A DISTINÇÃO REAL ENTRE ESSÊNCIA E ATO DE SER — NOTA EPISTEMOLÓGICA

Padre Michel-Louis Guérard des Lauriers, O.P.
1959

A distinção real entre essência e ato de ser é, no tomismo, a característica metafísica própria de todo ente criado. Sabemos que, para expressar essa distinção no caso dos entes imateriais, Santo Tomás teve que precisar e, ao menos materialmente, retificar suas próprias expressões.

[N.d.T:  Estão sinalizadas com (?) as notas de rodapé incompletas e/ou ilegíveis.]

I. AS DIFERENTES EXPRESSÕES DA DISTINÇÃO REAL E SUA CONVERTIBILIDADE.

As diferentes expressões

Nos escritos anteriores a 1268, afirma-se, assim, a identidade entre:

supósito e natureza (1) / essência e substância (2) / substância e natureza (3,4) / simples e quididade do simples / forma e supósito (5,6,7) / supósito e quididade

[N.d.T.: Por amor à precisão e melhor compreensão do texto, substituímos termos como existant por ente, (em algumas ocasiões) être por ente e existe por ser/é.]

Noutras palavras, a forma, que é o princípio quo do esse no ente material é, no ente imaterial, o princípio quod identificado ao supósito. Os escritos posteriores, ao contrário, afirmam a distinção real entre a forma e o supósito, ou uma distinção equivalente: “Em toda realidade que não é seu ser, o supósito não é idêntico à natureza”. O sujeito está para a forma (que o completa na ordem do ser) como a potência está para o ato (8): o que consigna a distinção real entre sujeito e forma. As substâncias imateriais são caracterizadas pelo fato de que não há nada nelas que seja apenas em potência (9). E como as substâncias imateriais criadas não são, absolutamente, ato puro, segue-se que existe nelas ao menos uma realidade que é, simultaneamente, ato e potência. Essa realidade é a forma que, enquanto forma é ato, enquanto sujeito é potência (10).

Essa alteração na expressão é facilmente explicada pelo contexto. A identidade entre a forma e o supósito é afirmada da substância imaterial quando esta é comparada à substância material na qual o supósito, que faz a matéria subsistir ao mesmo tempo que a forma, é obviamente distinto da forma. Se, por outro lado, a substância imaterial é comparada ao Ato puro, é necessário descobrir nela uma certa potencialidade: ou do supósito à forma, ou entre dois aspectos da forma.

Repitamos a mesma coisa, formalmente, do ponto de vista da distinção real entre essência e ato de ser. Distingamos, como é clássico fazer, para todo ente concreto: 

sujeito: quod habet esse.

essência: para o ente imaterial, a essência é apenas forma quod est;

para o ente material, a essência é forma quo est e matéria (11).

ato de ser: actus essendi, esse tal como é concretamente em tal ens.

No caso dos entes materiais, a distinção real se torna evidente pela distinção entre essência e ato de ser, uma vez que a essência inclui a matéria (12,13): a matéria é, em si mesma, pura potência e, portanto, distinta do ato de ser, que é, do ponto de vista do ato, o aspecto último do ente. Nesse caso, portanto, não é útil, para exprimir a distinção real, tomar emprestada a distinção que é, ademais, bastante manifesta entre o sujeito e a essência, esta última incorporando a forma que é quo enquanto o sujeito é quod. Para o ente imaterial, por outro lado, a essência é reduzida à forma; e, uma vez que a forma enquanto tal é ato, parece bastante difícil distingui-la realmente do ato de ser: portanto, a distinção real terá de ser expressa em termos da dicotomia sujeito-essência, ou seja, na espécie sujeito-forma.

Concluamos. A precisão de expressão adotada por Santo Tomás pode, portanto, ser explicada através da interação de comparações: o ente imaterial sendo referido ora ao Ato puro e ora ao ente material; mas essa precisão pode ser explicada ainda melhor do ponto de vista da distinção real, característica de todo ente criado.

Há, portanto, dois modos de expressar a distinção real; e, de fato, Santo Tomás os aplica, respectivamente e disjuntivamente, aos dois tipos de entes criados: distinção sujeito-forma para o ente imaterial; distinção essência-ato de ser para o ente material.

É claro, entretanto, que o sujeito e a forma, ou a fortiori a essência, são realmente distintos no ente material; e, por sua vez, que no ente imaterial o ato de ser é realmente distinto da forma: ao menos se esta última for entendida no sentido global, incluindo tanto a forma enquanto forma quanto a forma enquanto sujeito (cf. nota 12), ao que retornaremos um pouco mais adiante.

Na realidade, então, há dois modos de expressar a distinção real para cada ente criado. Sendo esse o caso, propomos resolver afirmativamente a seguinte questão: as duas expressões da distinção real, sujeito-forma, por um lado, e essência-ato de ser, por outro, não são passíveis de conversão (14)? Pelo exposto, é normal presumir que sim; e a coisa é tão evidente quanto a compreensão do esse no ens. Mas essas são evidências que é conveniente, na medida do possível, justificá-las racionalmente, uma vez que, absolutamente falando, não há evidência do esse.

Distinção entre “essência subsistente” e
“essência mensurante”

As duas dicotomias, sujeito-forma, essência-ato de ser, serão mais facilmente comparáveis se tiverem um termo comum; na primeira dicotomia, portanto, usamos a palavra essência em vez da palavra forma, que é apropriada ao ente imaterial. E é a essência que servirá como medium de prova; mas [se trata], insistimos expressamente, no que se segue, da essência concreta, essência tal como existe no ente concreto em virtude do ato de ser deste último. Em outras palavras, a inferência descrita abaixo é meramente uma concatenação de diversos aspectos do ente: o último sempre estará implicitamente inferido, mesmo que não seja explicitamente significado.

Distinguimos dois aspectos da essência concreta que definimos e designamos do seguinte modo:

Essência subsistente significa essência concreta na medida em que é, no ente, uma certa realidade: subsistente em virtude do ato de ser. Não atribuímos à palavra “subsistente” nenhum outro significado além deste: tudo o que integra o ente subsiste nele, é real nele, em virtude de seu ato de ser. Isso, em particular, pertence à essência: há, portanto, para tudo o que integra o ente, uma realidade, em virtude de seu ato de ser. Isso, em particular, pertence à essência: há, portanto, para tudo isso um esse essentiae (15); a isso chamamos essência subsistente. Ela é, portanto, no ente, uma realidade atual; mas está radicalmente subordinada ao esse que é primário do ponto de vista da atuação (16).

Essência mensurante significa a essência concreta na medida em que, no ente, mensura o ato de ser: circunscreve o ser que, por sua natureza, não é limitado; faz com que tal ato de ser seja determinado de modo que seja ele mesmo e não qualquer outro ato de ser. E devemos ressaltar que a essência exerce essa função mensurante no ato de ser: a essência está de fato medindo a si mesma e por si mesma, mas não em virtude de si mesma. A essência concreta exerce per se essa função de mensurar o ente em sua determinação última, que é o ato de ser, mas não a exerce a se. Per se, porque essa função pertence propriamente à essência (17): é a essência que é, no ente, o princípio formal de mensura; e devemos acrescentar o princípio formal único de mensura: caso contrário, haveria uma distinção real dentro do que, no ente, seria o princípio formal de mensura; isto é, uma distinção real teria de ser reintroduzida dentro de um dos dois termos da distinção real: daí o processo indefinido. Deste ponto de vista muito preciso, o da mensuração realizada em vez de exercida, da mensuração por referência a um princípio, a essência é, portanto, um absoluto, e é isto que expressamos ao dizer que a essência mensurante é mensuração per se. Considerando que, do ponto de vista do exercício da função de mensurar, a essência mensurante é subordinada ao ato de ser: aquilo que há de ato na essência mensurante exercendo sua função própria, esta participa do ato de ser; e é isto que expressamos ao dizer que a essência mensurante não mensura a se (18).

A distinção que propomos coincide rigorosamente, ao menos no caso do ente imaterial, com a sugerida por Santo Tomás entre a forma enquanto supósito e a forma enquanto forma. Pois, se a essência se reduz à forma, a essência ou forma subsistente é, em verdade, a forma-supósito. Por outro lado, a essência-forma mensurante é a forma enquanto forma: se, com efeito, a forma é, por si só, ato, e se, no entanto, o ser é forma da forma, isto é, atuando sobre a forma mesma, o termo ato não pode ser empregado univocamente nessas duas atribuições, uma à forma e outra ao ser. E como a forma é a primeira do ponto de vista da determinação (19), devemos concluir o seguinte: se compararmos a forma ao ser do ponto de vista de atuação, a forma é ato na medida em que é determinação do ser que é ato absolutamente: o ato de ser inclui uma determinação atual que é a forma. Agora está claro que essa forma-determinação é justamente aquilo a que a essência mensurante se reduz caso a essência seja reduzida à forma: uma mensura realizada nada mais é que uma determinação atual. 

A distinção essência subsistente-essência mensurante é, portanto, a própria distinção proposta por Santo Tomás: já dissemos por que é preferível, para nosso propósito, expressar essa distinção em termos de essência e não em termos de forma (20). Desse modo, aplica-se igualmente ao ente material.

Retornaremos a tratar da relação entre esses dois aspectos da essência ao fim. O que foi dito até aqui é suficiente para desenvolver analiticamente nosso argumento. Ele consiste, recordemos, no fato de que as duas distinções sujeito-forma (ou essência) e essência-ato de ser são convertíveis. Estabeleceremos isso mostrando que cada uma dessas duas distinções é convertível com a distinção que acabamos de propor entre essência subsistente e essência mensurante.

Sua convertibilidade
considerada analiticamente

As duas distinções
essência subsistente-essência mensurante e
essência-ato de ser são convertíveis (A).

Em outras palavras, em todo ente concreto, o caráter real de uma dessas distinções implica necessariamente o caráter real da outra.

A prova indireta, isto é, aquela que toma emprestada a “mediação” do Ato puro, é bem simples. Ela supõe, no entanto, que as realidades distinguidas e designadas acima, e, em primeiro lugar, a essência, conservam um sentido em um ente que seria Ato puro (21). Mas esse ponto fora estabelecido pelo Sr. Maritain, e nós o remetemos a seu estudo (22). Assim sendo, eis o argumento.

a. Lembremos, em primeiro lugar, que o Ato puro e o Ente cuja essência é ser são idênticos. Antes de tudo, o Ato puro é o Ente cuja essência é ser: uma vez que o ser constitui em cada ente o máximo de atuação, é somente em função do ser que um ente pode ser atuado absolutamente; isso exige que o ser não se componha com um princípio que seja realmente distinto dele; por outro lado, não existe nenhum ente que seja determinado, mensurado: o princípio dessa determinação ou mensuração é chamado de essência; o ente suposto Ato puro, portanto, exclui a essência de ser outra coisa que não o ser. E, em contrapartida, se em um ente a essência é o ser, esse ente não inclui nenhum princípio de limitação, sendo, portanto, Ato puro.

b. Em segundo lugar, observemos que o ente no qual a essência subsistente e a essência mensurante seriam idênticas, de um lado, e o Ato puro, de outro, são idênticos. Vejamos, primeiramente, que o absoluto do Ato resulta da identidade entre a essência subsistente, isto é, a essência enquanto realidade concreta ou a essência enquanto ser, e a essência mensurante, isto é, a essência enquanto princípio da determinação atual do ente. Nesse caso, com efeito, esse princípio de determinação torna-se essência na medida em que é ser; não é mais essência enquanto essência, essência definível por um conjunto de características. Doravante, sendo o ser o princípio formal de determinação, o ente é Ato puro.

A mesma observação pode ser feita de outro modo. Lembramos acima que, em qualquer ente concreto, a essência é o único princípio de mensuração. Decorre daí que a essência mensurante mede, em particular, a realidade concreta constituída pela essência mesma; a essência mensurante mede a essência subsistente. Para que essa afirmação não torne a essência um tipo de ente autônomo no ente, devemos, é claro, considerar tudo o que foi dito anteriormente e, em particular, duas coisas: por um lado, a essência desempenha per se, mas não a se, sua função própria de mensurar: ela não pode, portanto, ser concebida como autônoma; por outro lado, se a essência mensura a si mesma, como acabamos de observar, ela não mensura apenas a si própria, mas todo o ente: e ela apenas mensura a si mesma enquanto inclusa no ente, e ao mensurar todo o ente.

Isto posto, podemos raciocinar acerca da essência concreta, real no ente, do mesmo modo que raciocinamos sobre o ente mesmo: a inferência é a mesma, embora o sujeito seja diferente. A essência se mensura a si mesma, se o princípio formal de mensuração (essência mensurante) é identificado à realidade mensurada (essência subsistente), sendo esta realidade Ato puro: a essência concreta é, portanto, Ato puro em um ente no qual a essência mensurante e a essência subsistente se identificam. E, reciprocamente, no Ato puro, a essência é ser, como já vimos; e, por conseguinte, a essência é simultaneamente mensurante e subsistente.

c. A convertibilidade das duas distinções essência subsistente-essência mensurante e essência-ato do ser é então evidente: pois a negação de qualquer uma delas implica que o ente considerado seria Ato puro, resultando, por conseguinte, a negação da outra.

A prova direta da conversibilidade é mais delicada porque necessita apoiar-se na analogia. As duas distinções consideram o ente concreto e, por assim dizer, o atacam, de dois pontos de vista diferentes. De um lado, considera-se o ente em sua totalidade; e, de outro, considera-se no ente aquele aspecto próprio e distinto de sua realidade, que é a essência concreta. Contudo, é impossível, tanto no concreto quanto no abstrato, “deduzir” o ente de sua essência, ou vice-versa. Portanto, é a fortiori impossível “deduzir” uma distinção referente a um a partir de uma distinção referente ao outro. Mas há unidade e analogia entre tal ente e sua essência, entre a realidade de um e a do outro. Podemos, portanto, pensar que, naquilo que concerne à ordem ontológica, que está sob a égide da analogia, há similitude entre essas duas realidades; elas devem, portanto, ter a mesma estrutura do ponto de vista do ser: a uma distinção real para uma deve corresponder uma distinção real à outra. Deliberadamente destacamos a palavra “portanto”: para agora aduzir que a inferência pretendida por ele (Maritain) não é obviamente rigorosa; pois não é possível especificar se a “razão” e, assim, a unidade da analogia que se relaciona ao ser, também se relaciona a uma distinção afetando o ser.

Porém, conquanto a analogia não prove nada nesse caso, ela lança luz sobre a convertibilidade das duas distinções estabelecidas pela prova indireta. Uma vez que o ente criado é indissociavelmente e distintamente essência e ato de ser, a composição que é intrínseca a ele deve ser expressável sob qualquer ponto de vista. Ora, como o ser é simples por natureza, não há como expressar a composição do ente criado em termos do ser. Essa composição, considerada do ponto de vista do ato de ser, é justamente a distinção entre [o ato de ser] e a essência, que é de uma natureza diversa do ser. A essência, por outro lado, considerada enquanto transcendental e segundo sua natureza, não é tão simples quanto o ser: a composição do ente concreto pode, portanto, ser expressa em termos de essência. E essa composição, considerada do ponto de vista da essência concreta, consiste no fato de que esta última não é idêntica à função atribuída a ela no ente, a saber, mensurar.

Assim, as duas distinções essência subsistente-essência mensurante e essência-ato de ser exprimem a mesma coisa; acabamos de ver que essa dualidade de expressão é normal: dado que a composição do ente criado o afeta em tudo o que ele é e, portanto, tanto do ponto de vista da essência quanto do ato de ser, essa composição deve poder ser expressa sob os dois pontos de vista.

As duas distinções
essência subsistente-essência mensurante e
supósito-ato de ser são convertíveis (B).

Podemos restringir-nos aqui ao caso do ente material. Pois, no que concerne ao ente imaterial, as duas distinções não são apenas convertíveis, mas também idênticas: nesse caso, com efeito, o supósito e o ato de ser são, respectivamente, como sugere Santo Tomás: forma enquanto supósito e forma enquanto forma (23); ora, mostramos há pouco que essa distinção é idêntica à distinção essência subsistente-essência mensurante.

