A NOSSA NATUREZA E AS VIRTUDES TEOLOGAIS

INTRODUÇÃO

Quando o jovem rico procurou o Nosso Senhor Jesus Cristo, ele perguntou o que era necessário para conseguir a vida eterna. Cristo respondeu que se deve seguir os mandamentos (Mc X, 19). Jovem rico disse que já fazia isso desde a mocidade. Faltava ser perfeito e para isso, o Senhor disse: «uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me» (v. 21). Parece radical e o é, mas não é exagerado, razão por que quem disse foi o próprio Verbo encarnado e sendo Cristo o próprio Deus, é justo que pedisse isso.

Percebe-se que o jovem rico mostra interesse na vida eterna e em seguir o Senhor. Lemos que o rico foi correndo e ajoelhou-se diante dele (Mc X, 17). O jovem rico quis seguir a Cristo. Ele o amou e Cristo também o amou. Como sabemos, o rico foi sincero com o Senhor quando disse que cumpria os mandamentos desde sua mocidade (v. 20). Isso fez o Senhor o olhar com amor, e o olhar com amor de Cristo, como observa São Beda o Venerável, mostra que o jovem rico falou com sinceridade, pois ele realmente observava os mandamentos. Seguia aquilo que Deus determinou por meio de Moisés. Caso ele mentisse, provavelmente Cristo o repugnaria imediatamente ou mesmo este jovem nem se aproximaria dele.

Olhando as circunstâncias em que tudo isso ocorre, vemos o seguinte: antes de Cristo fazer a proposta que faz o jovem rico afastar-se dele, temos Ele abraçando e abençoando as crianças após dizer «deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham» (Mc 10, 14). Essa passagem explicita que devemos ter a humildade delas, pois sabem que são pequeninas diante do Senhor e também devemos ser confiantes no Pai, pois se Ele as abraçou, devemos lançarmo-nos nos seus braços e assim sermos abençoados. Faltou, então, ao jovem rico a confiança destas crianças e a vontade de ser perfeito devido ao seu apego aos bens desse mundo. Assim, Cristo soltou a fatal frase que muitos repetem sem entender: «É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus» (Mc X, 25). O rico até pode ter suas riquezas, mas não se apegar desordenadamente a elas. Daí a necessidade da busca da perfeição cristã, pois, como bem escreve o Pe. Réginald Garrigou-Lagrange que “não se deve distinguir demais a santificação e a salvação, porque a negligência na santificação pode fazer perder a salvação” (O Homem e a Eternidade – A vida eterna e a profundidade da alma, Ecclesiae, 2018, p. 194).

Aqui se inicia a verdadeira vida cristã, que é absolutamente a busca pela perfeição por amor a Deus e o temor filial, como o filho tem pelo pai. Quando buscamos trocar também não apenas o temor servil, do medo do inferno, pelo temor filial, mas principalmente o mero amor servil dos judeus pelo amor filial. Quando não mais nos limitamos a cumprir as obrigações dos mandamentos, mas sim irmos além até o dito amor esponsal, o amor de entrega como a da esposa para com o esposo. Pois, as crianças, longe de querer desagradar os pais, se entregam a eles. O bom filho é capaz de fazer tudo pelos pais e quem é melhor pai que o próprio Deus? Sendo Deus a própria bondade, convém que nos entreguemos a Ele. Mas como podemos nos entregar a Ele? Pela busca da santidade, que também chamamos de perfeição cristã. E para alcançar tal nível de perfeição, não há outro caminho senão pelos exercícios ascéticos e místicos. Porém, sendo a parte mística praticamente misteriosa em si mesma, devemos primeiro focar na parte ascética, que antecede. Nos santos em geral chega quase que naturalmente.

