UM “CRISTÃO” LIBERAL E UM ATEU MORNO

O FALSO DEBATE QUE FAVORECE O INDIFERENTISMO

Luciano Takaki
2024

INTRODUÇÃO

Alguém pode estranhar por que estou dando atenção a um debate ocorrido num podcast do canal “Musical FM 105.7” entre um “cristão” (Dr. Tassos Lycurgo) e um ateu morno (Dr. Sérgio Sacani). No entanto, achei importante comentar aqui alguns pontos que, aos que os acompanham e porventura podem cair aqui, valem a pena comentar.

Não me considero mais capaz que os debatedores em suas respectivas áreas, principalmente o Dr. Sacani, que é um competente divulgador científico. No entanto, escrevo aqui minhas reflexões sobre o debate, focando nos erros do ateísmo e na verdade, temas que, a meu ver, não foram abordados de forma adequada pelo Dr. Tassos.

Aproveito tal oportunidade para comentar mais sobre os erros do ateísmo e também (e principalmente) com respeito à verdade, pois tanto uma coisa como outra não tiveram uma solução adequada por parte do Dr. Tassos. Em verdade, até consegui ter mais simpatia pelo ateu Dr. Sacani do que pelo representante teísta, pois ao menos mostrou mais coerência e honestidade. O caso do Dr. Tassos ilustra as dificuldades de se refutar o ateísmo sem o uso da filosofia tomista. Sua argumentação, marcada por sua visão protestante e liberal, não conseguiu apresentar uma resposta convincente aos argumentos do Dr. Sacani. O Dr. Sacani, por sua vez, justificou o seu ateísmo no argumento da economia, o mesmo argumento que Santo Tomás de Aquino usou como segunda objeção no artigo em que o ser de Deus é demonstrado.

Sem o tomismo, o Dr. Tassos não conseguiu ser convincente em nenhum momento do debate. Comentarei aqui os pontos que chamaram-me mais atenção.

O ARGUMENTO DA ECONOMIA E A BUSCA DA VERDADE

O Dr. Tassos comete um erro logo na sua justificação da sua visão teísta. Ele apelou ao subjetivismo e fez uma distinção entre a visão de mundo moral e a visão intelectual e disse que a sua visão intelectual é o que justifica o seu teísmo. No entanto, isso não se sustenta por uma razão muito simples: a visão de mundo moral depende do intelectual porque o agir humano (objeto da moral) depende essencialmente do que o homem conhece. Mas o que mais interessa-me aqui é o que Dr. Sacani expõe em seguida.

Dr. Sacani justifica o seu ateísmo a partir do argumento da economia (5 min. 30s). Segundo Sacani, para ele (também apelando ao subjetivismo), as explicações pelas causas naturais já são o suficiente e isso dispensa uma explicação sobrenatural. Como “bom” ateu, Sacani relativiza a noção de verdade, dizendo que “a ciência não busca a verdade, mas explicações” (?!). Ora, se eu cresse totalmente na sua afirmação, não teria nenhuma razão para acompanhar nenhum trabalho dele e creio que na prática ninguém acredita totalmente no que ele disse por uma razão muito simples: todos acreditam no fundo que a ciência busca sim a verdade. Se cremos em um dado científico, é porque cremos que esse dado científico é verdadeiro. Se os livros de ciência dizem que a molécula de água é composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (por isso a representamos pela fórmula H2O), é porque cremos que tal informação é verdadeira. No entanto, relevo o que o Dr. Sacani afirmou, que é uma grande bobagem, mas escandalizo-me quando vejo o teísta Dr. Tassos concordando com esse disparate!

A partir do momento em que o teísta concordou com tal absurdo, sua fragilidade se escancarou e ficou perceptível que o ateu Dr. Sacani ficou muito mais à vontade. Provavelmente ninguém que assistiu ao “debate” (que na verdade era mais um bate-papo pautado) deixou o ateísmo. Praticamente negando a existência da verdade, todos os argumentos do Dr. Tassos ficaram fragilizados.

O tomismo atesta o seguinte: (1) a verdade é; (2) todos os entes são de alguma forma verdadeiros; (3) Deus é simpliciter a própria verdade, sendo Ele o Ipsum Esse subsistens (cf. A PROVA MAIS PERFEITA DO SER DE DEUS).