A convertibilidade enunciada é quase evidente. A essência subsistente subsiste somente no supósito. A essência mensurante só exerce seu ato, isto é, ela mesma, uma vez que o exerce per se, em virtude do ato de ser e da determinação do supósito. Há, portanto, do supósito à sua determinação própria, que é o ato de ser, a mesma relação que da essência subsistente à essência mensurante: essa relação sendo compreendida, como efetivamente é tudo o que precede, repita-se, dentro do ente concreto. Essa relação, in re (na realidade), só pode ser distinção ou identidade. E, como é a mesma relação intrínseca ao ente, possui a mesma qualidade, seja do supósito ao ato de ser, seja da essência subsistente à essência mensurante: em particular, o fato de que essa relação é distinção só pode ser, cá e lá, simultânea. Isto estabelece a convertibilidade.

As duas distinções essência subsistente-essência mensurante e supósito-essência são convertíveis (C).

Ainda estamos nos restringindo ao ente material. Para o ente imaterial, as duas distinções são idênticas. Nesse caso, com efeito, a essência é a forma; e a forma é, sob certo aspecto, o supósito; a distinção supósito-essência pode, portanto, ser apenas a distinção: forma enquanto supósito e forma enquanto forma; distinção idêntica àquela que concerne à essência.

A distinção essência subsistente-essência mensurante é convertível com o fato de que o ato de ser é realmente distinto tanto do supósito quanto da essência: isso decorre das duas asserções (A e B) que acabamos de estabelecer. Ora, a distinção real e simultânea do ato de ser com o supósito e com a essência é ela mesma convertível com a distinção real entre o supósito e a essência.

Prova indireta: o supósito, enquanto tal, exclui toda divisão e toda distinção; se, portanto, na realidade, a essência é identificada ao supósito, isso exclui a distinção real entre a essência subsistente e a essência mensurante e, por conseguinte, a essência supósito é idêntica ao ato de ser.

Prova direta: o ato de ser é a determinação última do supósito; se, portanto, o ato de ser é realmente distinto do supósito, isso implica que o supósito não determina a si mesmo: ora, se o supósito, “que tem o ser”, coincidisse com a essência, isto é, com o princípio formal e próximo de sua própria determinação, o supósito determinaria a si mesmo. E isso, por sua vez, mostra reciprocamente que, se o supósito e a essência coincidissem realmente, coincidiriam igualmente com o ato de ser.

Sua convertibilidade
considerada sinteticamente

Podemos sintetizar as três asserções precedentes da seguinte maneira.

Em todo ente material, o supósito, a essência e o ato de ser são, par a par, realmente distintos. Se duas dessas três coisas fossem idênticas in re (na realidade), todas elas seriam idênticas. Podemos, portanto, expressar a composição real própria do ente criado de três modos diferentes: da essência ao ato de ser, do supósito ao ato de ser, do supósito à essência. Essas três distinções são rigorosamente convertíveis, ou seja, cada uma implica necessariamente as outras duas. Mas elas não são semanticamente equivalentes, porque consideram, respectivamente, o ente sob pontos de vista diferentes: os mesmos pontos de vista, ademais, que são considerados no estudo da substância.

A distinção entre o supósito e a essência significa que o supósito não mensura a si mesmo: daí sua limitação do ponto de vista da perfeição. A distinção entre o supósito e ato de ser significa que o sujeito não tem o ser em virtude dele mesmo, ainda que o tenha “per se”: perseidade não é asseidade; o sujeito criado é autônomo, mas não absolutamente. Por fim, a distinção entre a essência e o ato de ser significa que, do ponto de vista próprio do ser, em todo ente criado, a potência compõe-se radicalmente com o ato: nenhum ente criado é Ato puro. A substância é o todo, a substância é o sujeito, a substância é a essência-forma que faz o ser: destes três pontos de vista, respectivamente, as três distinções estabelecidas minam radicalmente o ente criado, que só é sob um modo menor.

No ente imaterial, a tricotomia precedente se reduz. A essência agora é apenas forma, e a forma é, de certo modo, o supósito. A distinção real, então, em verdade, envolve apenas uma expressão: digamos, do supósito ao ato de ser. Entretanto, a ambivalência do termo forma, examinada acima (24), significa que há quatro expressões possíveis:

supósito-ato de ser/ forma (enquanto supósito)-ato de ser

supósito-forma (enquanto forma), / forma enquanto supósito-forma enquanto forma

Mas, diferentemente do que se verifica no caso do ente material, essas expressões têm exatamente o mesmo valor semântico e são distinguidas apenas verbalmente.

Propriedades da distinção
“essência subsistente-essência mensurante”

Ao cabo do que foi exposto, a distinção entre a essência subsistente e a essência mensurante surge como uma fórmula-chave. Ela nos permite, com efeito, mostrar a convertibilidade entre todas as formas semanticamente distintas da distinção real. Ela condensa, por assim dizer, toda a sua inteligibilidade. E isso é normal, uma vez que é a inscrição da distinção real na essência concreta, na qual se manifesta precisamente toda a inteligibilidade do ente do qual constitui a mensura. Portanto, retornemos a essa forma, em certo sentido, principal (25).

A essência subsistente e a essência mensurante são realmente distintas. Sobre esse assunto, faremos três observações. A primeira, por mais trivial que seja, não é, sem dúvida, inútil. Devemos sempre ter o cuidado de não hipostasiar os termos de uma distinção que só existem conjuntamente. Não hipostasie a essência concreta no ente, mesmo que ela seja realmente distinta ali. Paralelamente, não se deve hipostasiar a essência subsistente e a essência mensurante. Que a essência mensurante tem, no e pelo exercício de sua função, uma certa realidade é evidente; mas essa realidade é a essência subsistente. Se fôssemos distinguir entre realidade e exercício na essência mensurante, teríamos que repetir a distinção inicial feita à essência, ou seja, teríamos que prosseguir ao infinito (26). Não nos parece útil insistir ainda mais: a essência subsistente e a essência mensurante não são duas entidades separáveis, são dois aspectos da mesma realidade, que só se mantêm unidos e, portanto, são reais em virtude do ato de ser e do supósito.

Em segundo lugar, terminaremos por esclarecer a estreita correlação que existe entre a relação da essência e o ato de ser, por um lado, e a relação da essência subsistente à essência mensurante, por outro. Mostramos que essas duas relações, na medida em que são distinções, são convertíveis. Até justificamos isso positivamente pelo fato de que os dois domínios nos quais se situam [respectivamente] são analogicamente um só: e, também aqui, as duas relações foram consideradas enquanto distinções. Contudo, eles são igualmente unidade: e o papel desempenhado pela distinção que chamamos de “principal” entre a essência subsistente e a essência mensurante será evidenciado pela correlação que existe entre as mesmas duas relações (essência subsistente-essência mensurante, essência-ato de ser) consideradas [respectivamente] em sua unidade. Já notamos que a essência mensura a si mesma por meio da “mediação” do ato de ser: mensurando todo o ente em virtude do ato de ser, a essência mensura, por esse mesmo fato, sua própria realidade incluída no ente. Essa é a relação própria da essência, na medida em que é uma certa unidade. Essa unidade particular da essência não lhe confere, pois, de modo algum, o caráter de um segundo ato que seria distinto do ato de ser e poderia ser uno com ele: isso está radicalmente excluído, uma vez que a essência é precisamente una em seus dois aspectos, a essência só é mensurada em virtude do ato de ser; o exercício da função mensurante é apenas uma participação ou derivação do ato de ser que, por isso, se encontra secundariamente nessa função, a qual, portanto, não constitui um segundo ato de ser. Assim, vemos que a unidade da relação “própria à essência” é, antes, a unidade da relação entre a essência e o ato de ser, mas expressa de uma maneira própria à essência, em termos de essência.

Por outro lado, essa mesma unidade da relação entre a essência e o ato de ser pode ser expressa em termos do ato de ser e a partir dele. Diremos, então, que o ato de ser mensura a si mesmo, mas pela mediação da essência, e de modo mais preciso pela mediação da essência mensurante em exercício: com efeito, o ato de ser é no princípio desse exercício na medida em que este é ato e é ao fim desse mesmo exercício enquanto é mensurado graças a ele; o ato de ser é secundariamente na função mensurante (da essência) à medida que é exercido, e é mensurado por essa função considerada terminalmente.

Há, portanto, duas maneiras de expressar a unidade da mesma relação; em outras palavras, esquematicamente: a essência se mensura pela “mediação” do ato de ser, o ato de ser se mensura pela “mediação” da essência. Essa dualidade não deve causar surpresa. A composição intrínseca ao ente criado é, por sua natureza mesma, distinção e unidade, distinção real e unidade real (27). Precisamente porque há distinção, há irredutivelmente duas maneiras de expressar tudo o que diz respeito à estrutura do ente concreto: a começar pela própria distinção, como vimos acima; mas há também duas maneiras de expressar a unidade: é o que acabamos de verificar [imediatamente].

A unidade do ente criado é assim expressa analiticamente, ou seja, a partir de um ou outro de seus constituintes (28). Cada um dos dois se mensura: essa é a perfeição da unidade, adequadamente expressa pela e na imanência de um ato; mas cada um se mensura pela mediação do outro, e necessariamente em função dessa mediação. O que se mensura absolutamente e sem mediação, o que, portanto, se mensura por si, per se e a se, é Ato puro; e, ademais, se a essência e o ato de ser são identificados, as duas asserções que expressam analiticamente a unidade do ente também são identificadas: o ato de ser se mensura por si mesmo, uma vez que a “mediação” da essência se torna, nesse caso, a mediação de si mesmo; e, paralelamente, a essência se mensura por ela mesma. Se, por sua vez, considerarmos [justamente] como evidente que “o que se mensura por si é Ato puro”, veremos que manifestamos perfeitamente a distinção entre o ente criado e o Incriado ao dizer que o ato de mensurar intrínseco ao ente criado envolve, seja qual for o modo como o concebemos, uma mediação (29). O ato de ser se mensura, mas através da mediação da essência; a essência se mensura, mas através da mediação do ato de ser. E há, é claro, da segunda asserção à primeira, uma subordinação que seria enfadonho precisar uma vez mais (30).

Acabamos de ver que, uma vez que a composição intrínseca ao ente criado é a unidade, bem como a distinção, é importante manter uma estreita correspondência entre ambos: isso é o que é revelado pela mesma dualidade no modo de expressão da distinção ou no modo de expressão da unidade. Todavia, as duas coisas estão longe de ter o mesmo status epistemológico. A distinção é necessária; assumimos que isso está estabelecido: não há nenhum ente criado no qual não haja uma distinção real, seja qual for a maneira como é expressa. A unidade é igualmente necessária, pois sem ela não há ente. No entanto, caso queiramos analisar com maior profundidade, passar do “fato” ao “como”, do an est ao quid est, não é mais possível alcançar, para o quid est, o necessário que alcançamos para o an est. Isto se deve ao fato de que a demonstração da distinção real procede por dupla negação: ela não mostra a natureza do que estabelece a existência. Isto, ademais, é autoevidente: pois a distinção só pode ser conhecida positivamente enquanto função da unidade à qual é associada; e somente Deus conhece positivamente, no ato criador, a unidade intrínseca do ente criado.

Por ora, deixemos de lado a relação do criado com o Incriado; a subordinação entitativa da distinção à unidade acarreta em nossos propósitos as seguintes elucidações. No que diz respeito à distinção, o conhecimento do fato é adequado: não há necessidade de saber nada mais, uma vez que é precisamente o conhecimento do como da distinção que pertence [realmente] à unidade. Demonstrar que a distinção real é necessária é, portanto, suficiente: atingimos adequadamente, no que diz respeito à distinção, a perfeição própria que pertence ao conhecimento quando este é necessário. A unidade, ao contrário, só seria adequadamente conhecida se soubéssemos o como; mas isso, absolutamente falando, é impossível, como acabamos de ver. Portanto, é impossível atingir, com relação à unidade, a perfeição própria do conhecimento necessário. Só podemos descrever o que é de fato realizado nos entes concretos acessíveis à observação, sem determinar a priori e positivamente a estrutura do ente concreto: só sabemos que ele não pode ser perfeitamente simples, mas essa é uma condição negativa. Nosso conhecimento, à medida que é necessário, diz respeito ao aspecto negativo das realidades: esse é um fato bem conhecido. Deus não pode não ser, o ente criado não pode ser simples. Mas não há nenhuma inferência necessária que mostre positivamente a unidade do ente criado ou a natureza de Deus (31): não podemos normatizar o ser a priori.

Recordemos tudo o que foi exposto acima. Em todo ente criado, as diferentes expressões da distinção real, que não são semanticamente equivalentes para o ente material, são convertíveis entre si. Em particular, em todo ente criado, a essência subsistente e a essência mensurante são necessariamente e realmente distintas; mas é impossível atribuir [de direito] normas necessárias relativas ao modo de sua distinção, porque isso é primeiramente impossível no que concerne ao como de sua unidade.

II. A DISTINÇÃO REAL E SUA FORMULAÇÃO
NA QUESTÃO DO “ESSE SECUNDARIUM”.

As considerações precedentes pertencem à filosofia; porém, normalmente, a filosofia é ancilla. Gostaríamos, portanto, de acrescentar algumas observações sobre o mistério do Verbo Encarnado e a questão controversa do esse secundarium. Não temos nenhum elemento novo para trazer à discussão; mas as considerações precedentes parecem nos permitir formular precisamente as duas posições conflitantes (32). Fá-lo-emos, contudo, de um ponto de vista principalmente filosófico; e nossas conclusões serão, como seria de se esperar nessas circunstâncias, radicalmente negativas.

Primeiro, veremos que ambas as “teses” estão livres de qualquer sombra de contradição do ponto de vista metafísico; depois, observaremos que ambas são positivamente e até mesmo harmoniosamente compatíveis com a ontologia do Mistério, no grau de precisão em que ela é atualmente dogmatizada. Por fim, mostraremos que a filosofia não pode servir mais como sabedoria do que como instrumento: o requisito útil que ela impõe na formulação do dogma não nos permite descobrir em uma das duas “teses” uma dificuldade que a faria ser descartada; paralelamente, a metafísica não nos permite escolher entre os dois pontos de vista que, radical e respectivamente, comandam as duas “teses”.

A não-contradição das duas “teses” do
ponto de vista metafísico

Em primeiro lugar, mostremos a não-contradição metafísica de uma e outra “tese”. De início, indicaremos, traduzindo-as para o sistema de referência indicado acima, o que elas têm em comum e, ademais, o que é requerido pela fé; em seguida, mostraremos como as duas visões se opõem uma à outra e como cada uma é, em nossa opinião, compatível com as mais rigorosas exigências dogmáticas; remetemos ao parágrafo seguinte para examinar as intuições que, em sabedoria, as inspiram.

O que é comum às duas “teses”

A Humanidade (33) é uma realidade que pertence à ordem criada: aliquid creatum. Primariamente, é uma realidade: expressamos esse fato ao dizer que a Humanidade é essência subsistente; é uma essência concreta que é subsistente no Verbo encarnado. Essa essência é igualmente mensurante? Se a essência exerce sua função, que é a de mensurar, ela mensura algo, a saber, ao menos a si mesma: e, então, há necessariamente um esse secundarium; e se a essência não é mensurante, o esse secundarium é sem fundamento e, portanto, excluído. Voltaremos a isso mais tarde, pois é justamente esse ponto que opõe as duas teses. Por enquanto, terminemos de expressar o que elas têm em comum e o que decorre da fé. A Humanidade não é uma pessoa; ela não tem “subsistência” própria, segundo a expressão clássica (34). Mostremos que essa fórmula mantém toda a sua precisão, tanto para uma quanto para a outra tese.