Primeiramente, há de se entender que a perfeição absoluta se alcança tão somente na bem-aventurança no Reino dos Céus porque lá goza-se da visão beatífica e assim temos o conhecimento de Deus como Ele realmente é e também a sua posse. A perfeição cristã nessa vida é relativa e se alcança mediante o cumprimento do que Deus ensinou pelas suas revelações que constam em duas fontes: a Sagrada Escritura e a Tradição. Fez-se necessário, todavia, que ao longo dos tempos a forma de transmissão dos dados da revelação fosse se adaptando conforme a própria vida das pessoas fosse mudando. Com efeito, a forma de linguagem de quem viveu na época de Cristo, fora o idioma, não é a mesma do período medieval por diversos fatores, tal como também, além do período histórico, há também todo o contexto cultural, político e geográfico. Assim sendo, ao longo do tempo, com o surgimento de muitas heresias e falsas religiões, foram necessários concílios e aprofundamento dos ensinos teológicos. Hoje, ser santo parece ser de alguma forma fácil, pois temos toda uma estrutura que nos mostra todos os pormenores o caminho para a santidade. Por outro lado, ser santo parece ser dificílimo, ou mesmo quase impossível, devido aos assaltos do mundo.

Todavia, apesar do mundo, que hoje é mais forte do que nunca, Deus nunca nos deixou e disse por seu Filho: «Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo» (Mt 28, 20). Cristo estará conosco até o fim do mundo e nos ajudando a sermos perfeitos. Não meros cumpridores dos mandamentos, mas generosos santos, pessoas dispostas a se entregar totalmente para Deus e por Deus. Para que se alcance a perfeição, é necessário ter as três virtudes teologais. São virtudes teologais aquelas que têm como Deus, o nosso fim último (S.Th. II-II, q. 4, a. 7, corpus), por objeto dos quais se tratará depois. Primeiramente, antes de tudo, é necessário tratar sobre o próprio ser humano, o homem, pois para entender o que buscamos, é necessário entender a matéria desse fim, isto é, a causa material, que é o próprio homem, para depois compreender os meios e assim a forma, que é a perfeição mesma do homem.

DA NATUREZA DO HOMEM E A AÇÃO HUMANA

Para entrar no caminho da perfeição, é necessário primeiro compreender o que nós somos e o nosso fim. Afinal, não podemos aperfeiçoar aquilo que não sabemos o que é e se não soubermos para o que é. O que é o homem e para que ele existe? O homem é definido pelos escolásticos como: substância vivente sensível racional. Analisemos cada uma das partes.

O homem é substância. Pois o homem é algo que é por si, assim como é uma pedra. A pedra não tem o ser em outra coisa como tem a brancura, por exemplo. A brancura é um acidente, pois tem o ser em outrem, como, por exemplo, o urso polar. A brancura do urso polar só existe no urso polar, mas não por si mesmo. O homem, portanto, é uma substância.

O homem é vivente. Pois o homem é mais senhor dos seus acidentes do que as substâncias não viventes. Assim, o homem possui uma forma substancial diferente das pedras, pois há na forma do homem um gênero de potências que encontramos nos vegetais: nutritiva, que cuida da nutrição do corpo; aumentativa, que converte os nutrientes em nós mesmos e nos faz crescer; e geradora, que faz com que nos reproduzamos.

