O CASO JÚLIO LANCELLOTTI, TEOLOGIA DO CORPO E A RELIGIÃO NOVUS ORDO

COMO A RELIGIÃO NOVUS ORDO FAVORECE OS ESCÂNDALOS

Luciano Takaki
2024

[ADENDO: Alguns afirmam que o vídeo mencionado seria falso e editado com inteligência artificial e que até mesmo o Ministério Público reconheceu isso (que órgão confiável para confiar, não?), pois esse vídeo dataria de 2020. Seja como for, dou duas razões para manter esse artigo aqui: (1) mesmo concedendo que o vídeo seja falso, isso não invalida o artigo em si, pois o caso do Júlio Lancellotti participa do objeto do artigo, mas não é o principal; (2) ademais, ainda há a questão da perícia recente que confirma a veracidade do vídeo, o que torna o vídeo muito provavelmente verdadeiro e que nos faz crer que o Ministério Público ou mentiu ou foi demasiado incompetente.]

INTRODUÇÃO: UM ESCÂNDALO NÃO SURPREENDENTE

Recentemente, o dito Padre Júlio Lancellotti foi acusado de aliciar um menor de idade com uma vídeo-chamada indecorosa e um estudo realizado por peritos teria confirmado a sua autenticidade. Alguns seguimentos de direita apressou-se em associar Júlio Lancellotti à teologia da libertação e tudo isso à infiltração comunista etc. Claro que tudo isso tem um fundo de verdade, mas não podemos também nesse afã analisar tudo isso sob um ponto de vista monocular, mas com honestidade e com amor à verdade. Devemos entender que isso é uma consequência de um movimento dentro da Igreja que vem de décadas, não apenas de um movimento “de esquerda” recente com a dita teologia da libertação.

Coincidentemente, o escândalo envolvendo o sacerdote escancaradamente de esquerda ocorreu pouco mais de um mês após a publicação da declaração Fiducia supplicans, que libera bênçãos “não litúrgicas” (sic) a pares sodomitas (cf. numerais de 31 a 41). O documento foi redigido pelo Cardeal Víctor Manuel Fernández, autor de livros com erotismo explícito como La Pasión Mística: Espiritualidad y Sensualidad (Ediciones Dabar, 1998), livro com passagens pornográficas e blasfemas. Um detalhe interessante é que Francisco conhecia esse livro e mesmo assim o elegeu cardeal, um livro com uma passagem como essa:

“… se Deus pode se fazer presente nesse nível de nossa existência [no “centro anímico-corpóreo de prazer, de modo que se experimenta uma satisfação que abarca a toda a pessoa”], também pode fazer-se presente quando dois seres humanos se amam e chegam ao orgasmo; e esse orgasmo, vivido na presença de Deus, pode ser também um sublime ato de culto a Deus.”
(p. 85. Tradução livre e grifos e acréscimo meus)

A razão pela qual coloquei esse fato é que Francisco é no mínimo um dos cúmplices juntamente com seus predecessores. Cada um nos seus respectivos antipontificados. O site ACI Digital mesmo expõe que esse livro era conhecido por Francisco. No entanto, não para por ai. Investiguemos um pouco o que já foi ensinado.

DA GAUDIUM ET SPES AO CHRISTOPHER WEST

O caso do Júlio Lancellotti não é meramente isolado e nem é um raio que caiu de um sol sem nuvens. O caso dele é um dos muitos outros que muito provavelmente infestam o clero novus ordo e até mesmo parte do clero tradicional. A dinamitação da Religião católica afetou a todos em diversos níveis, pois a impressão que se tem é que a própria Igreja deixou de ser a fortaleza segura contra os ataques do mundo. Pelo contrário, resolveu abraçá-lo. No entanto, tendo as luzes necessárias, podemos confirmar com uma boa investigação as raízes de tudo isso.