A verdade é a adequação entre a coisa e o intelecto, como sabemos. A coisa como está na mente deve corresponder ao que está na realidade e vice-versa. Por mais que a verdade esteja antes na mente, deve sempre corresponder à coisa que está na realidade. A coisa sempre será verdadeira enquanto inteligível e correspondente ao que está na mente divina. Por isso que Deus é a própria verdade, pois tudo se adequa à mente divina e Ele é o Seu próprio inteligir.

Como estamos num debate com um ateu, devemos ficar no (1) e (2). No entanto, devemos enfatizar a necessidade de que a ciência deve sim buscar a verdade e reconhecer a verdade da coisa. Ou é assim ou a ciência é absolutamente inútil, pois perdeu o seu próprio objeto. Conhecer a coisa é necessariamente conhecer a sua verdade.

Isso se repetirá mais à frente do “debate” (22 min.), que comentarei mais tarde. Tal atitude, evidentemente, forçou o teísta a dar inúmeras concessões, deixando o Dr. Sacani cada vez mais à vontade.

SEM A VERDADE DA COISA, PERDE-SE A VERDADE SOBRE DEUS

O conhecimento de qualquer coisa implica necessariamente conhecer a verdade dessa coisa. Isso forçou o Dr. Tassos, por alguns minutos, a tratar da “existência” de Deus como mera possibilidade, ainda que mais provável. Tal brecha, evidentemente, foi explorada por Sacani, que se aproveitou de sua autoridade como cientista para se impor (o Dr. Tassos é advogado e, embora tenha erudição, não chega nem perto do experiente Sacani).

No minuto 22, como dito acima, o Dr. Tassos citou o Dr. Sacani ao dizer que a ciência não se preocupa com a verdade e que o físico busca apenas controlar e prever os fenômenos. Segundo Sacani, a verdade deveria ser a preocupação dos filósofos, que forneceriam apenas as premissas científicas.

Isso é absolutamente falso. Dr. Tassos mostra que nunca lidou com a filosofia verdadeira, mas faz a grotesca distinção entre ciência e filosofia, pois a própria filosofia e a própria ciência tem o mesmo fim: o conhecimento do verdadeiro e do necessário. Logo, são a mesma coisa com uma distinção de meios diferentes. A filosofia propriamente dita (metafísica) busca conhecer segundo os princípios mais universais. À ciência podemos chamar de filosofia natural, pois busca conhecer o verdadeiro e o necessário segundo suas causas mais universais. A Metafísica tem um objeto mais amplo: é o ente enquanto ente, enquanto a filosofia natural, que podemos chamar de física geral também (é o que chamam ordinariamente de ciências), sempre tem por objeto o ente móvel, i.e., que de alguma forma pode passar da potência ao ato. Todo conhecimento em todo tipo de caso deve ser necessariamente verdadeiro e, portanto, sempre implica verdade.

A partir do momento em que o Dr. Tassos diz que a ciência busca somente “controlar e prever fenômenos”, cai no erro de Francis Bacon e também de Kant. Kant dispensa mais comentários, pois ele julga que não podemos conhecer a coisa-em-si (noumenon) pela razão teórica (especulativa para nós, tomistas), mas somente pela razão prática (cf. Crítica da Razão Pura). A razão especulativa ficaria restrita somente aos fenômenos. Kant tinha a claríssima intenção de limitar a razão teórica, que tinha, de alguma forma, de ser limitada nos limites da experiência. Ao colocar a coisa-em-si ao alcance da razão prática, Kant mostrou claramente a sua intenção também de favorecer mais a prática do que o próprio uso do intelecto. Isso será absolutamente destruidor para a filosofia. Assim, Tassos, querendo ou não, favoreceu muito a Kant. Lembrando ainda que as categorias dos fenômenos das coisas para Kant já são conhecidas a priori e que nós que atribuímos às coisas. E isso tem tudo a ver com as pretensões de Francis Bacon.

Bacon, em seu Novum Organum, tinha uma intenção clara: alterar a natureza das coisas. É certamente uma má compreensão do primeiro capítulo do Gênesis, onde Deus ordena que devemos dominar as criaturas (vv. 26 e 28). Bacon ensina que “o homem é o ministro e intérprete da natureza” (Novum Organum, lib. I, 1) e que “o conhecimento e poder humano são sinônimos” (idem, 3). Bacon chega a tal nível de utilitarismo que chega a dizer que “o que é mais útil na prática, é ao mesmo tempo o mais verdadeiro na ciência” (idem, lib. II, 4). O Dr. Tassos parece seguir o princípio de que a ciência tem a obrigação de ser antes útil que dar conhecimento. Concordar com o ateu Dr. Sacani nos mostra bem isso — nega a verdade em nome da utilidade.