O homem é sensível ou animal. Tal como os cães, macacos e ostras, o homem possui sentidos. Todavia, os animais são distintos um dos outros. Por quê? Porque a forma deles conhecerem é diferente e assim vemos animais com uns sentidos e privados de outros. Assim, como uns animais só possuem o tato, como alguns mariscos; outros são privados da visão e audição, mas possuem outros, como certos insetos; outros possuem a visão, mas não a audição, como os peixes; e assim há os perfeitos, como a maioria dos mamíferos e aves com os cinco sentidos. Como se vê, todos os animais possuem ao menos o tato porque mesmo os outros sentidos possuem algo de tato, mas o tato é o princípio do conhecimento natural, pois por ele sabemos se está frio, quente, se tal coisa é áspera, lisa etc. A visão, é o mais perfeito dos sentidos, mas não é presente em todos os animais (S. TOMÁS DE AQUINO; In I Metaphysica, lec. I, 9). Os animais ainda possuem os sentidos internos: sentido comum, que reúne os dados das paixões da alma, que são os influxos que ela recebe a partir dos sentidos externos, como o que viu, ouviu, sentiu etc; memória, que guarda as experiências sensíveis; imaginação ou fantasia, que formam a imagem sensível ou fantasma a partir das experiências sensíveis; e a estimativa, que faz o animal identificar a coisa como necessária a eles ou desnecessária ou perigosa. No homem, a estimativa dá lugar à cogitativa, pois o homem para identificar a coisa como boa ou má usa a razão, assim a cogitativa já é parte dela, e por isso, podemos chamá-la de razão inferior.

Por fim, o homem é racional. Aqui é necessário ainda entender o seguinte: a razão humana é o próprio intelecto em operação no tempo, isto é, na sucessão de movimentos presentes. Diferente do intelecto angélico, o homem depende do corpo para abstrair aquilo que ele padece pelos sentidos. A partir do momento que o homem recebe os influxos e gera a imagem sensível, ele abstrai dessa imagem a quididade da coisa, formando a concepção mental pelo qual irá raciocinar. O anjo, pela sua natureza superior e por não ter corpo, ele não possui tal limitação e assim abstrai tudo num único ato.

Assim, vemos três partes potenciais da alma que distinguem três gêneros de potências da mesma alma. Assim, as potências da parte vegetativa da alma, apesar de serem fundamentais, são inferiores às potências da parte de sensível. Assim, as potências da alma vegetativa necessariamente se ordenam às potências sensíveis. Com efeito, todas essas potências devem ordenar-se às potências intelectuais. Isso mesmo os filósofos pagãos reconheciam. Afinal, a essência do homem é ser composto de corpo e alma racional, assim, as potências propriamente humanas são a razão e a vontade. Ora, a vontade nos faz nos mover a buscar aquilo que o nosso intelecto identificou como bem. Assim, para o homem ser naturalmente perfeito deve ter as potências inferiores ordenadas às intelectivas. Para atingir essa mera perfeição natural, bastava submeter as potências inferiores às superiores para equilibrar as virtudes naturais, isto é, o justo meio.

Todavia, não é a mera perfeição natural que devemos buscar, pois, como cristãos batizados e justificados, possuímos (espero) o organismo sobrenatural. Se nas virtudes naturais devemos buscar o justo meio (afinal, nunca devemos demais ou de menos, nem dormir demais ou de menos etc), as virtudes teologais não possuem limites. Com efeito, quando amamos com esse organismo, podemos dizer com os santos que a medida do amor é amar sem medidas.

AS VIRTUDES TEOLOGAIS

Não se pode ser um cristão bom, ou mesmo nem sequer ser cristão de fato, sem as virtudes teologais, as virtudes que têm Deus por objeto, que são três: esperança e caridade. Estas virtudes são infusas e as recebemos logo após o batismo (Catecismo Tridentino, XI, De “Baptismo”, 42). Com o pecado mortal, perde-se a caridade e a fé e esperança ficam informes, ainda que mantidas pela infinita misericórdia de Deus, pois é a caridade que as informa. Por isso, uma vez confessados, devemos fazer de tudo para mantermos com essas virtudes devidamente informadas e presentes. Caso esteja em pecado, deve-se buscar reconciliar-se com Deus o mais rapidamente possível pelo Sacramento da Penitência ou Extrema-Unção caso esteja enfermo. Fora isso, somente uma contrição perfeita pode salvar uma alma nesse infeliz estado e seria uma presunção diabólica contar com isso e a presunção é um grave pecado contra a esperança.

