagináveis desta vida (In 4 sent. d. 45, q. 2, s. 2). Um morto ressuscitado por S. Jerônimo, como nos conta Dionisio Cartu-siano, revelou a S. Cirilo de Jerusalém o seguinte: Em comparação com as dores mínimas do purgatório são todos os tormentos da terra refrigério e prazer, e ajunta que quem experimentou tais dores, preferiria sujeitar-se até ao fim do mundo a todos os tormentos da terra, a padecer um só dia a mínima pena do purgatório (De Quat. Nov. a: 5). Por isso escreve o sobredito S. Cirilo a S. Agostinho que as penas do purgatório, quanto à sua atrocidade, igualam as do inferno, com a única diferença de que não são eternas.

Duma parte, os sofrimentos das almas do purgatório são imensamente grandes, e doutra parte não se podem procurar o mínimo refrigério a si mesmas, porque, na expressão de Job, “se acham acorrentadas e ligadas com cordas da pobreza” (Job 36, 8). Essas almas são rainhas, mas não podem se apossar de seu trono antes de inteiramente purificadas de suas faltas. Se quisermos aceitar a opinião de alguns teólogos, que asseveram que elas podem se procurar algum alívio por meio de suas próprias orações, não podemos, contudo, negar que lhes é impossível libertarem-se de suas cadeias antes de terem satisfeito plenamente a justiça divina.

Sendo, porém, certo, e até dogma de fé, que nós podemos aliviar as pobres almas por meio de nossas boas obras e, particularmente, da oração, o que a Igreja não só nos recomenda instantemente, como também o pratica, não vejo como possa se isentar de falta quem negligencia socorrê-las, ao menos por meio da oração. Mesmo que o dever a isso não nos constrangesse, já a alegria que causamos a Jesus, libertando essas suas santas esposas e acelerando sua união com elas, nos deveria mover a correr em seu auxílio.

Além disso, que de merecimentos não adquirimos socorrendo a essas almas santas; elas certamente não serão ingratas e saberão apreciar a grandeza do benefício que lhes prestamos, abreviando, por nossas orações, o tempo de seus sofrimentos e apressando sua entrada no céu. Se o Senhor promete misericórdia aquele que é misericordioso para com seu próximo: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7), pode-se, com a maior confiança, esperar a própria salvação, contanto que nos empenhemos em auxiliar essas almas, que tanto padecem e que são tão caras a Nosso Senhor. S. Agostinho nos assegura que quem mais socorrer essas santas almas do purgatório, será também mais socorrido por outros, quando se achar por sua vez no purgatório, em razão de uma providência especial de Deus.

Notemos ainda, quanto à prática desse dever de caridade, que podemos fazer-lhes um enorme bem assistindo à Santa Missa em favor delas e pedindo então por elas ao Eterno Pai, oferecendo-lhe os merecimentos de Jesus Cristo, dizendo, por exemplo: “Pai Eterno, eu vos ofereço este santo sacrifício do corpo e sangue de Jesus Cristo, juntamente com todas as dores que teve de suportar durante sua vida e na sua morte. Pelos merecimentos de sua paixão, recomendo-vos as almas do purgatório, em especial a de . . . . . .”

Procuremos também aplicar às almas o maior número possível de indulgências. Não precisamos temer que então não poderemos satisfazer por nossos próprios pecados. O Pe. Rossignoli conta que S. Gertrudes, no leito de morte, mostrava-se muito triste, pensando que nada tinha feito por sua alma, visto ter aplicado sempre tado o bem que praticava às almas do purgatório. Apareceu-lhe então Jesus Cristo e disse-lhe: “Não temas, Gertrudes, pois aceitei com tanto gosto o teu amor para com as almas, que serás preservada do purgatório depois de tua morte, e até te farei acompanhar ao céu por minhas amadas esposas que livraste do purgatório por tuas orações” (Marav. di Dio, p. 2).

Excerto de: Pe. EDOUARD SAINT-OMER, C.SS.R (org.); Escola da Perfeição Cristã, II “Do Exercício das Virtudes”, IV “Do Amor do Próximo”, Nebli, ano desconhecido, pp. 153-175.

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