Primeiramente, a “tese da ordem”. A essência é suposta mensurante (35); observaremos então, com o Sr. Maritain, que a subsistência é o que há de mais na essência enquanto mensurante e não apenas enquanto subsistente (36). Ora, esse “mais”, como temos insistido, pertence à essência como mensurante per se, mas não a se: a essência é mensurável apenas em virtude do ato de ser: a subsistência, portanto, pertence de facto à essência apenas em virtude do ato de ser; ela é, entretanto, a subsistência própria da essência, pois o ato de ser existe apenas [quando] mensurado pela essência. E assim, ela é própria à essência somente se o ato de ser que é seu fundamento radical é mensurado pela essência; isto é de fácil compreensão: posto que a subsistência completa a essência na ordem do ser (37), ela pertence ao ato de ser; pode, portanto, “pertencer” à essência somente na medida em que o próprio ato de ser “pertence” à essência: e o ato de ser pertence à essência somente porque é mensurado por ela. Ora, no que concerne à Humanidade, a essência que se supõe mensurante obviamente só pode mensurar algo finito: ela, portanto, não mensura o Ato de Ser do Verbo encarnado, que é o Esse incriado do Verbo. Por conseguinte, nesse caso, a essência mensurante não mensura a Realidade em virtude da qual ela, no entanto, mensura (38); e, portanto, o “mais” que pertence de facto à essência em virtude do que ela efetivamente mensura, esse “mais” não pode pertencer a ela por si mesmo: a essência, portanto, não tem subsistência própria. Assim, uma vez que se supõe que a Humanidade seja uma essência completa (39), subsistente e mensurante, é o mesmo que dizer que ela é assumida na unidade de Pessoa no Ser do Verbo incriado ou dizer que ela é privada de sua subsistência própria.

Examinemos agora a “tese do êxtase”. Ela sustenta, e voltaremos a isso em um instante, que para a Humanidade há apenas essência subsistente, e não essência mensurante (40). É evidente, então, que a Humanidade não é uma pessoa: portanto, parece inútil avançar mais. Todavia, para melhor expressar o que é fundamentalmente comum às duas teses, convém indicar o mesmo fato com a mesma expressão: a não-existência de uma pessoa criada pela ausência da “subsistência” própria da Humanidade. Ademais, é claro que, se faz com que a subsistência consista, como acabamos de fazer, no “mais” que pertence à essência em virtude do fato que ela mensura, a “tese do êxtase” suprime esse “mais”, na medida em que ele seria próprio à essência, simultaneamente à essência mensurante. Mas essa lógica brutal nos levaria a negligenciar uma importante observação. A subsistência pertence à essência: vimos um pouco antes por que isso é assim, e não voltaremos a esse assunto (41). Portanto, é natural perguntar como a subsistência pertence à essência.

Em outras palavras, tendo considerado a subsistência em função da distinção entre essência e ato de ser, convém examinar a subsistência em função da mesma distinção expressa em termos de essência, a saber, essência subsistente-essência mensurante. Não se trata, por certo, de examinar se a subsistência, que pertence à essência, deve ser atribuída à essência subsistente ou à essência mensurante. Mas a questão é ver se a atribuição de subsistência à essência pode e até deve ser conjecturada de duas maneiras diferentes: justamente porque tudo o que diz respeito à estrutura do ente criado manifesta sua composição por meio de uma irredutível dualidade.

Com efeito, constatamos que esse é de fato o caso se compararmos os diversos modos de expressar a noção de subsistência (42): o ponto que termina a linha, o “exercer” que completa uma sorte de ato primeiro. Concebida em função da essência subsistente, que é um aspecto, uma determinação particular do ente, a subsistência só pode ser atribuída pelo modo de determinação. Concebida em função da essência mensurante, que tem como propriedade a função de mensura, a subsistência é atribuída como a conclusão resultante de uma operação. É esse segundo modo de conceber que, absolutamente, isto é, do ponto de vista do ser, fundamenta o primeiro: se a subsistência determina, é porque ela é concomitante ao exercício da operação de mensurar. Em contrapartida, definir a subsistência como uma determinação expressa melhor sua pertença necessária à essência: uma vez que a determinação requer necessariamente o determinado. Assim, expressamos melhor, aqui o fundamento e ali o modo de atribuição; mas as duas coisas são inseparáveis: é, com efeito, da essência que a subsistência seja perfeição e conclusão, sendo normal que concebamos essa conclusão do mesmo modo que a essência mesma (43). E há, entre as duas maneiras de conceber a subsistência, a mesma unidade analógica que há entre os dois aspectos da essência ou, finalmente, entre os dois aspectos do ente.

Desse modo, podemos ver que a “tese do êxtase”, ao eliminar a essência mensurante, obriga-nos a conceber a subsistência por modo de determinação ou termo: essa é a maneira clássica de Caetano (44). Mas não devemos nos deixar enganar por essa aparente diversidade: qualquer que seja a estrutura de sua representação, a subsistência é metafisicamente una. Portanto, parece ter sentido dizer que, na “tese do êxtase”, a essência da Humanidade, reduzida à essência subsistente, é privada de sua subsistência própria: a fim de que esse modo de se expressar seja perfeitamente preciso, é suficiente conceber a subsistência de um modo apropriado à essência subsistente, isto é, por modo de termo.

Assim, as duas teses estão perfeitamente de acordo quanto a esse conteúdo evidentemente mínimo: a Humanidade é real, mas não é uma pessoa; no que lhe diz respeito, há uma essência subsistente e a essência não possui subsistência própria.

O que opõe as duas “teses”

Vejamos agora como as duas teses se opõem. Não temos a intenção de confrontá-las ponto a ponto: isso já foi feito de múltiplos modos. Pretendemos apenas expressar de uma maneira precisa e de um ponto de vista metafísico como cada uma das duas teses é compatível com o dado da fé; a dificuldade reside no fato de que cada uma delas leva ao extremo um dos dois aspectos fundamentais: a realidade da natureza humana e a ausência de uma pessoa humana.

A “tese do êxtase” afirma, primordialmente, a ausência de uma pessoa humana no Cristo: não há uma essência mensurante na Humanidade, que é, portanto, reduzida ao status ontológico de uma essência subsistente, privada de sua subsistência própria, como acabamos de explicar. A dificuldade é, então: esse status metafísico singular é possível? Não é contraditório que uma essência concretamente existente seja destituída de um de seus dois aspectos constitutivos? Analogamente, uma potência pode realmente existir se for privada de sua operação própria? Ou, talvez mais precisamente, um ato criado pode existir sem ser o termo de uma operação? Nossa primeira resposta é que uma objeção baseada apenas em uma inferência analógica seria irrelevante aqui. A única dificuldade verdadeira é uma contradição concernente ao objeto como tal.

E, em segundo lugar, respondemos: não, não é contraditório que, para a essência de uma realidade criada, o fato de subsistir não seja acompanhado pelo exercício do ato de mensura, apesar de exigir ser objetivamente mensurado. Referimo-nos às observações resultantes de nossa análise propriamente filosófica. É necessário que a essência subsistente e a essência mensurante sejam realmente distintas: o contrário seria metafisicamente contraditório, mas nenhuma norma necessária pode ser atribuída com relação à unidade entre esses dois aspectos da essência. A distinção real requer tão somente que, se há uma essência subsistente, esta não exerce o ato de mensurar como tal: este será o único requisito. Agora, se não houver um ato próprio de mensurar, esse é certamente o caso. Portanto, não é contraditório que a essência mensurante seja “suprimida”, uma vez que a Realidade que supostamente satisfaz essa condição tem em comum com qualquer outra realidade criada o único caráter que é imposto a priori e necessariamente ao ente criado, a saber, repita-se, o que podemos chamar de caráter (C): “se há uma essência subsistente, esta não exerce o ato de mensurar como tal”. É bem verdade que esse caráter é realizado de maneiras absolutamente diferentes na realidade privada da essência mensurante e na realidade que integra uma essência mensurante. Mas, como já dissemos, nosso conhecimento fica aquém do necessário no que diz respeito ao como: não podemos estabelecer [de direito] a maneira pela qual o caráter (C) é realizado no ente criado “ordinário”. A Humanidade o realiza de outro modo, mas o importante é que o realiza; e é suficiente que esse caráter (C) seja comum à Humanidade e a qualquer outra realidade criada para que se diga que a Humanidade tem a propriedade de expressão aliquid creatum. A Humanidade é algo criado, embora não seja uma criatura à maneira das outras criaturas. O status ontológico da Humanidade concebido segundo a “tese do êxtase” certamente exige do metafísico um esforço de precisão e purificação, mas não é de modo algum contraditório.

A “tese da ordem” afirma, primordialmente, a integridade metafísica da Humanidade: a essência é tanto subsistente quanto mensurante, como em qualquer outro ser humano. A dificuldade é, então, a seguinte. Uma essência limitada exerce o ato de mensurar (45), o objeto desse ato só pode ser finito: não pode ser Esse incriado, e é em razão disso que não há subsistência própria; apenas pode ser esse criado (46). Eis aqui o esse secundarium; aqui, simultaneamente, está a dificuldade: não haverá, por essa razão, dois esse, sendo um criado e o outro incriado; ora, o esse é a forma das formas, determinação última: o esse só pode ser uno, essa é uma exigência metafísica absoluta. Também aqui, respondemos em dois momentos.

Antes de tudo, vamos “esvaziar” a objeção, trazendo-a de volta às suas justas proporções. Estamos acostumados a numerar os supósitos; aliás, talvez concedamos essa dignidade com muita pressa e generosidade aos objetos de nossa experiência sensível: esse fato, ademais, importa para nosso objeto apenas em razão dos maus hábitos mentais que desenvolve. Mas o esse pode ser numerado? Pode-se numerar o actus entis, é claro: mas então se trata de ratione suppositorum e não de ratione entis. A expressão “dualidade de esse” é, portanto, ex se imprópria, para dizer o mínimo: uma objeção baseada nessa formulação não tem fundamento. Acrescentemos que, se “numerar o esse” requer algumas precauções e explicações, numerar o esse criado e o Esse incriado é ainda mais delicado: é até mesmo misterioso. Diremos nós que Deus e a criatura são dois? Certamente que sim. Mas o mínimo que podemos acrescentar é que esse “dois” não é da mesma natureza que o predicamental “dois”, o número numerado e até mesmo o número de numeração de uma coleção concreta. Em que sentido o Esse e o esse são “dois”? Precisamos nos dar ao trabalho de especificar antes de suscitar o espectro da contradição metafísica.

Terminemos de exorcizá-lo: este será o segundo “momento” da nossa resposta. Devemos apenas remeter à primeira parte de nosso estudo. Vimos que o ato de mensurar próprio à essência não é, de modo algum, um segundo ato de ser, pela razão radical de que a essência o exerce apenas em virtude do ato de ser: a essência o exerce per se e não a se. O que é ato no próprio ato de mensurar próprio à essência deriva do ato de ser na essência subsistente, que, em virtude disso, é a essência mensurante. Há apenas um ato de ser; mas como ele é participado pela essência mensurante, que é realmente distinta dele, podemos dizer que o ato de ser é secundariamente na essência. O termo “secundário” deve ser corretamente entendido, isto é, em função da relação entre essência e ato de ser: essa relação é distinção e, portanto, o esse secundarium é realmente distinto do esse principale; essa mesma relação é unidade e, por conseguinte, o esse secundarium não é um segundo ato de ser. Não devemos nem hipostasiar o esse secundarium nem dissolvê-lo na unidade concebida univocamente do único ato de Ser.

É verdade que tudo isso é tão elementar quanto difícil. Mas seu significado é imediatamente percebido. A Humanidade é uma realidade criada; nela, a essência realmente exerce o ato de mensurar: por si mesma, mas não em virtude própria. Sob esse aspecto, a essência tem uma atuação própria: que não é, entretanto, um segundo ato de ser, mas uma derivação do único ato de Ser.

Até aqui, sem dúvida, todos estarão de acordo: a analogia entre a Humanidade e qualquer outra realidade criada é bem autoexplicativa.

Isto se deve, porém, ao fato de que, como será dito, evitamos penetrar no cerne da dificuldade, colocando-nos do ponto de vista da essência mensurante e não do ponto de vista da essência mensurada ou subsistente. Ora, o esse secundarium não é apenas a atuação em virtude da qual a essência exerce a mensura; ele é igualmente, de modo inseparável e até mesmo principal (47), o “objeto” mensurado. Essa realidade mensurada, que é ato, uma vez que enfrenta, por assim dizer, o ato de mensurar, não é um ato de ser diverso do Esse incriado? E assim, aqui, mais uma vez, há dois atos de ser. Veremos que não é esse o caso.

Retomemos à análise filosófica anterior. Mostramos em que sentido a essência, no exercício do ato de mensurar, mensura a si mesma simultaneamente a tudo o que é e como inclusa no ente. No que concerne à Humanidade, essa afirmação só pode ser transposta da maneira seguinte: a essência não mensura “todo o Ente”, uma vez que a essência é finita e o Ente infinito, pois a ausência de subsistência própria está vinculada justamente ao fato de que o Ato de Ser não é mensurado pela essência; e, no entanto, a essência mensura a si mesma: pois, supondo que ela exerça o ato de mensurar, deve mensurar algo; e como esse algo não pode ser o Ato de Ser, e como, ademais, não há [no ente] distinção mais primitiva do que aquela entre a essência e o ato de ser, segue-se que se uma essência que mensura não mensura o ato de ser, ela só pode mensurar a si mesma.

Quando a lógica é inexorável, ela se torna proveitosa. Com efeito, acabamos de oferecer uma forma precisa à dificuldade proposta; eis como: na Humanidade, é a essência concreta mesma e ela somente, o que chamamos na primeira parte de nosso estudo de essência subsistente, que pode ser o objeto conatural do ato exercido pela essência mensurante: no entanto, não é justamente isso que torna a essência uma realidade autônoma, um ato de ser distinto do Esse incriado? Visto que, a rigor, sob o movimento desse Esse, ela mensura a si mesma, somente ela mesma: exercendo assim adequadamente em relação a si mesma a função de mensurar que lhe pertence propriamente; se a essência é tanto o princípio seguinte e termo adequado do ato de mensurar, como não pode ser um ato de ser distinto do Esse incriado, subsistindo indubitavelmente através dele, mas não nele? E, de igual modo, apesar da tenuidade do esse próprio à Humanidade, uma vez que é o esse de uma essência, não existem dois esses, nem o único Esse incriado que se manifesta secundariamente na Humanidade, enquanto a Humanidade subsiste apenas nele?

Tendo esclarecido a dificuldade, vamos à resposta. Ela exige que retornemos mais uma vez à unidade do ente expressa analiticamente: isto é, em função do ato de ser e da essência. É evidente que é no ato de ser, e não na essência, que a unidade do ente deve ser ultimamente resolvida, dado que ela é a forma das formas e determinação última: Certamente todos concordarão com isso, mas vejamos suas implicações mais profundas. Na perspectiva que desenvolvemos, a unidade, portanto, pertence ao ato de ser à medida que é mensurada, uma vez que é, em última análise, determinada desse modo. Ora, em um ente criado “ordinário”, a essência subsistente é mensurada simultaneamente ao ato de ser pela essência mensurante: como é possível que essas duas realidades distintas, o ato de ser e a essência subsistente, na medida em que são mensuradas, constituam um único e mesmo ente e, portanto, “não formem um número”? Isso se deve, por certo, ao fato de que o ato de mensurar é uno. Ora, esse ato tem como princípio próximo a essência, mas tem como princípio radical o ato de ser mesmo: é o ato de ser que é a “fonte” do exercício da mensura, como temos insistido; o ato de ser é mensurado pela mediação da essência e, do ponto de vista próprio do exercício, a prioridade pertence absolutamente ao ato de ser: isso é simplesmente o que diz Santo Tomás (48). É, portanto, ao ato de ser, o princípio radical, e não à essência mensurante, que tem apenas um papel de mediador, que devemos atribuir a unidade do ato de mensurar, se este for considerado enquanto exercido.