Sabemos que só temos essas virtudes infusas em perfeito estado quando estamos em estado de graça, isto é, em amizade com Deus, com a inabitação trinitária, com a Santíssima Trindade habitando em nós. Todavia, a infinita importância do estado de graça é ainda melhor compreendida conhecendo as virtudes que nos são infusas, pois é impossível sermos amigos de Deus, o Seu templo, sem crer nas Suas revelações sem a fé, esperar os Seus bens sem a esperança, principalmente, amá-lO “de todo o nosso coração, de toda a nossa alma e de todas as nossas forças” (Dt 6, 5) sem a caridade.

E o objetivo aqui é não apenas exortar o leitor a adquirir essas virtudes, que eu presumo, espero, que já o tenha – e caso não tenha, que se confesse imediatamente ou se arrependa dos seus pecados e faça o mais sincero voto de se confessar o mais rápido possível –, mas também alcance a maior perfeição possível nelas. E alguém ainda pode perguntar se o autor destas linhas alcançou tal perfeição. A esta questão respondo que obviamente que não, pois estou muito longe da santidade e responder a isso é importante. Mas como portador do conhecimento especulativo sobre um assunto tão importante e edificante, pois é sobre o nosso fim último absoluto, que é a maior glória da Santíssima Trindade, o sentido de nossa vida e a nossa mais perfeita felicidade, creio que ser a minha obrigação transmitir o que sei. E desde já começo a fazer isso.

I – Sobre a fé

O primeiro passo para buscar a perfeição é a fé, a primeira das virtudes, segundo Santo Tomás de Aquino (S.Th. II-II, q. 4, a. 7, corpus). Como escreve o Apóstolo que “[a] fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê” (Hb XI, 1). A palavra “fundamento” no original grego é “hypostasis” (ὑπόστασις). É, com efeito a base, o princípio da nossa vida sobrenatural. Sem a fé, não teremos esperança, e sem esperança, sobre a qual falaremos mais para frente, não temos mais nenhum sentido para a nossa vida. Por isso, diz o Apóstolo diz que “o justo vive pela fé” (Rm I, 17). Qual é a importância da fé para nossa vida? Como podemos ver, é total, pois, com efeito, é ela quem dá o ser à esperança, porque como vemos na definição dada pelo Apóstolo, é a sua causa formal tal como a é a alma para o corpo. Assim, podemos agora partir para uma definição mais técnica dada pelo Padre Tanquerey: «uma virtude teologal que inclina o nosso intelecto, sob o influxo da vontade e da graça, a dar firme assentimento às verdades reveladas, por causa da autoridade de Deus» (Compêndio de Teologia Ascética e Mística; Ecclesiae, 2018, p. 470). O “a dar firme assentimento às verdades reveladas, por causa da autoridade de Deus” é importante observar pois nos dá uma luz que faz enxergar o que poucos enxergam: a fé é antes uma virtude intelectual. Nos tempos modernos, devido à heresia protestante, que vem do nominalismo, muitos crêem ser um sentimento, o que é absolutamente falso. Apesar de poder ser causa de certos afetos sentimentais, visto que, pelo fato de não podermos amar o que não conhecemos, nos faz conhecer bens que antes nos eram desconhecidos. Conhecendo tais verdades, pode despertais afetos sentimentais em nós, mas entre a fé ser a causa de sentimentos e ser um sentimento há um verdadeiro abismo semântico.

Assim, a fé católica exige de nós a mais intransigente convicção naquilo que a Santa Igreja ensina para que sejamos fiéis a ela e amar a Deus nessas convicções, pois somente com elas nos santificaremos e alcançamos a tão almejada perfeição cristã. E são pecados contra a fé: a blasfêmia, a heresia, a infidelidade e a apostasia. No caso da blasfêmia, é o maior de todos os pecados que podemos cometer aqui nessa vida, pois implica uma ofensa feita diretamente a Deus de forma deliberada. Diz S. Tomás de Aquino que “na gravidade da culpa se atende mais à intenção da vontade perversa, que ao efeito do ato, como do sobredito resulta. Por onde, sendo intenção do blasfemo causar dano à honra divina, peca, absolutamente falando, mais gravemente que o homicida” (S.Th. II-II, q. 13, a. 3, ad. 1). Por isso que de todos os pecados que podemos cometer nessa vida, a blasfêmia é o pior de todos.