Negando tal princípio, ele pode conseguir mostrar que a “existência” de Deus é útil, mas é incapaz de demonstrar que é verdadeira.

O PROBLEMA DO MAL SEGUNDO C.S. LEWIS E DR. TASSOS

Por volta dos 37 minutos, Dr. Tassos usa o argumento de Lewis de que podemos conhecer a Deus a partir do argumento moral. Alguns creem que poderia ser análogo à quarta via de Santo Tomás de Aquino, mas tal não é verdade. A quarta via se fundamenta nos graus de perfeição e não na existência de males. Não é Deus que nos faz perceber a existência do mal no mundo, a não ser remotamente, mas sim as perfeições. Deus é a causa direta das perfeições e por isso são elas que nos apontam para Deus e não os males. Os males são ou ausência de bem ou uma desordem.

Dr. Sacani após ouvir, novamente joga tudo para o lado subjetivo. Como Tassos é protestante e o canal é de protestante, Sacani novamente se sentiu à vontade em responder num tom subjetivista que agradou os ouvidos. Vale lembrar, como ele mesmo disse, ele não é ateu militante. Simplesmente disse que, para ele, se crer em Deus faz bem à pessoa, que creia.

A TENTATIVA FRUSTRADA DO DR. TASSOS EM TENTAR SAIR DO SUBJETIVISMO E O CETICISMO DO DR. SACANI

Logo após Sacani dizer o que foi acima dito, Tassos interveio alertando que, para o cristão, isso não é suficiente. Ele trouxe uma citação de São Pedro e o maior dos mandamentos na resposta de Jesus a um fariseu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito” (Mateus XXII, 36). Simplesmente não foi capaz de ir além disso. Sacani apenas comentou que entendeu e que, para o cristão, é preciso ir “mais além”. Novamente, ele caiu no subjetivismo.

A vantagem do católico é não depender da subjetividade de cada indivíduo, mas sim do exercício do Magistério da Igreja. É o Magistério, cujo sujeito é o Papa, o autêntico intérprete da Sagrada Escritura. O católico tradicional, numa discussão dessas, chocaria os presentes, mas não ocultaria a verdade. Ele não colocaria a candeia debaixo do alqueire.

O argumento simplesmente não fez diferença para Sacani, que foi perguntado em seguida sobre o que seria necessário para ele crer em Deus. Ele resumiu que seria necessário um sinal inequívoco e empírico. Não usou essas palavras, mas a forma como disse dá a entender exatamente isso.

Sacani é um escravo do cientificismo e do empirismo. Ao partir sempre das premissas de que apenas os conhecimentos das ciências naturais e a partir dos experimentos empíricos valem, o raciocínio lógico e reflexões metafísicas se tornam impossíveis. E mesmo as ciências naturais, sob a perspectiva de Sacani, não são segundo o entender aristotélico-tomista, de que essas ciências são do ente móvel, daqueles que passam da potência ao ato, pois o movimento para cientistas modernos, como Sacani, resume-se ao local. As quatro causas resumem-se à material e mesmo a causa eficiente é posta em xeque. Se ele tivesse ao menos essas noções em mente e as aceitasse, seria impossível ele ser ateu, pois a exigência de um primeiro motor imóvel, uma causa incausada etc, tornaria até natural a crença em Deus, que seria confirmada pela fé sobrenatural.

A RELIGIÃO REALMENTE NÃO DEVE SE METER NA CIÊNCIA?

O ponto mais crítico é quando Sacani diz que o problema maior é a religião (em sentido lato) influenciar as investigações da ciência. Mas será que isso é realmente um problema?

Vejamos: o homem não age sem nenhum motivo. Todas as suas ações são ordenadas a um fim determinado. Se o homem come, é com a finalidade de se sustentar. Se o homem bebe água, é para matar a sede e assim se manter.  Mas pergunta-se: se sustentar ou se manter para quê? Para trabalhar? Trabalhamos para comer e comemos para nos sustentar para podermos trabalhar? Ficaríamos num ciclo ridículo. Não estudamos, não trabalhamos etc, para depois cairmos num fim em si mesmo. Ao contrário do que o ímpio Kant ensinava, não somos um fim em si mesmo.