Expressemos esse ponto capital de outro modo: o ato de ser é, simultaneamente, o princípio radical do exercício da mensura e a realidade última mensurada. Ora, é pelo fato de ser uno e único como princípio desse exercício que tudo o que é mensurado em virtude dele é mensurado nele, e não pode ser contado com ele à maneira de realidade mensurada. É a mesma simplicidade e singularidade que é à origem e ao termo (49), e é evidente que é o primeiro que funda o segundo; o papel da essência é apenas mediador: não é a essência que funda a simplicidade realizada ao termo do exercício do qual ela é o princípio seguinte, mas apenas o co-princípio, porque é a unidade do ato enquanto exercido que funda a unidade da realidade mensurada em virtude [de] e ao termo desse exercício.

Discorremos muito e nos repetimos bastante; que o leitor nos perdoe por isso: no que concerne às verdades mais primitivas, só podemos comunicar o que achamos que entendemos ao multiplicar os pontos de vista simultaneamente aos meios de expressão.

Regressemos à metafísica do Verbo encarnado. Para esse Ente, como para qualquer outro, é certamente o Ato de Ser o princípio radical do exercício da mensura do qual participa a Humanidade, na medida em que ela é essência mensurante: é verdade que, nesse caso, a essência mensura apenas a si mesma e não o Ato de Ser, mas essa diferença só diz respeito, no ato de mensurar, à mediação da essência e não ao princípio radical do exercício do ato. Como, então, a unidade do esse procede, em todo ente concreto, desse princípio radical e não da mediação da essência, devemos concluir que o Ser do Verbo Encarnado é uno e único, ainda que esteja secundariamente na Humanidade. Essas duas afirmações parecem se opor; mas o aspecto positivo da analogia entre o Verbo Encarnado e todo outro ente criado mostra que esse não é o caso.

Repetiremos isso uma última vez. Em um ente criado cuja essência exerce o ato de mensurar e pode, portanto, ser chamada de essência mensurante, a essência concebida como co-princípio e princípio próximo desse ato e a essência concebida como sendo pelo menos um aspecto do que é mensurado por esse ato são uma e a mesma realidade: nós a chamamos de essência subsistente, realmente distinta da essência mensurante. Como a essência subsistente, que é realmente distinta do ato de ser, é integrada à sua unidade sem formar um número com ela? O ato de ser tem, evidentemente, em todo ente criado, uma mensura. Ele pode ser considerado como o princípio radical dessa mensura, ou como a realidade mensurada: e é necessariamente o segundo ponto de vista que está subordinado ao primeiro, posto que nada do ente é senão no ato de ser; é o ato de ser considerado do primeiro ponto de vista que, em uma visão realista, constitui o fundamento formal da unidade do ente concreto.

Em nosso sistema de referência, dizemos que o fundamento formal da unidade é que a essência mensurante mensura apenas em virtude do ato de ser, e não que a essência mensurante mensura o ato de ser: pois é a primeira das duas coisas que é primitiva. Duas consequências se seguem da segunda, essa dualidade se relacionando, mais uma vez, com a composição radical do ente, ou equivalentemente à distinção real entre a “essência subsistente” e a “essência mensurante”. O fato, então, que o ato de ser apenas subsiste mensurado pela essência é interpretado “em função da essência mensurante”, dizendo que “subsistir” completa a essência (50,51), uma vez que é precisamente a essência que exerce a mensura como princípio próximo. Mas, por outro lado, e este é o “ponto de vista da essência subsistente”, dado que a essência se mensura ao mesmo tempo que o ato de ser, mesmo que de modo subordinado e, portanto, secundariamente; já que, além disso, o “objeto” principalmente mensurado, que é o ato de ser, “subsiste”, diremos que o “objeto” secundariamente mensurado, que é a essência, igualmente “subsiste”. E essa distinção e subordinação no “subsistir” terminal não divide mais o ato de subsistir, que é o ato de ser, do que a distinção e subordinação de mensurar realidades divide o ato de mensurar cujo princípio radical é o ato de ser. O que procede do ato de ser manifesta sua ordem sem dividi-lo: portanto, há esse secundarium sem dualidade de esse (o termo esse sendo tomada, cá e lá, como convém ao nosso objeto, no sentido de actus entis).

Sendo assim, é evidente que o mistério do Verbo encarnado pode ser concebido segundo a “tese da ordem” sem nenhuma contradição metafísica. O fundamento formal da unidade ordenada (52) do esse é, neste caso, como em todos os outros, realizado e mesmo de um modo eminente: a Humanidade exerce, como essência e em relação a si mesma, o ato de mensurar, mas exclusivamente em virtude do Esse incriado. Dos princípios enunciados resulta que a Humanidade, como realidade mensurada, tem um esse secundarium que manifesta a ordem do único Ato de Ser sem dividi-lo ou formar um número com ele.

Conformidade das duas “teses”
à exigência dogmática

As duas teses, a do “êxtase” e a da “ordem”, são, portanto, igual e perfeitamente compatíveis com a mais rigorosa exigência metafísica bem como com o dado da fé. Não podemos falar de contradição quando nosso conhecimento não consegue atingir uma necessidade [de direito]. Em todo ente criado, a “essência subsistente” e a “essência mensurante”, ou equivalentemente a essência e o ato de ser, são necessariamente e realmente distintos: seria contraditório que essa distinção fosse anulada. Mas no que concerne à relação entre essas duas realidades distintas e, portanto, à natureza de sua unidade, sabemos apenas o que a experiência nos revela: não podemos, a partir disso, inferir normas absolutas das quais qualquer desvio seria impossível, pois implicaria contradição.

Seria contraditório se, em uma realidade criada, a essência subsistente exercesse o ato de mensurar em virtude dela mesma. Mas a “tese do êxtase” sustenta corretamente que, na Humanidade, a essência pode ser exclusivamente subsistente e não mensurante, não exercendo o ato de mensurar de modo algum: essa é uma maneira, radical e singular, é verdade, de não mensurar por si; não podemos perceber nada de contraditório nisso ao que sabemos ser necessário sobre o status ontológico do ente criado.

Por outro lado, seria contraditório que houvesse, em um ente, dois atos de ser, ou, em outras palavras, que houvesse dualidade no esse, sendo este concebido como a conclusão e o ato último do ente. Seria, portanto, contraditório que o que subsiste no ente, distinta e determinadamente, fosse mensurado por um ato exercido em virtude de algo que não fosse o ato de ser; seria também contraditório que aquilo pelo qual o ato de ser exerce o ato de mensurar e que é distinto dele não mensurasse a si mesmo; caso contrário, teríamos que prosseguir ao infinito. Ademais, essas condições exigidas sob pena de contradição são suficientes; se forem satisfeitas, a unidade do ente em seu ato último e intrinsecamente hierárquico também é satisfeita: não é necessário para isso que o ato de ser em si seja mensurado por aquilo pelo qual ele exerce radicalmente o ato de mensurar. E a “tese da ordem” reivindica com razão essa possibilidade: que uma essência só pode mensurar a si mesma e não o ato de ser, sem, no entanto, ter uma subsistência que não seja o ato de ser, precisamente pelo fato de só exercer o ato de mensurar em virtude dele.

Ambas as “teses” não apresentam qualquer sombra de contradição do ponto de vista metafísico.

Compatibilidade das
duas “teses” com o dado da fé

Veremos que ambas são igualmente compatíveis com a dogmática dada no grau de precisão em que está atualmente formulada. Consideraremos a Humanidade em si mesma e a Humanidade em relação com a Divindade; e como a Humanidade mesma se apresenta na revelação mais explícita tanto como uma “certa realidade” quanto como uma natureza que é princípio de suas operações, distinguiremos entre o aspecto ontológico e o aspecto psicológico.

A Humanidade considerada em si mesma e vista ontologicamente

Portanto, vejamos primeiro como as duas “teses” são positivamente harmônicas à ontologia de uma realidade criada assumida em um Subsistir divino. Iremos simplesmente repetir o que já dissemos, mas sob uma luz ligeiramente diferente, e ainda mais precisamente, se possível. A estrutura do entre criado [ordinário], expressa em termos de mensura, tem quatro características:

1. A essência exerce o ato de mensurar por si mesma: per se, não a se.

2. A essência exerce esse ato somente em virtude do ato de ser.

3. A essência mensura o ato de ser: isto é, o ato de ser é mensurado pela essência.

4. A essência mensura a si mesma porque mensura tudo o que integra o ente.

A Humanidade é concebida, segundo a “tese do êxtase”, como não possuindo nenhuma dessas características; e, segundo a “tese da ordem”, como possuindo todas essas características, exceto a terceira. Essa segunda tese, portanto, parece, à primeira vista, mais complexa e menos coerente; alguns até a consideram metafisicamente incoerente: conservar o quarto caráter sem conservar o terceiro parece proceder de um “essencialismo” que não se preocupa com a concretude. Repetiremos primeiro que a “tese da ordem” não implica nenhuma contradição ou incoerência; depois veremos que, do ponto de vista do realismo metafísico, as duas teses apresentam exatamente a mesma dificuldade, um indício irrefutável do mistério.

As quatro características, que designaremos por seus números, pertencem de facto a todo ente criado; o teólogo encarregado de considerar a Humanidade sabe que ela tem razão de criatura, mas somente de certo modo: ele pode, portanto, insistir na dessemelhança ou na semelhança, ambas existentes entre a Humanidade e o ente criado “ordinário”; pode, no que concerne à Humanidade, negar tanto quanto possível ou preservar tanto quanto possível as características próprias do ente criado (53). Negar ao máximo é mais fácil: não evita, é verdade, a dificuldade real, e voltaremos a isso em um momento, no entanto, ao menos evita a incoerência à qual a negação pura é evidentemente estranha. Afirmar ao máximo não pode ter outra norma, apesar do mistério, que não seja a compatibilidade entre as características afirmadas.

É impossível aqui fundamentar nosso argumento na semelhança entre a Humanidade e o ente criado “ordinário”, justamente porque não sabemos até onde essa similitude abrange. Ora, a compatibilidade das características declaradas resulta formalmente de suas conexões, não de suas respectivas naturezas. Essas conexões, que são absolutamente e [de direito] necessárias, são as seguintes (54):

i -► 4 / 2 -> 4

4 -*> 1 / 4 -> 2

[ Ou seja, em outras palavras, as três características 1, 2 e 4 se implicam umas às outras (mutuamente).]

(Mas o 3 não implica o 2, e o 3 não é implicado por nenhuma das características 1, 2 ou 4.)

Segue-se daí que só podemos reter simultaneamente as características 1, 2 e 4, e que isso é possível sem reter a característica 3. Afirmar que isso é impossível, afirmar que o grupo 1, 2, 4 implica necessariamente o 3, equivale a raciocinar do seguinte modo: para qualquer ente criado observado, (1, 2, 4) -> 3; portanto, absolutamente e [de direito], é impossível que uma realidade criada seja produzida sem que (1, 2, 4) -► 3. Essa inferência, por conseguinte, pretenderia atribuir normas necessárias à operação criadora. Ora, as únicas normas necessárias que o espírito criado pode atribuir às suas próprias criações é que elas devem estar livres de contradição. Restaria, portanto, demonstrar que é contraditório negar que (1, 2, 4) -> 3. Isso, e somente isso, estabeleceria que a “tese da ordem” inclui em si uma incoerência metafísica que deve levá-la a ser abandonada.

Podemos insistir: não basta que uma coisa seja não-contraditória para ser real: o fato de que a “tese da ordem” sustenta algo que é possível não tira o fato de que é apenas uma visão do espírito: pois em todo ente concreto criado, (1, 2, 4) -► 3; que essa conexão não seja verificada é uma hipótese abstrata, mas que não tem relação com o universo dos entes concretos. Essa é certamente uma objeção de peso. Mas veremos que ela incide sobre o cerne de ambas as teses simultaneamente e, portanto, é idêntica no que se refere à verdadeira dificuldade: porque essa objeção põe em questão a validade de qualquer teologia da encarnação.

A “tese da ordem” sustenta: essência que se mensura sem mensurar o ato de Ser, mesmo que tal coisa não possa ser observada em nenhum ente concreto. Mas o que diz a “tese do êxtase”? Em certo sentido, ela sustenta algo pior: uma essência subsistente que não mensura. Mas o que é uma essência que não mensura? Qual o sentido disso no universo concreto dos entes observáveis? Como podemos demonstrar a “distinção real” e, portanto, a realidade própria e distinta da essência dentro do ente?

Seja qual for a maneira como procedemos, a noção de determinação, ou mensura, ou limitação, ou recepção, necessariamente intervém; e a essência só é realmente distinta e, portanto, real como essência, a essência só é “essência subsistente” porque é o princípio necessário dessa mensura inerente ao ente criado. Na ordem natural, uma essência que não mensura, uma essência subsistente e não mensurante, é uma pura hipótese que não tem fundamento na realidade, por mais tênue que seja sua analogia. Portanto, os defensores do “êxtase” não devem se precipitar em criticar a “tese da ordem” por incoerência, irrealismo metafísico ou essencialismo: poderia muito bem ser um caso de cisco e trave. Admitir que uma essência mensura, ainda que apenas a si mesma, parece menos distante da realidade do que admitir que uma essência subsiste sem mensurar nada: já que não há exemplo de uma essência real que não mensure; essa seria, portanto, a “tese do êxtase” menos realista. No entanto, destacamos a palavra “menos” apenas para excluí-la imediatamente: pois não pode haver grau quando uma questão de natureza está envolvida; isso é o que nos resta especificar para mostrar que, de um ponto de vista estritamente metafísico, as duas teses são igualmente difíceis e igualmente possíveis.

A essência tem, de fato, a propriedade de mensurar-se mensurando o ato de ser: ela tem essa propriedade no sentido de que, com efeito, é em virtude desse caráter que a essência é realmente distinta e, portanto, real como essência: um atributo que condiciona a existência daquilo que determina ser “próprio”. E isso é um fato, indemonstrável, como vimos. Portanto, ou rejeitamos globalmente todo o “fato”, ou dissociamos os aspectos que o “fato” sempre associa a apenas um deles; em ambos os casos, deixamos igualmente o universo concreto onde o “fato” é observado; e também nos encontramos em um universo que não é mais o universo concreto, e cuja única lei é a não-contradição (55). Não há intermediário entre esses dois universos, um real e outro não. A essência que é suposta mensurante, mas não da maneira que qualquer essência concreta real mensura, não está “mais próxima” da realidade do que a essência que é suposta não mensurante. Essas duas essências, igualmente hipotéticas, não têm fundamento analógico na realidade objetiva, mais do que a outra. Ambas as teses se deparam com a mesma dificuldade radical:

Uma essência subsistente [e não mensurante] não é impossível: Portanto, deve-se conceber a Humanidade desse modo.

Uma essência que mensura apenas a si mesma não é impossível: Portanto, deve-se conceber a Humanidade desse modo.

Cá e lá, portanto, é igualmente justificado e igualmente impróprio: concluamos o esclarecimento desse ponto. Primeiramente, é evidente que, a menos que se retorne à idade infantil da teologia e até mesmo do dogma, sob o pretexto de “voltar às fontes”, a expressão do mistério da encarnação deve tomar como seus instrumentos as noções de pessoa  —  natureza e, portanto, essência  —  ato de ser, bem como suas implicações imediatas. Se, então, nos referirmos às quatro personagens estabelecidas acima, veremos que a terceira não pode ser atribuída à Humanidade; e, como as outras três implicam umas às outras [duas a duas], há apenas duas possibilidades: ou negar todas as características, ou manter as características 1, 2, 4; e essas duas possibilidades, metafisicamente não contraditórias, excluem-se mutuamente. A expressão do mistério é, portanto, necessariamente uma das duas “teses”, disjuntivamente; mas é impossível, do ponto de vista metafísico, conceder a uma delas um grau mais alto de necessidade ou verossimilhança.