Para quem quer preservar a fé, convém buscar crer em absolutamente tudo e unicamente no que ensina o Magistério da Igreja Católica Apostólica Romana sob a pena de correr seríssimos riscos de incorrer em heresias, que basicamente é um desvio de quem, embora professe a fé cristã, vicia os dogmas com escolhas errôneas, como ensina o Doutor Angélico (S.Th. II-II, q. 11, a. 1, corpus). Heresia é pecado grave. Apesar de menos grave que a blasfêmia, é, no entanto, mais perigosa. A heresia é perigosíssima porque se disfarça de espiritualidade e seduz os fracos na fé com sua falsa doutrina disfarçada de profunda piedade, de sabedoria, não raro umas são dotadas com sofisticados argumentos cheios de sagazes paralogismos. Não à toa, essas heresias quase sempre nascem dentro do clero e no meio de monges. Sendo a heresia uma forma de infidelidade envolvendo eleição de dogmas, natural que geralmente surjam no seio da Igreja e acabam sendo condenadas depois. A vacina contra esse pecado é a fé intransigente no que ensina e transmite o Magistério da Igreja.

Com uma fé intransigente, temos a visão já modificada das coisas, pois precisamos dela para não nos deixarmos seduzir por más doutrinas não apenas errôneas com relação à fé, mas também doutrinas filosóficas, políticas e outras formas de doutrinação midiáticas e educacionais que possam colocar a nossa fé em risco. Assim, com tal profissão viveremos de acordo com que cremos e teremos a fortaleza necessária para resistir os assaltos do mundo e do Inimigo para nos fazer cair em apostasia, que é o total abandono da fé. E, claro, ninguém é mais infeliz que o apóstata.

Para nos proteger do veneno da heresia e más doutrinas, devemos ter a consciência de que Deus é a fonte de todo bem e, por essa razão, devemos orar sempre a Ele pedindo sempre mais fé como fizeram os apóstolos, como se lê na Escritura: Aumenta a nossa fé! (Lc XIX, 5). A oração em que se pede mais fé de forma sincera é sempre infalível, pois Deus, na sua infinita bondade, jamais nega aquilo que precisamos e sempre estamos precisando dela. É pela fé, com efeito, que cremos, que cognitivamente assentimos, nas verdades reveladas que não poderiam ser cridas com a razão atuando sozinha. Com efeito, a perda da fé é uma grande tragédia, pois seria análogo a um carpinteiro que perde todas as suas ferramentas. Fica impossível trabalhar, assim como o homem sem fé nada pode fazer e assim escreve Tomás que “é a fé a vida da alma, conforme aquilo do Apóstolo: O justo viverá da fé! (Gl III, 11)Por onde, assim como, perdida a vida do corpo, todos os membros e partes do homem perdem a disposição devida, assim também, perdida a vida da justiça, que vem da fé, surge a desordem em todos os membros. E, primeiro, na boca, por onde sobretudo se manifesta o pensamento; depois, nos olhos; em terceiro lugar, nos órgãos do movimento; em quarto, na vontade, que tende para o mal. Donde se segue, que o apóstata semeia distúrbios, visando separar os outros da fé, como ele próprio se separou” (S.Th. II-II, q. 12, a. 1, ad. 2).