Kant entendia a religião como mero conhecimento dos nossos deveres morais como mandamento divino. Segundo Kant, a Igreja reduzir-se-ia a mero reino moral de Deus e é ela é verdadeira na medida em que o homem possa se realizar nesse reino. Kant é verdadeiramente o pai da religião do Dr. Tassos e de certa forma também do ateísmo do Dr. Sacani. Como Kant buscou refutar os argumentos para a “existência” de Deus, ele O reduziu a mero pressuposto do Imperativo Categórico. Como se Deus fosse mera exigência moral. Isso explica o fato do Dr. Tassos evocar o argumento da lei moral de Lewis. Mas retornemos.

O homem tem uma causa final que necessariamente deve ser extrínseca a ele como em todas as coisas. Se a faca serve para cortar, deve cortar o que é distinto dela. Se o óculos deve corrigir a vista, não é a sua vista. O homem não comporta o seu fim, pois ele não tem em si mesmo a sua própria realização (ele mesmo não é a sua causa eficiente). Apenas Deus pode ser um fim em si mesmo porque não é causado. Ademais, o homem um dia morre e ele deve buscar o seu fim enquanto é vivo. Sacani não tem a noção do fim último e ele não vê tais ordenações de fins. O ateísmo o impede de enxergar isso. A concepção de uma causa final, de uma concepção teleológica, é inaceitável para um ateu pois complica muito as suas convicções. Com efeito, se todas as coisas têm uma causa final, então as coisas naturais possuem suas formas segundo a ordem de um ordenador. Em outras palavras, as coisas naturais (sejam vivas ou não) são o que são segundo a ordem de um agente inteligente.

Se há uma causa final para qual fomos feitos, acabamos de alguma forma vivendo para essa causa. Como Deus só pode ser um (pois a existência da causa final nas coisas demonstra que há um Deus e isso é demonstrado em diversos escritos neste site), apenas um deve ser o meio de alcançar o fim último porque Deus é o fim último.

O ÁPICE DA NOCIVIDADE

Querendo manter a “política de boa vizinhança”, depois do Sacani dizer que não quer “impor” o seu ateísmo, Tassos diz que nós, “cristãos”, também pensamos igual. Segundo Tassos, não somos nós que buscamos converter as pessoas, mas sim o Espírito Santo.

Isso parece muito a política atual do clero da religião novus ordo. Não devemos converter ninguém. Sinceramente, não consigo entender por que ele ainda se diz cristão com esse disparate. O verdadeiro cristão se preocupa com a salvação do próximo e cremos com fé teologal que não podemos nos salvar sem a mesma fé.

Sim, é o Espírito Santo quem nos converte. No entanto, Deus muito raramente atua (diretamente) em quem Ele deseja converter. Geralmente, Ele usa instrumentos, que são os pregadores, os missionários etc. Aquele que não prega o Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo que seja com seu mero exemplo, com o intuito de que o outro se converta, não pode ser considerado digno de ser chamado cristão. Ou o sr. Tassos quer colocar a sua candeia debaixo do alqueire?

Sim, sabemos que o sr. Tassos em última instância não pode sequer ser considerado um cristão, porque os cristãos propriamente ditos são os católicos. No entanto, o seu modo de pensar mostra o quão um protestante dista do católico. Nós, os católicos, queremos converter a todos porque extra Ecclesiam nulla salus. Para o protestante simplesmente não faz diferença crer em Cristo ou não.

CONCLUSÃO — O “ANTIATEÍSMO” DO PROTESTANTE CAMINHA PARA O ATEÍSMO

A apologética protestante em última instância favorece o ateísmo. A falsa noção de fé somada a uma tradição filosófica alheia ao tomismo não convence; e mesmo que convença alguns, o perigo ateísta sempre rondará a mente do “convertido”. O tomismo nos fornece os termos e o instrumental para nos dar uma convicção firme.

O Dr. Tassos não convence em nenhum momento, não dá um único argumento imperioso. As cinco vias tomistas mostram realmente a necessidade de Deus, ao tempo que os argumentos de Tassos mostram um Deus meramente possível e que não faz do ateísmo uma descrença culpável, que leva a alma ao inferno. Por isso digo que o debate favorece o indiferentismo. Favorecendo o indiferentismo, favorece o ateísmo, como ensina o Papa Pio XI:

“Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, [indiferentismo] pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

“Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.” (Carta encíclica Mortalium animos, 6 de janeiro de 1928. Grifos meus.)

Assim encerro o artigo.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