Não estamos sugerindo que elas sejam igualmente verdadeiras. Não estamos dizendo que “o mistério transcende igualmente as duas formulações que, a priori, são igualmente possíveis”. Tais afirmações têm apenas a aparência de magnanimidade e sabedoria, porque dissolvem no relativismo total o instrumento que a sabedoria autêntica precisa para se expressar em nível humano. De dois julgamentos contraditórios, um é verdadeiro e o outro é falso. De duas teses, a do “êxtase” e a da “ordem”, uma é verdadeira e a outra falsa. Mas a metafísica não fornece nenhum argumento que nos permita concluir com necessidade ou mesmo com plausibilidade qual das duas teses é objetivamente a verdadeira. Dir-se-á, com razão, que não cabe à metafísica decidir sobre tais questões. Mas o fato é que a metafísica exige um grau de precisão na expressão do mistério que as fórmulas dogmáticas não alcançam: ou, ao menos, não ainda. Portanto, o mistério transcende suas duas formulações igualmente possíveis; mas é nesse sentido que somos igualmente ignorantes quanto ao valor de verdade de ambas. Isso, pelo menos, é o que achamos justo concluir se tentarmos penetrar no mistério seguindo a “via metafísica” com otimismo atento e paciente.

Podemos agora comparar as duas teses a partir de outros pontos de vista: descobriremos então, a favor de uma ou de outra, “argumentos de conveniência”(56). No entanto, não faremos isso: nosso objetivo não é, repetimos, trazer novos elementos ao debate, mas mostrar como ele pode encontrar um instrumento útil de expressão na formulação precisa e sintética da distinção real.

A Humanidade considerada em si mesma, tanto do ponto de vista do ser quanto do da psicologia

Alexandria e Antioquia revivem na “tese do êxtase” e na “tese da ordem”? A serena rispidez do “debate” nos levaria a pensar que sim: sublimar ao máximo ou densificar ao máximo a realidade propriamente humana de Cristo, são duas tendências expressas de modo preciso por meio das características que pertencem ao ente criado, encarado do ponto de vista da mensura: não conservar nenhuma dessas características, ou excluir apenas aquela que é incompatível com a transcendência do Ente incriado. Trata-se sempre do mesmo dilema; mas a mais precisa de suas formas é, por assim dizer, a inervação de todas as outras; é assim que encontramos facilmente a conhecida formulação psicológica, baseada na distinção entre a essência subsistente e a essência mensurante. Esclareçamos brevemente esse ponto.

Essa essência, em virtude do ato de ser, mensura-se a si mesma e é, por assim dizer, o fundamento ontológico da autorreflexão própria à pessoa; ou ainda: a pessoa é aquele ente criado que realiza ativamente e por si mesmo na ordem intencional o que é passivamente e em virtude da operação criadora na ordem entitativa. E assim como, psicologicamente, a pessoa toma posse de si mesma e se afirma em virtude da reflexão própria da atividade de conhecimento, o ente criado toma posse de seu ser “ontologicamente” e, portanto, afirma-se em virtude do fato de mensurar-se. O fato de que, no ente criado, a essência se mensura a si mesma simultaneamente com e em virtude do ato de ser equivale, na ordem ontológica, ao conjunto de características constitutivas da pessoa considerada do ponto de vista psicológico (57). Um ente no qual a essência não mensura existiria, por assim dizer, objetivamente, isto é, como um objeto do qual não poderia ter posse; esse ente teria o ser, mas não “para si”. Isso é de fato o que ocorre, mas apenas psicologicamente, no caso do êxtase: objetivação tão total que o sujeito não sabe mais que é, ainda que imperfeitamente, sujeito. A denominação “tese do êxtase” é, portanto, apropriada para designar o fato de conceber a Humanidade como uma essência subsistente e não mensurante. A Humanidade, certamente, existe; mas, ao menos ontologicamente, não possui seu ser, que pertence somente ao Supósito divino, no qual ela subsiste. A pobreza radical do ente criado, seu desaparecimento necessário porque é exigido em verdade com relação ao Ente incriado, é assim luminosa e expressamente assinalada.

A “tese da ordem” afirma, ao contrário, que a Humanidade exerce, em virtude do Ato de Ser que não mensura, o ato de se mensurar: mais exatamente, a Humanidade participa relativamente a si mesma como objeto do único Ato de mensurar exercido pela Pessoa do Verbo. Assim, a Humanidade tem o ser, é objetivamente uma essência subsistente: e, nesse ponto, as duas teses concordam, necessariamente, pois estão em consonância com a fé. Mas, ademais, a Humanidade toma posse “ontologicamente” desse ser que ela possui: por si mesma, sem o que “tomar posse” não teria sentido; mas não em virtude de si mesma, sem o que haveria dois esse: ou, o que equivale à mesma coisa, haveria um esse pertencente ao supósito apenas como aquele de um acidente, e a união não se daria in persona. Assim, a Humanidade tem o ser; a Humanidade toma posse do ser que tem, mas só o faz participando, segundo sua própria e distinta realidade, do ato pelo qual o único Supósito é e mensura o Ser. Esse modo de ver merece ser chamado de “tese da ordem”: só é possível sustentá-la, como acreditamos ter demonstrado, em virtude da subordinação da essência enquanto mensurante ao Ato de Ser que, mensurando-se absolutamente, é necessariamente o princípio radical de toda mensuração exercida. Há apenas um único exercício da mensura, mas sua unidade é uma unidade de ordem (58): apenas isto possibilita um esse secundarium que é efetivamente possuído e exercido, e que não é, entretanto, um segundo ato de ser.

O Filho do Altíssimo, Emmanuel; o êxtase do ser, a hierarquia na mensura do ser. A grandeza e a miséria da metafísica é que, segundo as exigências de sua própria luz, devemos escolher, e não podemos. O dilema continua em aberto: A encarnação mostra que a criatura, enquanto tal e ontologicamente, pode, permanecendo uma criatura, não ser mais de modo algum “para si mesma”, e assim ser uma com Deus in Persona; ou a encarnação mostra que a criatura é tão dócil sob a influência criadora que pode ser transformada, por assim dizer, em seu ser de criatura sem deixar de ser ela mesma; ela pode perfeitamente ser “para si mesma”, mas não mais ser assim, exceto em virtude exclusivamente do Deus que a assume, e assim, novamente, ser unida a ele in Persona. Não são duas visões diferentes da mesma Realidade misteriosa; mas são duas realidades diferentes (59) que designamos com o mesmo nome de encarnação, porque conhecemos com certeza apenas as características comuns e não podemos discernir qual dessas duas realidades é a Realidade. As conseqüências concretas e práticas desse dilema são tão consideráveis que não podemos entrar nelas: o debate em torno das duas “teses” foi e continua sendo tão acalorado apenas porque envolve dois místicos, cada um visando, por sua vez, resolver o dilema em seu próprio sentido.

Entretanto, gostaríamos de fazer uma observação que, de certo modo, vai em sentido contrário. A oposição das duas tendências, cada uma das quais gostaria de resolver o dilema, é de fato equilibrada, nas condições atuais, por um consenso comum um tanto implícito em favor da preservação do dilema. O esse secundarium e o “eu psicológico” do Cristo têm sido objeto de estudos concomitantes. Cá e lá, os mesmos dois “princípios” conflitam, de certo modo ocultos e até mesmo não admitidos por aqueles que os aplicam: máxima sublimação ou máxima densificação do aspecto propriamente humano do Verbo Encarnado; negação ou afirmação do esse secundarium, negação ou afirmação do “eu psicológico”. Ora, curiosa e significativamente, os defensores tenazes do esse secundarium negam o “eu psicológico”; e os metafísicos puristas, crentes fervorosos do “êxtase do ser”, diagnosticam um erro grave e prejudicial na dissolução do “eu psicológico”. Incoerente? Mas esse termo pejorativo só pode descrever um comportamento perfeitamente ponderado. Preferimos ver, nessa aplicação incoerentemente alternada dos dois princípios contrários de sublimação e densificação, uma sorte de hesitação visceral, mentalmente falando, que é fruto do instinto da fé: instinto que suspende a adesão para prevenir o erro (60).

Expliquemos como. Aderir vitalmente ao mistério supõe que o consideremos globalmente: isto é, que fundamentemos na Realidade do Objeto o que os diferentes pontos de vista, ontológicos, psicológicos… nos permitem distinguir. Ora, se o crente lúcido que o teólogo deve ser adotasse, mesmo de facto e implicitamente, a partir de todos esses diferentes pontos de vista, o mesmo princípio de economia, seja a sublimação ou a densificação, ele estaria de fato aderindo ou exclusivamente à encarnação “extática” ou exclusivamente à encarnação “ordenada”. Ora, esse exclusivismo pode ser um erro (61), pois atualmente só conhecemos, pela fé, o que é comum às duas “teses” concernentes a esse mistério. A sucessiva implementação no nível racional da “sublimação” e da “densificação” implica que a mente, no ato da luz da fé não reflexiva, tomará como objeto material indispensável uma representação da Realidade que, de facto, e isso é o que importa, não pode derivar de uma explicitação unilateral e extrema de nenhum dos dois princípios. O exclusivismo, que poderia levar ao erro quanto ao objeto material da fé, é de facto evitado pela aplicação alternada, no nível da reflexão racional, de dois princípios contrários. Portanto, há, de fato, um consenso em favor da preservação do dilema, porque ele é agora, individualmente e ainda mais coletivamente, a condição útil, senão necessária, da pureza da fé.

Como já vimos, a metafísica não resolve o dilema: ela demonstra sua possibilidade. Se o rigor da metafísica pudesse ser assumido no próprio exercício da luz da fé, o que é muito desejável, mas ainda mais difícil, ela imporia de dentro da mente do teólogo crente uma perfeita discrição em relação ao mistério: em outras palavras, tornaria racional e coerente uma discrição necessária que, de fato, é sempre vitalmente realizada. O papel da metafísica não é substituir a luz da fé, mas permitir que ela seja exercida segundo os desígnios da razão.

A Humanidade considerada em
sua relação com a Divindade

Vejamos agora como a relação entre a Humanidade e a Divindade é expressa no esquema que propusemos para a distinção real. Mais precisamente, como podemos caracterizar respectivamente a relação da Humanidade: por um lado, com a Pessoa do Verbo que a assume e, por outro lado, com o Deus Trino que a sustenta no ser, na medida em que é “algo criado”. 

Assumir não é produzir ou conservar (62): essas duas operações distintas devem, portanto, pelo lado da criação, ser especificadas distintamente. E uma vez que elas não podem ser concebidas como sucessivas, visto que então a operação assuntiva implicaria destruição, essas especificações distintas devem ser atribuídas com base na estrutura ontológica da Humanidade. Isso não é novidade. Como as duas “teses” se expressam a esse respeito é o que nos propomos a examinar.

A “tese do êxtase” afirma que a Humanidade é uma “essência subsistente” não mensurante; isto é, ela não mensura o Ato de Ser e, portanto, não tem subsistência própria: ainda que subsista no sentido de que tem ser; ela não se mensura e, portanto, não é determinada por si mesma, embora só possa subsistir sendo determinada. Como, à luz disso, podemos situar a operação criadora e a operação assuntiva, respectivamente?

Em todo ente criado, o esse e somente ele pode ser produzido imediatamente pela Causa Primeira. A essência é criada simultaneamente ao ato de ser, mas como subordinada a ele, isto é, subsistindo nele e ordenada a mensurá-lo. A operação criadora, portanto, comunica: e o esse e a essência realmente distinta dele, de tal modo que, para a própria essência, subsistir e mensurar são realmente distintos (63); e, portanto, em particular, subsistir e mensurar a si mesma (em virtude do ato de ser) são realmente distintos (64). A operação criadora comunica à essência de todo ente criado: primeiramente, subsistir; segundo, e distintamente, mensurar-se e, assim, autodeterminar-se: ambos em virtude do ato de ser.

Tendo lembrado isso, podemos expressar a relação dessa realidade criada tão particular, a Humanidade, com o Incriado do seguinte modo. Primeiramente, a operação criadora lhe dá a capacidade de subsistir, não de mensurar, em outras palavras, de ser uma essência subsistente não mensurante: isso, como vimos, não é de modo algum contraditório. Assim, a operação criadora não comunica à humanidade tudo o que comunica à essência do ente criado “ordinário”; e o que, de modo muito preciso, a operação criadora não comunica é, para a própria essência, o mensurar-se, o autodeterminar-se.

Em segundo lugar, a operação assuntiva não comunica à Humanidade a possibilidade de mensurar-se a si mesma; mas comunica a ela a possibilidade de ser mensurada e determinada, o que é necessário para o “subsistir” de todo ente criado.

Em terceiro lugar, aqui estão duas observações sobre a relação entre as duas afirmações imediatamente enunciadas. Atribuir à operação criadora e à operação assuntiva, respectivamente, dois efeitos criados concernentes a ambas as Humanidades é possível, e até mesmo metafisicamente fundado: pois esses dois efeitos criados, a saber, subsistir e ser mensurado (não “mensurar-se”), são, para a essência concreta de todo ente criado, sempre realmente distintos. Esses dois efeitos criados podem, portanto, normal e estruturalmente, sem a necessidade de estabelecer uma distinção artificial para responder verbalmente a uma dificuldade, “especificar” duas operações distintas que terminam à mesma realidade criada: uma vez que essa realidade, a saber, a Humanidade, é assim alcançada respectivamente pela operação criadora e pela operação assuntiva sob formalidades objetivamente e realmente distintas.

A segunda observação concerne à relação entre as duas operações [criadora e assuntiva] mesmas (65). Poderíamos dizer que, no que concerne à Humanidade, a operação criadora “desaparece” em favor da operação assuntiva? Essa seria uma maneira altamente imprópria de colocar a questão, por duas razões. A primeira é que, uma vez que a operação assuntiva não é uma produção, ela seria acompanhada por uma neantização se o “subsistir” da Humanidade não permanecesse o termo que especifica formalmente a operação criadora; esta última, a esse respeito, permanece concomitante à operação assuntiva: longe de ser evacuada por ela. Em contrapartida, e essa é a segunda razão, não há nenhum efeito criado produzido no ente ordinário existente pela operação criadora que seja produzido do mesmo modo na Humanidade pela operação assuntiva: se, ademais, esse fosse o caso, a operação assuntiva ainda seria uma produção, o que não é de maneira alguma. A Humanidade tem, de fato, um efeito último criado que é comum a ela e a toda outra essência concreta subsistente em um ente criado: a saber, ser mensurada e determinada. Mas, ao passo que a operação criadora produz, em todo ente criado e simultaneamente com ele, a essência concreta que se mensura ao mesmo tempo em que mensura o ato de ser e em virtude dele, a operação assuntiva comunica à Humanidade o ser mensurado e determinado: no primeiro caso, a determinação última exigida para a subsistência completa intrinsecamente, em virtude da estrutura do ente, a operação que o faz ser precisamente segundo essa estrutura (66); no segundo caso, a determinação última exigida para o “subsistir” da Humanidade é, com efeito, concomitante a uma produção (67); mas essa produção é justamente o efeito da operação criadora, ao passo que a operação assuntiva comunica exclusivamente, e sem produzir nada, a determinação.

Tendo isso em mente, poderíamos dizer que a operação assuntiva “produz” a determinação requerida para o subsistir da Humanidade; mas a palavra “produzir” deve ser entendida em um sentido mínimo, quase equívoco em comparação com seu significado normal, usual. E, do mesmo modo, podemos dizer que a operação assuntiva “substitui” a operação criadora; mas essa “substituição” deve ser entendida de modo muito preciso e limitado: ela não diz respeito ao “subsistir” da Humanidade em si, mas à sua formalidade última, a saber, ser determinada.