Assim, esse trecho explica muito a presente decadência e corrupção espiritual, moral e intelectual, pois hoje vemos as pessoas mais inclinadas ao mal do que ao bem. Como se a honestidade, a modéstia, a sinceridade, a pureza etc, fossem más, inconvenientes, castradoras e boas apenas circunstancialmente. É a verdadeira Idade das Trevas. Tudo porque a fé é desprezada e pessoas sem fé não podem fazer o bem. Assim, como a fé nos faz evitar a todo custo o veneno das falsas doutrinas, assim também nos impele a propagar a verdade a todos e denunciar as falsidades porque a fé é a base da esperança e a caridade como vimos.

II – Sobre a esperança

O Apóstolo disse que a fé é o fundamento da esperança. Segundo S. Tomás de Aquino, a esperança é a virtude teologal pela qual confiamos no auxílio divino para obter a beatitude (S.Th. II-II, q. 17, a. 6, corpus). Assim, muitos confundem a fé com esperança, crendo que a fé seria uma “confiança cega”. Não é por duplo motivo: não é confiança porque esse é o papel da esperança; não é cega porque a fé atua junto com a razão. Não existe fé sem razão e, logo, a esperança não é cega. Com efeito, confiamos no que conhecemos e é o que conhecemos que esperamos. Assim podemos definir a fé como: «uma virtude teologal que nos faz desejar a Deus como nosso bem supremo, e aguardar com firme confiança, em razão da bondade e onipotência divinas, a eterna bem-aventurança, objeto de nossa esperança» (Compêndio de Teologia Ascética e Mística, p. 477).

Assim, sem fé, sem esperança. A esperança assim completa a base da mais elevada de todas as virtudes, que é a caridade. Mas antes de falar sobre a caridade, é necessário dizer que a fé e a esperança desaparecem na vida eterna, pois a fé é substituída pela visão beatífica, pois ela não é mais necessária; e a esperança é substituída pela própria posse de Deus, pois o que se esperou e se confiou acaba de ser alcançado. Assim, os efeitos práticos da esperança são (cf: Compêndio de Teologia Ascética e Mística, p. 477):

O desapegos dos bens terrenos, pois temos em vista um bem infinito, e assim os bens terrenos perdem o seu valor, assim Cristo nos ensina quando diz: “Não vos aflijais, nem digais: ‘Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos?’ São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo. Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado” (Mt VI, 31-34).

Com efeito, é o que vemos nos santos e abandonam tudo confiando na Providência e completo com as palavras do Apóstolo: «Por Ele tudo desprezei e tenho em conta de esterco, a fim de ganhar a Cristo» (Fl III, 8). A esperança também dá a eficácia maior nas orações, quando combinada com a humildade e assim alcançando as graças que necessitamos; também a esperança nos desperta santos desejos, que nos dá o impulso que precisamos; a perspectiva de um bem infinito aumenta as nossas energias, pois o que se busca é uma recompensa que supera sobrenaturalmente os nossos esforços; e ela nos dá a segurança do triunfo, como é evidente na fortaleza dos mártires e os heróicos esforços dos missionários.

Também devemos tomar cuidado com os vícios contra a esperança, que decorrem dos vícios contra a fé, pois se a fé é o fundamento da esperança, da falta de fé ou de sua fragilidade decorrerá os vícios e os pecados contra a esperança, a começar pelo temor mundano, em que se teme mais a desagradar aos homens que a Deus, o que mostra uma grave inversão de valores, como se dos homens pudéssemos esperar uma recompensa maior que a que podemos esperar de Deus. Os outros dois vícios são muito mais graves pois se tratam de dois pecados contra o Espírito Santo e que indubitavelmente leva à perdição: a presunção da salvação, em que a pessoa crê que se salvará sem nenhum merecimento mesmo pecando, o que implica um blasfemo escárnio para com Deus porque é o mesmo que fazê-lo de escravo como se Ele tivesse alguma obrigação para conosco; e o desespero, em que a pessoa se obstina nos seus pecados e vícios crendo que não tem mais nenhuma salvação, o que é uma grande ofensa a Deus, pois o taxa de injusto e o acusa de não ter misericórdia o suficiente para com todos os homens, o que é absolutamente inaceitável, visto que é da Sua santa vontade que todos sejam salvos como diz o Apóstolo: «Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade» (1Tm II, 3-4). mas nem todos se abrem a essa misericórdia.