Muitos falam da infiltração comunista no passado, como, por exemplo, a confessada pela Maria Assunta Isabella Visono, mais conhecida como Bella Dodd. Claro que isso tem a sua relevância também, mas não explica tudo. Por mais isso seja real e tenha sua importância, não podemos elevar em demasia a importância disso a ponto de transformá-lo em cortina de fumaça. Para compreender a evolução do caso, comecemos analisando a constituição Gaudium et spes, do Vaticano II:

“A Palavra de Deus convida repetidas vezes os noivos a alimentar e robustecer o seu noivado com um amor casto, e os esposos a sua união com um amor indiviso. E também muitos dos nossos contemporâneos têm em grande apreço o verdadeiro amor entre marido e mulher, manifestado de diversas maneiras, de acordo com os honestos costumes dos povos e dos tempos. Esse amor, dado que é eminentemente humano — pois vai de pessoa a pessoa com um afecto voluntário — compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais peculiares do amor conjugal.” (n. 49)

Mais à frente no mesmo numeral:

“Este amor tem a sua expressão e realização peculiar no acto próprio do matrimónio. São, portanto, honestos e dignos os actos pelos quais os esposos se unem em intimidade e pureza; realizados de modo autenticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega pela qual se enriquecem um ao outro na alegria e gratidão.”

No entanto, não é apenas a Gaudium et spes que apresenta essa inversão aparente. Também lê-se na Lumen gentium:

“… os cônjuges cristãos, em virtude do sacramento do Matrimónio, com que significam e participam o mistério da unidade do amor fecundo entre Cristo e a Igreja, auxiliam-se mutuamente para a santidade, pela vida conjugal e pela procriação e educação dos filhos, e têm assim, no seu estado de vida e na sua ordem, um dom próprio no Povo de Deus.”
(n. 11. Grifo meu)

Somente no numeral 50 se fala de prole, que é a finalidade do Matrimônio. Mas podemos perceber uma linguagem já um tanto inusual e inadequada. Principalmente nos anos 1960, quando a Revolução Sexual já estava em marcha e explodiu em 1968. Ou seja, tudo isso já estava em germe desde décadas atrás. Podemos ver que o próprio João Paulo II ensina:

A teologia do corpo, que desde o princípio está ligada à criação do homem à imagem de Deus, torna-se, em certo modo, também teologia do sexo, ou antes teologia da masculinidade e da feminilidade, que aqui, no Livro do Génesis, encontra o seu ponto de partida.”
(Audiência geral, 14 de novembro de 1979. Grifos meus)

E ainda:

“Precisamente esta consciência [do sentido próprio do corpo], através da qual a humanidade se forma de novo como comunhão de pessoas, parece constituir o estrato que na narrativa da criação do homem (e na revelação do corpo nela incluída) é mais profundo que a sua mesma estrutura somática como macho e fêmea. Em ambos os casos, esta estrutura é apresentada desde o princípio com profunda consciência da corporeidade e sexualidade humana, e isto estabelece uma norma inalienável para a compreensão do homem no plano teológico.”
(Idem. Acréscimo meu)

Não podemos deixar de notar aqui a ênfase no corpo e na complementaridade entre o homem e a mulher que Wojtyla dá. Isso já no ano seguinte à sua eleição. A inversão dos fins do Matrimônio, que muitos alegam ser apenas aparente, tanto nos documentos do Vaticano II como pelo que Wojtyla ensina até aqui, se explicita no Código de Direto Canônico de 1983:

“O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os baptizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento.”
(cân. 1055, §1. Grifo meu)

Então, chegaremos em gente como o Christopher West. Christopher West é o maior especialista vivo na chamada tal teologia do corpo. Ele é endossado por quase todo o clero novus ordo, mesmo sendo leigo. West escreve, por exemplo:

“Sim, o sexo é para expressar votos de casamento. É onde as palavras dos votos de casamento se tornam carne. É por isso que a relação sexual é chamada de abraço conjugal.

“No altar, a noiva e o noivo se comprometem livremente, totalmente, fielmente e frutiferamente até a morte – essas são as promessas canônicas que fazem, as promessas de fidelidade, indissolubilidade e abertura das crianças. Então, naquela noite, e durante todo o casamento, eles promulgaram seu compromisso. Eles expressam com seus corpos o que expressaram no altar com suas mentes e corações. Ao fazer isso, eles consumam seu casamento. Ou seja, eles o completam, aperfeiçoam, selam, renovam.”
(Good News About Sex & Marriage, Servant, 2018, p. 4. Tradução livre e grifo meu)

Alguém ainda poderia dizer que esse texto, apesar de, digamos, ser adiantado demais, não tem nada de errado em si, a não ser uma ênfase exagerada no sexo, mas podemos ler mais à frente:

“Sexo é sagrado. …

“A alegria do sexo — em toda a sua grandeza orgásmica — deve ser a alegria de amar como Deus ama. A alegria do sexoem toda a sua grandeza orgásmicadeve ser um gosto de alguma forma das alegrias do céu: a consumação eterna do casamento entre Cristo e a Igreja. …

“… Então, se você quiser o sexo mais incrível e cheio de alegria possível, abra bem as portas para Cristo — incluindo (e especialmente) a porta do quarto.”
(Idem, p. 27. Grifos e supressões meus)

Vemos aqui que West busca sobrenaturalizar o natural, cuja consequência é naturalizar o sobrenatural. O livro dele é bastante coerente com a teologia do corpo de João Paulo II, que tem por chão a constituição Gaudium et spes.

CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS

Uma das consequências disso tudo é o próprio modo de tratar a nulidade matrimonial. Podemos ver o número disparando nos EUA. O próprio estudo realizado pelo Pe. Becket Soule, O.P., que é um padre novus ordo, nos mostra que nos Estados Unidos houve 338 declarações de nulidade matrimonial em 1968. Em 2006, no entanto, foram mais de 27 mil declarações de nulidade (49.233 no total ao redor do mundo). E o número não para de crescer.

Francisco, ao invés de buscar frear números tão assustadores, publicou o motu proprio Mitis iudex Dominus Iesus, que visa acelerar e simplificar os julgamentos, como ele mesmo afirma:

“A fim de que seja finalmente traduzido na prática o ensinamento do Concílio Vaticano II num âmbito de grande importância, estabeleceu-se evidenciar que o próprio Bispo na sua Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a ele confiados. É desejável, portanto, que o próprio Bispo, tanto nas grandes como nas pequenas eparquias, ofereça um sinal da conversão das estruturas eclesiásticas, e não deixe completamente delegada aos serviços da Cúria a função judiciária em matéria matrimonial. Valha isto especialmente no processo mais breve, que é estabelecido para resolver os casos de nulidade mais evidente.

“Além de se tornar mais ágil o processo matrimonial, estabeleceu-se uma forma de processo mais breve – juntando-se ao documental actualmente em vigor –, que se aplicará nos casos em que a acusada nulidade do matrimónio seja sustentada por argumentos particularmente evidentes. Não me passou, todavia, despercebido quanto um juízo abreviado possa colocar em risco o princípio da indissolubilidade do matrimónio; por isso mesmo, quis que em tal processo fosse constituído juiz o próprio Bispo, o qual, em virtude do seu cargo pastoral, é, com Pedro, o maior garante da unidade católica na fé e na disciplina.”

Decerto, temos aqui a colegialidade posta em prática a serviço de verdadeiros divórcios práticos, pois as próprias dioceses são agências de divórcio. Nem mesmo a parte em que diz “não me passou, todavia, despercebido quanto um juízo abreviado possa colocar em risco o princípio da indissolubilidade do matrimónio etc” salva a reforma de Bergoglio, pois tudo dependerá do bispo e bem sabemos como são os bispos novus ordo em sua maioria. Se muitos deles não hesitam em apoiar sodomitas, porque não facilitariam esses verdadeiros divórcios?

Sobre o próprio Bergoglio, não preciso estender-me muito, o que escrevi sobre ele em “FRANCISCO, UM PROTESTANTE CONTRA OS SACRAMENTOS” parece-me suficiente.

O QUE CASO JÚLIO LANCELLOTTI TEM A VER COM TUDO ISSO?

Ao inverter os fins do Matrimônio, ao naturalizar o sobrenatural nessa matéria, ao abordar tão enfaticamente o sexo, ao facilitar o processo de nulidade matrimonial em prol da dignidade da pessoa humana a partir de uma falsa noção de misericórdia, é natural que passem a olhar para a sodomia ou mesmo pederastia (como é o caso) com mais naturalidade. Percebamos que nem precisamos entrar no âmbito da teologia da libertação e da infiltração comunista porque essas coisas não são mais que as consequências últimas do humanismo que adentrou na estrutura da Igreja.