É verdade para todo ente que ele é criado por toda a Trindade e “concebido” no Verbo ou mensurado pela ideia divina à qual corresponde. A produção do ser é atribuída a toda a Trindade, a mensura é simplesmente apropriada ao Verbo: porque à distinção real na criatura entre ser e a mensura não corresponde nenhuma distinção real do lado incriado: nem entre a Trindade e o Verbo, nem mesmo entre a operação criadora de toda a Trindade e uma operação de “concepção” que seria própria ao Verbo. Ele comunica a mensura somente na operação criadora que não lhe é própria. Com relação à Humanidade, o Verbo, como em todos os outros casos, comunica apenas a mensura; mas o faz em virtude de uma operação própria que é simultaneamente inseparável e verdadeiramente distinta da operação criadora. Portanto, não há apenas uma apropriação da distinção real criada à Realidade incriada; os dois aspectos realmente distintos da Humanidade correspondem a duas operações realmente distintas. A Humanidade não é criatura à maneira ordinária: verificamos isso mais uma vez; mas a comparação que acabamos de recordar mostra claramente, pelo que inclui de similitude, que o Verbo, ao assumir, “termina” sem “produzir”.

Isso é, ademais, o que a concepção clássica de subsistência expressou tão adequadamente: por modo de “termo”; já dissemos, de um ponto de vista filosófico, que esse modo de conceber a subsistência certamente precisa ser retificado e completado, mas que não pode ser abandonado (68). Sob outra perspectiva, chegamos à mesma conclusão. O status da Humanidade, segundo a “tese do êxtase”, é perfeitamente expresso ao se dizer que, privada de sua própria subsistência, ela subsiste no Verbo, no “subsistir” do Verbo: desde que “subsistência” seja entendida como uma pura terminatio, e “subsistir” como o fato de ser determinado e mensurado; e acrescentando expressamente que terminatio, “determinar” e “mensurar” são fundados no ser e, portanto, pertencem à ordem do ser, ainda que formalmente não designem o ser em si. Se, então, “subsistir” e “subsistência” forem tomados nesse sentido, o fato de que o Verbo comunica à Humanidade uma pura terminatio que ela não possui nem por si nem em virtude da operação criadora será adequadamente expresso dizendo que o Verbo faz com que a Humanidade, que não tem subsistência própria, subsista. A Humanidade é produzida por toda a Trindade e, em última instância, atuada pelo Verbo.

A análise da relação entre a Humanidade e a Divindade, portanto, conduz logicamente à formulação mais sóbria e grandiosa da “tese do êxtase”; mas não precisamos seguir essa direção. Para nosso objetivo, basta observar que, em tudo o que acabamos de recordar, a única dificuldade metafísica é aquela que já analisamos e exorcizamos como contradição: uma essência concreta pode subsistir sem, no entanto, exercer o ato de mensurar em virtude do ato de ser; ainda que toda essência concreta seja, de fato, mensurada por si mesma, não é contraditório que não o seja. Isso é suficiente para possibilitar a especificação da operação criadora e da operação assuntiva, respectivamente: indicamos como e, ao fazê-lo, vimos confirmada a quase necessária correspondência factual entre a “tese do êxtase” e o fato de conceber a subsistência por modo de “terminatio”.

Vejamos agora como a relação entre a Humanidade e a Divindade é explicada segundo a “tese da ordem”. A Humanidade é concebida aqui como uma essência subsistente e mensurante, mas mensurando apenas a si mesma e não o Ato de Ser em virtude do qual ela, no entanto, exerce exclusivamente o ato de mensurar. E como a determinação última exigida ao subsistir concreto pertence à ordem do ser, e como essa determinação última chamada subsistência (69) cabe à Humanidade somente em virtude de um Ato de Ser que ela não mensura e que, consequentemente, não lhe pertence (70), segue-se que a Humanidade é determinada como é exigida para subsistir e no subsistir, ainda que não tenha essa determinação própria, ainda que não tenha subsistência própria.

Com este apontamento, podemos agora esclarecer: a operação criadora é “especificada” pela realidade da essência subsistente; a operação assuntiva comunica à Humanidade a determinação última concomitante ao “subsistir” concreto: a partir desses dois pontos de vista, não há diferença com a “tese do êxtase”.

Quanto ao exercício do ato de mensurar, ele pode ser visto como sendo uma certa realidade, um certo ato: e, desse ponto de vista, ele é integrado à essência subsistente e não pode realmente ser distinguido dela sob pena de uma iteração indefinida da distinção real; desse ponto de vista, portanto, o ato de mensurar exercido pela Humanidade pertence à operação criadora. Mas esse mesmo ato pode ser considerado como terminando, de fato, ao “subsistir” da Humanidade: e, desse ponto de vista, ele pertence à operação assuntiva. Por conseguinte, a operação assuntiva comunica simultaneamente à humanidade a capacidade de exercer o ato de mensurar e de possuir a determinação última exigida ao “subsistir”: mas a conexão entre essas duas coisas reside no fato de que elas são comunicadas simultaneamente pela operação assuntiva, conexão muito diferente, portanto, daquela própria do ente ordinário, no qual a essência é apenas mensurada e, no entanto, é dotada de subsistência pela mensuração do ato de ser.

Poderíamos repetir todas as observações que fizemos ao examinar a relação entre a Humanidade e a Divindade segundo a “tese do êxtase”. Notemos, em particular, que a operação assuntiva não “substitui” a operação criadora para produzir um efeito do qual esta última seria privada. É bem verdade que a operação criadora não termina na Humanidade com uma essência concreta exercendo o ato de mensurar como o faz a essência em todo ente ordinário, isto é, mensurando o ato de ser: a esse respeito, a operação criadora é efetivamente, na Humanidade, suspensa em relação a um efeito criado. Mas esse mesmo efeito não é, de modo algum, produzido pela operação assuntiva, que, portanto, não se substitui à operação criadora. A operação assuntiva comunica à humanidade as formalidades finais desse efeito, a saber, mensurar e ser mensurado; mas ela o faz referindo-as simultânea e imediatamente a si mesma, e não produzindo a conexão conatural com o ente criado ordinário. A diferença, do ponto de vista que nos interessa aqui, entre as duas “teses” reside apenas nisso. A Humanidade toma ou não posse ontológica, dependendo de ser ou não concebida como exercendo o ato de mensurar, do “ser” e do “subsistir” que, em todo caso, necessariamente lhe pertencem de fato, e que, em todo caso, não lhe pertencem propriamente. Acrescentemos ainda que, segundo a “tese da ordem” como segundo a do “êxtase”, a especificação da operação assuntiva pode ser perfeitamente expressa dizendo-se que essa operação comunica subsistir à Humanidade, a qual não tem subsistência própria; mas será necessário, em harmonia com a “tese da ordem”, como já vimos, conceber a subsistência pelo modo da “auto-actuatio” e não mais pelo modo de “terminatio”: a questão é suficientemente clara para não nos determos em repeti-la.

Vemos, então, que nossa conclusão permanece a mesma: ambas as “teses” são igualmente possíveis; a relação entre a Humanidade e a Divindade é expressa em ambas: a formulação está, ademais, perfeitamente de acordo com o gênio de cada uma, mais clara segundo a “tese do êxtase”, mais matizada segundo a “tese da ordem”. O exercício do ato de mensurar por parte da Humanidade, como vimos, é, de diferentes modos, uma operação criadora e uma operação assuntiva (71). Se esse exercício não existe, nada é atribuído em comum às duas operações: sua distinção é, assim, expressa com maior clareza; se esse exercício existe, ao menos no que lhe diz respeito, as duas operações só podem ser distinguidas pela ordenação de uma à outra: é o ajuste, simultaneamente harmônico e condescendente, do criado ao Incriado e do Incriado ao criado, que é então melhor manifesto.

Seria tentador “escolher tudo”: e, uma vez que as duas “teses” estão respectivamente ligadas a duas concepções de “subsistência”, pareceria de fato permissível não excluir nada. Mas aqui, as coisas se passam de maneira diferente e até mesmo oposta na filosofia e na teologia. As duas maneiras de compreender a noção de subsistência não apenas podem ser conservadas, senão que ambas devem ser conservadas; já dissemos por que (72): dada, por um lado, a composição radical própria ao ente criado, e dado, por outro lado, o caráter analógico do ente, todas as noções que dizem respeito, no nível do ser, ao ente criado necessariamente abraçam sua dualidade: devemos, portanto, esperar que, se quisermos expressá-las com alguma precisão, tenhamos de fazê-lo de dois modos diferentes; e esses dois modos de expressão são tão radicalmente complementares quanto distintos, assim como o ente concreto é radicalmente uno em sua composição.

A situação é bem diferente na teologia, e evidentemente é sempre uma questão da Humanidade. Embora se refiram a duas concepções diferentes de subsistência, as duas “teses” estão em perfeito acordo nos três pontos seguintes: A Humanidade não tem “subsistência” ou “subsistir” próprios; um “subsistir” é comunicado à Humanidade e, na medida em que lhe pertence de fato, embora não [de direito], é claramente um “subsistir” criado, análogo àquele que pertence à essência concreta de um ente criado; e, por fim, um ponto capital, a analogia que acabamos de recordar é, à medida que é positiva, apenas de proporcionalidade: um certo “subsistir” é à Humanidade o que o “subsistir” próprio à essência é à essência concreta no ente ordinário; mas vimos que, em ambas as “teses”, esse “certo subsistir” que pertence de fato à Humanidade não tem a mesma estrutura ontológica que o “subsistir” ao qual corresponde analogicamente no ente ordinário. A operação assuntiva supre a “subsistência” que a Humanidade não tem propriamente; mas essa substituição não consiste em que a operação assuntiva tome o lugar da operação criadora para comunicar à Humanidade um subsistir da mesma natureza que o subsistir da essência concreta no ente ordinário: ademais, é difícil ver como, nessa hipótese, esse “subsistir” concomitante à operação assuntiva poderia pertencer de fato à Humanidade sem pertencer a ela propriamente. A operação assuntiva, então, não substitui a operação criadora, mas supre um certo efeito que a operação criadora não produz: e o efeito realizado pela suplência é diferente do efeito ordinário, não apenas quanto ao modo de realização, mas também quanto à natureza do que é realizado, não somente segundo a ordem das causas eficientes, mas também segundo a ordem das causas formais (73).

Ora, o que concerne imediatamente ao mistério e, portanto, à teologia, não é a subsistência ausente, mas o “subsistir” que a supre: subsistir que, como acabamos de lembrar, é, em virtude de sua estrutura ontológica, absolutamente irredutível ao tipo encontrado no ente ordinário. Podemos, portanto, compreender como as duas “teses”, que expressam duas maneiras diferentes de suprir a falta de subsistência criada, excluem-se mutuamente, enquanto as duas maneiras de conceber a subsistência imanente ao ente criado implicam uma à outra. O filósofo deve conservar tudo, isto é, conservar todo o instrumento; o teólogo sabe que a Realidade não pode incluir a contradição, mas ele não sabe, no momento, qual das duas partes contrárias é a verdadeira. Se uma das duas “teses”, e obviamente apenas uma, recebesse sanção dogmática, isso não dogmatizaria de modo algum uma das duas maneiras de conceber a subsistência; isso significaria simplesmente que uma das duas concepções se tornaria o instrumento útil para expressar a maneira pela qual Deus escolheu se encarnar.

A subsistência é tipicamente uma noção da “filosofia cristã”. Descoberta, analisada e elucidada sob o impulso da curiosidade crente, ela agora tem um status próprio ao qual as investigações subsequentes do mistério do qual surgiu não podem ser vinculadas.

A filosofia não permite que
se escolha entre as duas “teses”

Como dissemos, nosso intuito não era trazer novos elementos para a controvérsia referente ao esse secundarium, mas mostrar que uma formulação analítica e precisa da distinção real possibilita expressar claramente as considerações metafísicas envolvidas nas duas “teses”. Tornou-se então claro, pareceu-nos, que não há nenhum argumento metafísico que permita que qualquer um deles seja considerado mais “verdadeiro”: na extensão, é claro, em que eles se excluem mutuamente, já que o que têm em comum é a fé. Não pretendemos negar que existam outros tipos de argumentos. Como não desejamos nos afastar muito da filosofia, nos limitaremos, à guisa de conclusão, a perguntar se, quando a filosofia se torna sabedoria, ela não pode fornecer uma luz e talvez uma decisão das quais se mostrou incapaz quando é meramente, a serviço do mistério, instrumento de expressão que é tanto dócil quanto exigente.

“Razão de ser”, “razão de essência”
e “razão de criatura”

Em tudo o que precede, consideramos deliberadamente o ente concreto: é nele que visualizamos a essência e o ato de ser, sua distinção e sua unidade, que são expressas de maneiras diferentes e mutuamente convertíveis. Ora, sendo a Humanidade uma realidade criada irredutivelmente original, não seria prudente examinar essa Realidade que, a priori, deve ser mais perfeita que todas as outras, partindo não do que lhe é inferior, isto é, do caso “ordinário” da criação, mas da “razão de criatura”(74)? Algo, seja qual for a ordem a que pertença, é mais bem iluminado quando se refere ao princípio dessa ordem, e não aos elementos menos perfeitos, que manifestam apenas sua participação limitada no princípio. A experiência confirma como indubitável que esse é o requisito da sabedoria. Mas será que ele pode ser satisfeito no caso em questão?

O “princípio da ordem”, com o qual a Humanidade deve ser comparada, e não com os “casos” de ordem, é a “razão de criatura”, cuja perfeição as criaturas efetivamente existentes e observáveis podem não esgotar. Mas quem conhece a razão de criatura se não o Criador? A via da sabedoria é, portanto, interdita, ao menos se a considerarmos de modo absoluto. Contudo, não há um “conhecimento certo” da razão de criação acessível ao espírito criado? Esta última, sem dúvida, tem um certo conhecimento da “razão de ser”; ora, uma vez que a única condição necessária e intrinsecamente imposta ao ente criado é a composição do ato de ser e da essência, não seria suficiente acrescentar um “conhecimento certo” da razão de ser da essência ao que sabemos da razão de ser para também termos um “conhecimento certo” da razão de criatura? Isso significaria considerar a essência não como ela é no ente concreto, mas como sua natureza exige que ela seja. E como é evidentemente impossível normatizar a essência, que é um transcendental, a não ser enquanto função do ser, resta caracterizar a essência como se faz tradicionalmente (75): a essência é aquilo que é em potência a ser. Entretanto, a essência não é como a matéria, que é apenas potência; a essência é a potência última que participa do ato que ela mesma exige.

A Humanidade estaria atingindo
a perfeição da “razão de essência”?

Podemos, então, inferir analogicamente a natureza da relação entre a essência e o ser a partir da natureza da relação entre a potência e o ato, como é observável e exigido na ordem fenomênica? A potência, por mais “próxima” que possa estar em relação ao ato, tem a disposição última a recebê-la somente em virtude do ato e no momento em que é atuada pelo ato. A atuação da potência, antes que ela tenha essa determinação última, comporta o mais ou o menos que o ato exclui absolutamente. A comunicação do ato é, portanto, para a potência, um começo absoluto; na produção dessa descontinuidade ontológica considerada como tal, como descontinuidade, a potência não tem e não pode ter parte.

Uma vez que todos esses dados são analógicos, podemos transpô-los em relação a essa potência particular, mas também são primordiais, pois se correlacionam com o ser, que é a essência. Portanto, diremos duas coisas. Primeiramente, a essência possui apenas em seu ato, que é o ser, no ato de ser, a determinação última a possuí-la; essa determinação última é, portanto, de fato, uma exigência da posse do ser (76): ela pode ser chamada de “subsistência”, na medida em que é atribuída à essência, ou “subsistir”, na medida em que é o modo próprio segundo o qual a essência participa atualmente do ato de ser.

Em segundo lugar, diremos que a essência não tem e não pode ter qualquer parte ativa na formação dessa disposição última, ou “subsistência”, ou “subsistir”, que lhe cabe apenas em virtude do ato de ser e [de] estar nela; esse é o correlato analógico e propriamente metafísico do que acabamos de dizer: entre a atuação relativa antecedente à posse da forma e a recepção simultânea da forma e da disposição última, há uma descontinuidade radical na resolução da qual é impossível que a matéria tenha qualquer participação.