III – Sobre a caridade

A caridade, dentre as três virtudes teologais, é a mais elevada e a única que se mantém na bem-aventurança eterna, como diz o Apóstolo (1Co XIII, 8. 13). Definida como «a virtude teologal que nos faz amar a Deus como Ele se ama, sobre todas as coisas, por Si mesmo, e ao próximo por amor a Deus» (Compêndio de Teologia Ascética e Mística, p. 484). Como podemos ver, a caridade tem duplo objeto enquanto virtude teologal, sendo primeiro Deus e segundo o próximo, mas sendo ordenado a Deus. O motivo da caridade distingue da esperança e da fé, pois o motivo da fé é a autoridade mesma de Deus, a esperança é o bem que esperamos de Deus e a caridade já é motivada pela perfeição mesma dEle. Devemos amar a Deus simplesmente porque Ele é digno de ser amado e tudo o que há no mundo deve ser razão para enxergarmos a glória mesma de Deus. Por essa razão a caridade é a mais elevada de todas as virtudes. Em outras palavras, sendo ela a virtude que nos faz amar a Deus pelo que Ele é e, com efeito, como Ele se ama, é a caridade a virtude que mais faz o homem se assemelhar a Deus. Se Deus, pois, se encarnou para morrer na cruz por nós, é a caridade que faz os santos se entregarem por esse mesmo amor ao suplício, que os faz entregarem todos os seus bens pelos pobres sem esperar nenhum bem em troca porque enxerga o Cristo nesses mesmos pobres, porque “a caridade, como escreveu o Apóstolo, não busca seus próprios interesses” (1Co XIII, 5). E ela está fincada na fé e esperança porque ela “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (v. 7). Como se vê, a caridade nos faz ser o mais justo, generoso, compassivo, amoroso e paciente possível, assim como Deus é de forma infinita.

Com efeito, devemos absolutamente evitar a todo custo os pecados e vícios contra a caridade, como, por exemplo, guardar rancor para com próximo, a maledicência, julgamento temerário, plantar discórdias, zombarias, disputas vãs, omitir boas obras quando se está ao nosso alcance, dentre outras coisas. Os pecados contra o próximo são nesse sentido também contra Deus, pois disse o Nosso Senhor o seguinte depois de os condenados perguntarem quando foi que deixaram de exercer a caridade para com Ele: «Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer» (Mt XXV, 45). E este foi o destino do rico epulão, que foi condenado ao inferno por desprezar o pobre Lázaro (Lc XVI, 19-31). Por isso Cristo nos ordenou que devemos amar uns aos outros como Ele nos amou (Jo XIII, 35). Ele nos amou se sacrificando e por primeiro, eis a caridade perfeita. Assim como Ele nos amou se sacrificando, assim também devemos nos sacrificar nas contrariedades porque Cristo o fez e devemos fazer o mesmo por a Ele. Esse sacrifício se inicia no perdão. Sem esse exercício do perdão sequer alcançaremos a salvação, quanto mais a perfeição, pois se não perdoarmos, Deus também não perdoará (Cf: Mt VI, 14s.); depois suportando com paciência e resignação os defeitos alheios, pois também temos defeitos e os outros suportam; devemos também sempre desejar o bem a todos, pois somos todos filhos de Deus e Ele faz o sol nascer sobre os bons e os maus e chover sobre os justos e injustos (Cf: Mt V, 45). Por fim, devemos sempre estar dispostos a dar a vida pelo próximo, como diz o Discípulo Amado: «Também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1Jo III, 16). Tudo por amor de Deus.

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