Se o novus ordo não apenas tem padres como Júlio Lancellotti como também pessoas do alto clero favoráveis a liberação sexual como os cardeais Marx e Fernández, isso muito mais se deve ao modernismo e humanismo. Decerto a teologia da libertação potencializa mais a promoção dessa agenda, mas não é essencial para ela.

Percebamos que isso está para muito além da mera heterodoxia, que é um mal muito maior. Por mais que Wojtyla e Ratzinger tenham de alguma forma reprovado a sodomia, promoveram a teologia do corpo. Ademais, não custa lembrar que o próprio Ratzinger sinalizou que o uso de preservativos não seria de todo reprovável. Tentando esclarecer esse ponto, o site da CNBB publica uma nota e cita o Pe. Frederico Lombardi, diretor da sala de imprensa do Vaticano na época:

“O Papa não muda o ensinamento da Igreja, mas o reafirma, colocando-se na perspectiva do valor e da dignidade da sexualidade humana, como expressão de amor e responsabilidade. Na entrevista, ele se refere a uma situação excepcional, quando o exercício da sexualidade representa um risco para a vida do outro. Bento XVI não justifica moralmente o exercício desordenado da sexualidade, mas julga que a utilização do preservativo para diminuir o perigo de contágio é um primeiro ato de responsabilidade, um primeiro passo no caminho rumo a uma sexualidade mais humana.”

A própria nota também cita o entrevistador de Bento XVI, Peter Seewald, que diz que “o papa não é um ditador, mas um homem de diálogo”. Mas resumidamente, Bento XVI ensina que se o fim do uso do preservativo for evitar a transmissão da doença, isso seria justificado.

Assim também podemos aplicar ao caso do Júlio Lancellotti: uma chamada de vídeo indecorosa seria menos ruim do que o ato em si com contato direto entre ele e o menor, pois não haveria riscos para transmissão de doença e preservaria também, digamos, a integridade física do menor. Assim, o Júlio Lancellotti ensinaria um primeiro ato de responsabilidade a ele, que seria um passo no caminho rumo a uma sexualidade mais humana.

Francisco, num documentário produzido pelo progressista Evgeny Afineevsky, Francisco propôs que haja leis de união civil para que os sodomitas sejam protegidos. Se ele já propôs tal coisa, não seria surpreendente que dê orientações pastorais para bênçãos para pares sodomitas no futuro.

A Secretaria do Estado do Vaticano bem que tentou por meio de uma carta (disponível no site Instituto Humanitas Unisinos, que é extremamente progressista) salvar a situação alegando que “o Papa (sic) Francisco se referiu às disposições estatais e não à doutrina da Igreja em si”. No entanto, isso não salva de escândalo, pois essas disposições colocariam os sodomitas em uma categoria especial a tal ponto que os pares com união reconhecida mereçam um tipo de proteção legal distinta dos outros.

Como ultimamente muitos padres têm largado a batina (digo isso num sentido lato, não apenas estrito porque quase nenhum padre novus ordo usa mais) para se casar, poderíamos conjecturar que muitos futuros sacerdotes poderão largar o seu ministério para se unir com homens e ter a proteção legal como sugere Francisco. Quem sabe o próprio Júlio Lancellotti não faça isso com algum jovenzinho.

CONCLUSÃO

O escândalo, como bem quis mostrar aqui, não é (ou deveria ser) uma surpresa, mas um escândalo simplesmente. A religião novus ordo, como bem mostramos, sempre foi uma espécie de imã de escândalos. Sabemos que o escândalo aqui envolveu um sacerdote da teologia da libertação e de esquerda, mas os conservadores e direitistas omitem que o próprio João Paulo II, baseado nos documentos conciliares, também favoreceu esse tipo de coisa.

Não adianta condenar clérigos que já caíram em escândalos se a própria doutrina ensinada fomenta as paixões que levam esse tipo de coisa. Afinal, se for para tratarmos de algo tão íntimo, tem de ser tratado de forma prudente e com discrição. O que essas falsas autoridades e falsos teólogos (inclusive leigos, como Christopher West) não fazem.

Escândalo por escândalo, eles não surgem do nada. Se queremos evitar que mais casos assim surjam, devemos retornar ao que a Igreja ensina. E para retornar ao que a Igreja ensina, devemos retornar à verdadeira Igreja. E essa Igreja não é a da religião novus ordo.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