Retornemos agora ao mistério da Encarnação, supondo que o que acabamos de concluir analogicamente sobre o sujeito da essência como potência de ser seja assumido na Sabedoria divina. Então, diremos o seguinte. Uma vez que a Humanidade não é, no Verbo encarnado, uma realidade criada completa, dado que não é uma pessoa, ela só pode ter, metafisicamente, o status de uma essência; e uma vez que o Verbo encarnado é perfeito, convém que a Humanidade realize perfeitamente a “razão” do que ela necessariamente é, isto é, a “razão” de essência. Do que vimos, então, segue-se que a essência que é a Humanidade, por um lado, subsiste no Ato de Ser e, por outro lado, não faz nenhuma contribuição positiva na constituição desse “subsistir”: ela o recebe sem mensurá-lo, tal como a matéria recebe sem o mensurar a disposição última que a proporciona à forma. É, portanto, a “tese do êxtase” que seria acreditada.

O argumento que acabamos de traçar é sério. Mas não chega a ser apodítico. Em primeiro lugar, poder-se-ia contestar que o caráter analógico da disposição última concerne não apenas à sua realidade, mas também ao modo de sua realização na ordem do devir material, por um lado, e na ordem do ente criado, por outro: cá e lá, há de fato potência e ato e, portanto, verdadeira analogia; mas isso não implica que os elementos pertencentes à relação potência-ato no devir material sejam realizados do mesmo modo na relação potência-ato que existe entre essência e ser.

Em segundo lugar, e principalmente, nosso argumento em favor da “tese do êxtase” é um argumento de “sabedoria”. Se considerarmos arazão de essência”, não vemos que o fato de exercer a mensura seja uma nota necessária: a pureza da potência consiste em ser completamente passiva quanto ao ser: e aí temos a “tese do êxtase”. 

Mas se considerarmos a essência tal como é no ente concreto, ela sempre exerce o ato de mensurar: por que a Humanidade deveria ser privada dessa perfeição, uma vez que não é de modo algum contraditório que ela a possua, como acreditamos ter demonstrado? Sob qual ponto de vista, então, devemos nos situar para desenvolver um “argumento de conveniência”? O Verbo encarnado atende à pureza formal da “razão de essência” e, portanto, à da razão de criatura, o Verbo encarnado coroa a ordem dos entes concretos? Um Mistério… Transcendência ou misericórdia, mas a misericórdia mais consoladora não é manifestar ao máximo a Transcendência? Não acreditamos que a escolha possa ser feita pela razão, embora seja legítimo sustentá-la mediante [razões] (77).

Notas:

1. De Potentia, q. 7, a. 4.

2. Ib., q. 9, a. 1.

3.  P., q. 3, a. 3.

4. Quaestio disp. de Anima, a. 17, ad (?)  e De Pot., q. 7, a. 4.

5. P., q. 3, a. 3.

6. Quaestio disp. de Anima, a. 17, ad (?).

7. Quodl. II, a. 4, ad. 2.

8.  De Spirit. Creaturis I, ad. x (?). Santo Tomás não nega absolutamente a identidade afirmada nos textos do primeiro período. Ao contrário, ele insinua uma certa distinção na forma em si. Isso é o que resulta da comparação de três asserções sucessivas cujo significado está evidentemente atrelado:

a) Omnis forma, in quantum hujusmodi, est actus.

b) Omne subjectum comparatur ad id cujus est subjectum, ut potentia ad actum.

c) Si quae ergo forma est quae sit actus tantum, ut divina essentia, illa nullo modo potest esse subjectum.

A asserção (c) implica que existem formas que não são somente ato. E como a forma como tal é ato (a), segue-se que, se uma forma pode não ser apenas ato, é porque ela pode ser considerada de um ponto de vista que não é o da forma como tal. Esse ponto de vista é precisamente o do sujeito, como a asserção (b) evidencia. Essa sequência, portanto, parece insinuar a distinção entre:

a. forma enquanto forma, forma atuante, forma comunicando a atuação última que é (forma [?]);

p. forma enquanto sujeito: que permanece “receptiva” do “esse” e, por tudo isso, em potência quanto a ele.

É objetivamente a mesma coisa afirmar a distinção real entre sujeito e forma, ou a distinção real entre dois aspectos formalmente distintos da forma. Mas a segunda maneira tem a vantagem de não contradizer materialmente os textos do primeiro período.

9. De Subst. separatis, c. 6 (ed. Perrier, nº 41, p. 149), e assim: “Ilae enim substantiae quae perfectissime esse participant non habent in se ipsis aliquod quod sit ens in potentia tantum; unde immateriales substantiae dicuntur”.

10. Cf. supra, p. 32, n. 8.

11.  É claro que há anterioridade da forma, tanto no concreto quanto no abstrato; cf. Aristóteles, Metaph., Z (?), 10, 1036 a 12-25.

12. Não estamos dizendo que a distinção real é evidente. Pelo contrário, achamos que ela requer demonstração e que essa demonstração só pode ser feita depois da existência do Ato puro. As observações atuais assumem que a distinção real foi estabelecida: elas simplesmente visam sintetizar suas diferentes formulações.

13. CL p. 32, n. 8.

14. Convertibilidade entre duas proposições ou juízos significa que cada uma implica a outra como sua consequência necessária.

15. n I Sent. d. 33, q. 1, a. 1, ad. Ium, constam quatro referências à locução esse est actus essentiae. Isso significa que há, da essência ao esse, uma relação de potência para o ato, sendo o esse do ente. E essa expressão obviamente significa que a essência tem uma certa realidade no ente: se a “potência” não fosse real, o que é seu ato (isto é, o esse) também não seria real: e isso é absurdo.

16. A primazia do esse do ponto de vista da atuação equivale a dizer que o esse é o ato último. Isso está bem expresso em (I [?]), q. 4, a. 1, ad. IIIum.

17. III, q. 75, a. 4: “Determinatio autem cujuslibet rei in esse actuali est per ejus formam”. Em outras palavras, a essência tem primazia (sobre o ato de ser) do ponto de vista da mensura, uma vez que a essência exerce claramente a função mensurante mediante a forma.

Empregamos o conveniente termo “primazia”. Obviamente, qualquer traço de univocidade deve ser eliminado. Os dados primários, que se relacionam ao ser, são analógicos como o ser. E segue-se da diferença de natureza, por assim dizer, entre a essência e o ser, que a primazia da essência está subordinada à do ser, que é absoluta: mesmo para exercer a mensura, que, no entanto, lhe pertence totalmente [propriamente], a essência requer o ato de ser. Essa coordenação das duas “primazias” resulta do fato de que o esse é effectus formae (I, q. 42, a. 1, ad 1; q. 104, a. 1, in medio), ao passo que o quantitas virtutis attenditur secundum perfectionem alicujus naturae vel formae” (I [?], q. 42, a. 1, ad 1): o esse é ato em relação à forma, na medida em que esta última é mensura.

18. A distinção per sea se é relacional: em outras palavras, ela caracteriza os dois termos que designa em relação um ao outro. Em termos absolutos, nenhuma realidade criada é a se: isso corresponde somente a Deus. Mas uma realidade que é princípio pode ser dita ser a se em relação à realidade da qual é princípio.

19.  Cf. p. 35, n. 3.

20. J. Maritain, Sur la notion de subsistence, em RT LIV, 1954, pp. 242-256, distinguiu: essência receptora (essência à medida que recebe o esse), essência exercendo o esse. O autor mostra que o esse só pode ser exercido no supósito; e define a subsistência como sendo o princípio que distingue a essência exercendo o esse da essência recebendo o esse. A distinção que propomos retoma a do Sr. Maritain. Nosso ponto de vista, entretanto, é diferente. Nosso propósito particular não é definir a subsistência que dá ordem ao Ser, mas analisar a distinção real. Isso nos leva a especificar o que é próprio à essência. Se ela exerce o esse, é, ao que nos parece, na medida em que exerce sua função própria, que é mensurá-la. O fato de que o ser é exercido pela essência apenas no supósito e no ato de ser se traduz, em nosso sistema de referência, no seguinte: a essência mensura per se, mas não a se, ela mensura apenas participando ao ato de ser, o que implica, evidentemente, o supósito. Nosso objeto de estudo não é aquele tratado pelo Sr. Maritain. Pensamos, entretanto, que podemos nos referir à distinção que o autor desenvolveu de forma proveitosa, interpretando-a sob nosso ponto de vista.

21. Dizemos “seria”, porque esse Ente não se encaixa na apreensão imediata, como o “ente concreto” no qual nossas análises se concentram. 

22. J. Maritain, Sur la doctrine de l’aséité divine, em Mediaeval Studies V, 1943, pp. 39-50.

23. De Spirit. Creaturis, a. I, ad, 1 (?); ci. p. 32, n. 8.

24. De Spirit. Creaturis, a. I, ad, 1 (?); ci. p. 32, n. 7.

25.  Em outras palavras, do ponto de vista inteligível, ela se apresenta como o (?).

26. Já evocamos, na p. 36, essa impossibilidade de regressão indefinida. Ela concernia à essência mensurante considerada propriamente em sua função de mensura. Agora afirmamos a mesma coisa, mas a essência mensurante é considerada do ponto de vista de sua realidade. Portanto, encontramos, para a essência mensurante em si, a mesma dualidade de pontos de vista e de expressão exprimidos pela distinção essência subsistente-essência mensurante. Isso é perfeitamente normal: já o observamos e o observaremos novamente. Por mais longe que se leve a análise do ente criado, os elementos últimos que são de fato explicitados podem, e em certo sentido devem, ser considerados a partir de qualquer um dos pontos de vista ditados pela composição radical do ente. Como essa composição é expressa por uma distinção transcendental, isto é, entre dois transcendentais, ela é necessariamente encontrada em cada grau analisável do ente criado.

27. A ordem habitual dos tratados metafísicos indica que a unidade e a distinção são examinadas em capítulos que não são apenas separados, mas desconexos, não ligados. Como resultado, a ênfase é posta, e com razão, na “distinção real”; mas geralmente é omitido o exame de como os dois termos realmente distintos se compõem positivamente para constituir um ente. 

28. E não somente como negação de divisão.

29. A distinção entre o ente criado e o Incriado é, por certo, suficientemente expressa por outras fórmulas. Aquelas que se referem apenas ao ser só podem caracterizar o ente criado de maneira negativa. A composição ou identidade entre a essência e o ato de ser é de uma espécie de tipo estático; elas consideram o ato atuado. A noção de mensura, por outro lado, permite desconsiderar (?) e caracterizar, sob esse ponto de vista, o ente criado de maneira intrínseca e positiva.

30. Cada um dos termos “mensurar”, “mensurar-se” e “mediação” é empregado duas vezes.  Entre as duas incidências há, para cada uma, unidade analógica: já recordamos isso, supra, p. 35, n. 2 e 3. O caráter absoluto subentendido pela expressão reflexiva “mensurar-se” deve ser entendido diferentemente: o ato de ser mensura-se do ponto de vista do exercício incluso no ato de mensurar, a essência se mensura do ponto de vista da determinação que resulta do ato de mensurar. Por outro lado, é próprio à essência comunicar ao ato de ser a determinação que ela é: participando do ato de ser do ponto de vista do exercício, ela faz deste o ato de mensurar. Esse simples fato implica, se o expressarmos analiticamente, uma dupla mediação, mas em dois sentidos diferentes: a mediação da essência consiste em comunicar a determinação ao exercício do qual o ato de ser é o princípio e o termo: e, assim, o ato de ser, primeiro do ponto de vista do ato, mensura-se pela mediação da essência; a mediação do ser consiste no fato de que a essência exerce apenas em virtude dela o ato pelo qual o ato de ser, e nele a própria essência, é determinado, completado no ser. Há, portanto, involução entre o ato de ser e a essência, isto é, o primeiro desempenha em relação à segunda o mesmo papel que a segunda desempenha em relação ao primeiro; mas essa involução não é total: o fato de a essência, participando ao exercício do ato de ser, determiná-lo, é imanente e ordenado a esse exercício. Ao passo que o fato de que o ato de ser mensura a si mesmo não é ordenado ao fato de que a essência mensura a si mesma: é o primeiro que inclui o segundo e o finaliza. Há uma primazia relativa do ato de ser do ponto de vista do ato, da essência do ponto de vista da mensura: esta é a involução; mas, absolutamente falando, entre esses dois pontos de vista, há a primazia do ato: e, portanto, absolutamente falando, há a primazia do ato de ser.  

Tudo isso é o tomismo clássico, e deve manter sob controle as simplificações apressadas do essencialismo e do existencialismo.

31. Situamo-nos na ordem racional. 

32. Nós os designaremos, ocasionalmente, pelas duas locuções: “tese do êxtase” e “tese da ordem”; a unidade do esse do Verbo Encarnado sendo concebida, cá pela subordinação, lá pelo modo do êxtase. Não queremos significar que o êxtase seja desordem ou que a ordem seja realmente a justaposição de duas ordens. Peço que vejam nessas expressões apenas uma maneira conveniente de nos expressarmos. Não nos deteremos em criticá-las, pois não estamos estudando essa questão por ela mesma. 

33. No que se segue, designaremos assim a natureza humana de Cristo, tal como ela é, concretamente individualizada na Pessoa do Verbo encarnado.

34. A utilização desse termo requer alguma explicação: o que se segue mostrará suficientemente que o significado, clássico na teologia, do termo “subsistência” não abrange exatamente o que entendemos, do ponto de vista filosófico, por “essência subsistente”. É importante, no entanto, evitar qualquer mal-entendido. Vimos em diversas ocasiões, à luz da metafísica, que a essência subsistente e a essência mensurante são tão distintas quanto indissociáveis. O que é ato na essência, na medida em que ela realiza o ato de mensurar participando ao ato de ser, é a essência subsistente. Em outras palavras: “essência mensurante” designa a essência na medida em que ela realiza o ato de mensura em virtude do ato de ser, e assim mensura por ordem: primeiro o ato de ser, e depois a si mesma; “essência subsistente” designa simultaneamente: por um lado, a essência como co-princípio com o ato de ser, realmente distinta dele e subordinada a ele, do ato de mensurar; e, por outro lado, essa mesma essência como mensurada por esse ato, simultaneamente com o ato de ser e nele. Isso é o que significa, de maneira abreviada, a fórmula: a essência mensura a si mesma; a essência é tanto princípio quanto termo (não adequado) do ato de mensurar. E devemos, mais uma vez, fazer a mesma observação: entre a essência subsistente como co-princípio do ato de mensurar e a essência subsistente como integrada ao termo do mesmo ato, não pode haver distinção real: vimos (supra, p. 43, n. 1) que é impossível introduzir uma distinção real na “essência mensurante”; agora dizemos o mesmo para a “essência subsistente”. E a razão é a mesma: introduzir uma distinção real em um dos dois termos da distinção real original (essência-ato de ser, ou essência subsistente-essência mensurante) seria inevitavelmente estabelecer um processo indefinido.

Tendo recordado isso mais uma vez, vamos explicar a diferença de acepção que resulta para o termo subsistência de seu uso na filosofia ou na teologia. Em todo caso, a essência que subsiste, que tem de “subsistir” participando do ato de ser segundo sua própria realidade de essência, é a essência mensurada: no ato de ser e simultaneamente a ele, já que nada existe que não seja determinado. Muito formalmente, desse ponto de vista do “subsistir”, não importa como a essência é mensurada, contanto que ela seja mensurada: filósofo e teólogo concordam nesse ponto. Agora, eis o que os separa:
Para o filósofo, que considera o ente criado como ele é, a essência é mensurada apenas como inclusa no termo do ato de mensura que ela mesma exerce per se (não a se); mas como é impossível, como acabamos de relembrar, distinguir realmente os dois aspectos da essência como termo ou como princípio do ato de mensurar, segue-se que, realmente, a essência tem que “subsistir” tanto de um ponto de vista quanto do outro: a distinção formal dos pontos de vista é puramente abstrata e não tem correspondência objetiva na realidade. Em outras palavras, é impossível, no ente concreto, instituir uma ordem real entre a “essência subsistente” e a “essência mensurante”: elas são realmente distintas, isso é necessário; mas como, em troca, elas são uma só, esse mistério que dissemos nos escapa. A essência, para ser co-princípio do ato de mensurar, deve ser considerada como subsistente: e, desse ponto de vista, a “essência subsistente” é anterior à “essência mensurante”; mas a essência só “subsiste”, e portanto é subsistente, se for mensurada: e, desse ponto de vista, a “essência subsistente” é posterior à “essência mensurante”. Aqui, então, há duas ordens opostas entre a “essência subsistente” e a “essência mensurante”; e a distinção entre essas duas ordens (dizemos entre as duas ordens da “essência subsistente” e da “essência mensurante”, ou, inversamente, não entre a “essência subsistente” e a “essência mensurante” propriamente ditas) é, como é evidente, rigorosamente convertível com a distinção entre os dois aspectos da “essência subsistente”, como co-princípio ou como termo do ato de mensurar; e uma vez que esta última distinção é, como vimos, puramente abstrata para o filósofo, o mesmo se aplica às duas ordens opostas entre a “essência subsistente” e a “essência mensurante”: essas duas ordens só podem ser distinguidas abstratamente. Portanto, é impossível, à luz filosófica, estabelecer uma prioridade real da “essência subsistente” sobre a “essência mensurante”, ou vice-versa. Objetivamente, a essência é indissociavelmente “subsistente” e “mensurante”: e é assim que ela tem de “subsistir” no ato de ser; isto é tudo o que o filósofo pode dizer. Atribuir formalmente a “subsistência” à “essência subsistente”, na medida em que ela termina (não adequadamente) o ato de mensurar, não deixa de ser relevante; no entanto, como esse ponto de vista formal não corresponde a nenhum aspecto “objetivo” realmente distinto, é fácil entender por que a noção de subsistência pode ser considerada “não-metafísica”. Ela está ligada a uma distinção que deve necessariamente permanecer virtual e, portanto, não é de interesse para o metafísico como é para o teólogo da encarnação. A Humanidade é uma realidade criada na qual a essência e o ser são distintos, ou ainda, na qual a essência é realmente distinta da subsistência que lhe pertence; mas essa essência não pode mensurar o Ato de Ser em virtude do qual ela subsiste. A essência é mensurada, pois subsiste; mas não é princípio do ato em que sua realidade é mensurada: ou, ao menos, não é mensurada do modo como é mensurada a essência concreta do ente concreto ordinário (as duas “teses” se opõem nesse ponto: veja o que é dito no texto). Segue-se imediatamente que a distinção entre os dois aspectos da essência subsistente, tanto enquanto co-princípio do ato de mensurar quanto enquanto termo do mesmo ato, torna-se real, e não virtual, como era para o filósofo. A Humanidade tem, de fato, uma “subsistência”, e como o “subsistir” pertence formalmente à essência enquanto termo do ato de mensurar, é a essência subsistente enquanto mensurada que deve ser mantida; quanto à essência subsistente enquanto princípio do ato de mensurar e à essência mensurante, elas existem na Humanidade ou em um sentido muito analógico apenas (“tese da ordem”), ou não existem de modo algum (“tese do êxtase”). Do mesmo modo, a noção de subsistência adquire um escopo ontológico simultaneamente à distinção que a comanda. A subsistência é a propriedade que pertence à essência concreta porque é mensurada no ato de ser, [abstração feita] independentemente de ela mensurar ou não o ato de ser.

A essência subsistente do teólogo não é, portanto, a essência subsistente do filósofo: no que seguirá, tomaremos a liberdade de distinguir esses dois significados por meio da ortografia. E é fácil ver como a subsistência, que para o teólogo é uma noção autenticamente metafísica, não pode ser mais do que uma abstração para o filósofo que, recusando-se a abrir a metafísica ao mistério, declara a noção de subsistência estéril a priori.

Todas as dificuldades que acabamos de analisar podem ser eliminadas pela proibição de substantivos como “subsistência” e pelo emprego exclusivo do verbo “subsistir”. Toda essência concreta subsiste, tem de “subsistir”: a Humanidade como qualquer outra; não haverá mais necessidade de arbitrar entre o filósofo e o teólogo. E, por outro lado, não há necessidade de perguntar se esse “subsistir” pertence à “essência subsistente” ou à “essência mensurante”: ela pertence à essência em sua totalidade, no ato de ser; ao considerar o “subsistir” no ato de ser, evitamos todas as questões, especialmente as falsas. Mas essa maneira de ver, que não deixa de ter um traço de existencialismo, também não está livre da letargia mental. Empregar um vocabulário que torna impossível fazer perguntas não está eliminando nem resolvendo as questões. A teologia da encarnação exige do filósofo um esforço de análise concernente à estrutura do ente concreto: e esse esforço é benéfico à metafísica que, no entanto, teria sido incapaz de inspirá-lo por si só. Portanto, manteremos os dois termos: “subsistir” e “subsistência”. É claro que o [termo] principal é o “subsistir”, isto é, o princípio da “subsistência”: a estrutura da essência concreta é resolvida no ato, assim como a estrutura do ente. Mas a palavra “subsistência”, que atribui o fato de subsistir à essência como um modo de qualidade, manifesta uma verdade que é assumidamente secundária, ainda que muito importante. Esta verdade é a seguinte: um ato de ser que não seja o Ato puro é uma ordem; tal ato de ser comporta necessariamente uma hierarquia intrínseca; ou então: ele é participado de diversas maneiras pelas realidades distintas que integram a unidade do ente. A essência concreta, subsistente e mensurante, participa do ato de ser segundo um “subsistir” próprio: e, por isso, a essência concreta possui uma propriedade que pode ser chamada de subsistência.

35. Contudo, ela não mensura o Ato de Ser. Analisaremos isso mais adiante.

36.  Cf. p. 37, n. 1. 

37. Essa é a elucidação de grande importância feita pelo Sr. Maritain em les Degrés du savoir.

38. Isso é comum a todos os entes, como já vimos. A essência não mensura a se, mas em virtude do ato de ser: na (?) Humanidade, a essência mensurante mensura em virtude do Esse incriado.

39. Situamo-nos aqui do ponto de vista propriamente metafísico, que é o do ser. A essência é evidentemente completa na Humanidade, no sentido de que ela possui todas as características da natureza humana. 

40. A essência é mensurada e subsistente, sem ser, de modo algum, co-princípio do ato de mensurar.

41. A essência possui subsistência porque mensura; ela mensura em virtude do ato de ser; a subsistência pertence propriamente à essência porque o ato de ser é mensurado pela essência.

42. Lembremo-nos de que a subsistência completa a essência na ordem do ser: isso é capital. Mas, do ponto de vista preciso que estamos adotando no momento, não é isso que nos interessa. Trata-se da estrutura intrínseca da subsistência, por assim dizer, e não de sua função no ente.

43. τελἐον pode significar τἐλο ou πἐρα. Constatamos essa relação semântica entre as duas concepções da estrutura da subsistência.

44. Mas Caetano parece ter concebido a subsistência “em linha com a essência”, e não somente como pertencente a ela. Conservar a estrutura que ele propõe não significa limitar o significado que ele atribui a ela. Essa maneira de conceber a estrutura da subsistência pode, como sabemos, ser reivindicada de Santo Tomás; cf. III, q. 19, a. 1, ad. 4. 

45. Ela não a exerce propriamente: explicamos acima como a “tese da ordem” admite organicamente a ausência de subsistência própria. Não voltaremos a isso.

46. É, portanto, uma questão de um esse mensurado in actu, um esse que é do tipo actus entis.  Um excelente trabalho, do R. P. Patfoort, a ser publicado em breve, estabelece peremptoriamente esse ponto a partir de Santo Tomás; o autor sustenta a “tese do êxtase”.

47. Cf. p. 48, n. 1. 

48. III, q. 75, a. 4.

49.  Essa correspondência entre o princípio e o termo é muito bem conhecida e não vale a pena enfatizá-la. (…[?])

50. Princípio somente radical, porque a limitação inerente ao ente criado supõe um princípio formal e realmente distinto do ser mesmo. No Ato puro, é o Ato mesmo que é princípio de mensura, tanto radical quanto imediatamente.

51. A maneira pela qual o objeto próprio, supostamente alcançado, conclui a operação e seu princípio. 

52. Unidade de ordem que poderia ser comparada, dentro do ato de ser, à de um todo potestativo: cada aspecto do ente participa do único ato de ser.

53. Desse modo, podemos mensurar, por assim dizer, pelo número das características “ordinárias” que foram preservados, o quão “próxima” a Humanidade está do caso “ordinário”. (…[?])

54. Basta comparar as quatro características duas a duas. (…[?])

55. Ou a possibilidade lógica, não a [possibilidade] real.

56. O argumento de conveniência pode ter grande força quando, por exemplo, especifica um determinado ponto em virtude da harmonia que deve sustentar com uma ordem já conhecida. Mas quando se trata das realidades primeiras, fundamentais e, acima de tudo, gratuitas, não podemos considerar que um argumento de conveniência possa ser decisivo.

57. (…[?])

58. Cf. p. 58, n. 1.

59. Entretanto, não em todos os aspectos: o que há em comum entre elas é justamente a fé.

60. Santo Tomás frequentemente faz essa observação a respeito dos “simples” ou menores: o instinto da fé os adverte do que é suspeito; mesmo que seja apresentado de forma aparentemente autoritativa, suspendem seu assentimento (cf. II-II, q. 2, a. 6, ad. IIIum). O mesmo princípio pode ser aplicado aos próprios teólogos, embora o modo como ele é aplicado seja diferente: não dar consentimento a uma conclusão que não esteja suficientemente fundamentada, sendo o medo do erro imposto ao menos pela possibilidade da conclusão contrária. 

Ousamos acrescentar que Santo Tomás também enfrentou essa hesitação, que nesse caso foi salutar, já que ele manifestamente apoiou as duas “teses”. Permaneçamos discretos. Observemos, porém, em um nível mais modesto, que a “tese” do esse secundarium supõe uma consciência muito nítida da realidade, certamente não autônoma, mas própria e distinta da essência como realidade concreta no ente. Evidentemente, Santo Tomás nunca negou que, no ente material, a essência é realmente distinta do supósito. Mas, como lembramos (supra, p. 32, n. 1 ss.), com relação ao ente imaterial, Santo Tomás só tomou consciência dessa mesma distinção depois de 1268. Isso sugere que Santo Tomás não foi levado, antes de 1268, a considerar formalmente e a definir precisamente a relação entre essência e supósito: de fato, nesse caso, ele teria afirmado explicitamente sua distinção real para todo ente, ao passo que negou essa distinção para o ente imaterial até 1268 e, até onde sabemos, não afirmou explicitamente essa mesma distinção para o ente material.

A consequência é de fácil constatação. Vamos expressá-la primeiro, no intuito de sermos mais claros, de uma maneira muito abrupta. Se não mantivermos firme e claramente a distinção real entre essência e supósito, a “tese” do esse secundarium implica uma contradição metafísica. O esse, no supósito, é tornado unívoco: uma vez que, no supósito como tal, qualquer distinção é impossível; a unidade necessária do esse exclui, portanto, qualquer ordem no esse, no ato de ser. Portanto, a identificação do supósito e da essência excluiria o esse secundarium.

Ora, não se trata, evidentemente, de imputar a Santo Tomás o erro de ter identificado o supósito e a essência no ente material; mas parece claro que, antes de 1268, ele não analisava em si e de modo preciso a relação dessas duas coisas entre elas e com o ato de ser. Abordando a questão do esse do Verbo encarnado nesse estado de espírito, Santo Tomás considerou quase que espontaneamente o supósito (o que é manifesto), e não considerou a realidade original da essência concreta (o que não é manifesto); a partir de então, nada de esse secundarium (…[?]). A distinção entre o ente criado imaterial e o Ato puro exigia, ao contrário do que é requerido do ente material, a consciência explícita da realidade evidentemente natural – dada e secundária, mas própria e distinta da essência em todo ente (…[?]) o supósito tem o ser, mas há uma ordem intrínseca e íntima ao ato de ser. Esse outro pressuposto mental, também implícito, normalmente comandava a afirmação do esse secundarium dentro do esse uno e único do Verbo Encarnado: uno segundo a ordem, único segundo o Supósito. É manifesto que as duas afirmações, do esse secundarium, por um lado, e da distinção real entre supósito e a forma ou essência, por outro, são correlativas. Elas não são também contemporâneas? Nós nos limitamos a propor a questão

61. Isso é possível, mas certamente não é inevitável. 

62. Produzir o ser, isto é, criar, e preservar o ser, ambos pertencem à totalidade da Trindade. Do nosso ponto de vista, não é preciso fazer distinção entre essas duas coisas. Portanto, não faremos essa distinção e usaremos um termo ou outro equivalentemente. Isso não quer dizer que as duas “teses” não possam ser igualmente comparadas do ponto de vista da “criação e conservação”, mas esse não é o nosso intuito.

63. Essa é uma outra maneira de expressar a distinção real entre a essência subsistente e a essência mensurante.

64. E inseparáveis. Há inclusive involução entre essas duas coisas no ente criado ordinário; cf. p. 48, n. 1. 

65. Essa mesma relação pode ser vista nos efeitos criados, ou nas operações especificadas por esses efeitos, ou no Princípio dessas operações. Este último aspecto, que pertence à teologia trinitária e sua implementação no Ato da Encarnação, será deixado de fora do Ato.

66. Trata-se sempre do “subsistir” que é próprio à essência concreta: já que é isso que temos de considerar, no âmbito do ato de ser, por certo.

67. Evidentemente, há somente determinação de algo. 

68. As duas concepções correspondem, como vimos, aos dois aspectos da essência, “essência subsistente” e “essência mensurante”, e, assim, correspondem à posição radical do ente criado. Eliminar um dos dois aspectos seria, ao menos [de fato], esquecer que a subsistência segue à analogia do ser, pois é isso que necessariamente a faz abraçar a estrutura do ente concreto. 

69.  Segundo a segunda concepção, ou seja, por modo de atuação

70.  É apenas mensurando-o que podemos ver que ela [o] “possui”, que tem em sua potência o ato de ser (?).

71. Podemos nos referir útilmente à distinção que já explicamos (supra, p. 48, n. 1): a essência é, por um lado, co-princípio e, por outro, termo (não adequado) do ato de mensurar intrinsecamente o ente. Mostramos que essa distinção, que é puramente formal para o filósofo, é real para o teólogo. Segundo a “tese do êxtase”, o primeiro membro da distinção é suprimido; segundo a “tese da ordem”, os dois membros permanecem; eles são realmente distintos e especificam, respectivamente, a operação criadora e a operação assuntiva. 

72. Cf. p. 71, n. 1.  

73. A distinção a seguir sumariza os dois pontos de vista: 

A essência concreta de um ente criado ordinário subsiste segundo uma subsistência própria: isso nas condições reiteradamente especificadas no decorrer destas páginas.

A Humanidade, concebida segundo a “tese da ordem”, subsiste no Verbo segundo uma subsistência que lhe pertence [de fato], mas que, em virtude de sua estrutura, não lhe pode ser própria.

A Humanidade, concebida segundo a “tese do êxtase”, subsiste no Verbo sem de modo algum possuir uma subsistência própria; a Humanidade é atuada puramente no Subsistir incriado do Verbo.

Essa maneira de se expressar não dará margem a nenhuma ambiguidade após os devidos esclarecimentos dados no texto.

74. Ou de “criação passiva”.

75. Por exemplo, P., q. 54, a. 3: João de Santo Tomás, In Primam Partem, q. 7, a. 1, n. 10, ed. de Solesmes, p. 549s.

76. Não é uma exigência a priori, dado que não há essência separada de um ato de ser, mas uma exigência concomitante à essência que possui essa “disposição última”. 

77. (?)

Tradução por Abner Benedetto; retirado de Revue Thomiste, Tomo LIX, p. 32-78, Janeiro-Março, 1959.

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