Santo Agostinho
393-394
CAPÍTULO I
[…]
3. Deve-se entender o céu como criatura espiritual, perfeita e sempre bem-aventurada desde que foi criada, e a terra, pelo contrário, como matéria corporal ainda imperfeita, porque a terra, diz, era invisível e vaga e as trevas cobriam o abismo, parecendo significar por essas palavras a informidade da substância corporal? Ou a informidade de ambas está indicada também nestas últimas palavras: da corporal, pelo que foi dito: A terra era invisível e vaga? E da espiritual, pelo fato de dizer: E as trevas cobriam o abismo? Assim, traduzidas alegoricamente essas palavras, entendamos o abismo como a natureza tenebrosa e informe da vida, enquanto não se converte para o Criador, sendo este o único modo pelo qual se possa formar, para deixar de ser abismo e ser iluminada, e assim não ser tenebrosa. Em que sentido foi dito: As trevas cobriam o abismo? Acaso porque não havia luz? Pois, se existisse, estaria acima e como que difundida sobre a superfície, o que acontece na criatura espiritual, quando se converte para a luz imutável e incorporal, que é Deus.
CAPÍTULO II
De que modo Deus disse: “Faça-se a luz”: por meio de uma criatura ou do Verbo eterno?
4. De que modo Deus disse: “Faça-se a luz”? No tempo ou na eternidade do Verbo? E se no tempo, certamente, de modo mutável; pois como é possível entender-se que Deus tenha dito isso a não ser por meio de uma criatura, visto que ele é imutável? E se Deus disse por uma criatura: “Faça-se a luz”, como a luz seria a primeira criatura se já existia uma criatura por meio da qual Deus disse: “Faça-se a luz”? Ou a luz não seria a primeira criatura, visto que já fora dito: No princípio, Deus fez o céu e a terra, e assim teria sido possível produzir-se a voz, por meio de uma criatura celeste de modo mutável e no tempo, pela qual Deus disse: “Faça-se a luz”? Se assim é, o que foi feito foi esta luz corporal que vemos com nossos olhos corpóreos, ao dizer Deus: “Faça-se a luz” por meio de uma criatura espiritual que ele já fizera, quando no princípio fez o céu e a terra. Desse modo pôde dizer à maneira divina: “Faça-se a luz”, por meio de um movimento interior e oculto de tal criatura.
5. Acaso soou mediante um corpo a voz de Deus que dizia: “Faça-se a luz”, como soou mediante um corpo a voz de Deus que dizia: Tu és meu Filho amado: e isso mediante uma criatura corporal, que Deus fizera quando no princípio fez o céu e a terra, antes de fazer a luz, a qual foi feita pelo som dessa voz? E se assim é, em que língua soou esta voz, quando Deus dizia: “Faça-se a luz”, pois ainda não havia diversidade de línguas, a qual se deu posteriormente na construção da torre depois do dilúvio? Qual era essa única língua pela qual Deus falou: “Faça-se a luz”? Havia alguém que a pudesse ouvir e entender? A quem se dirigia essa voz? Ou este pensamento ou conjetura é absurdo e carnal?
6. O que diremos? Ao se dizer: “Faça-se a luz”, por acaso o que se entende no som da voz, não é a voz de Deus que se percebe e não o som corporal? E essa voz pertenceria à natureza do Verbo do qual se diz: No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus? Uma vez que dele se diz: Tudo foi feito por ele, é manifesto que também a luz foi feita por ele, quando Deus disse: “Faça-se a luz”. Se assim é, embora tenha sido feita uma criatura temporal pela palavra divina emitida no Verbo eterno, é eterno o que Deus disse: “Faça-se a luz”, porque o Verbo de Deus é Deus com Deus, o Filho único de Deus, coeterno com o Pai. Quando dizemos: “quando” e “algumas vezes”, as palavras são pronunciadas no tempo; no Verbo de Deus, porém, a palavra é eterna quando se deve fazer algo; e se faz quando está determinado no Verbo que devia ser feito; nele não há “quando” ou “algumas vezes”, porque todo ele é Verbo eterno.
CAPÍTULO III
O que é aquela luz? — Por que não foi dito: Faça-se um céu etc. — Primeira resposta
7. E o que é aquela luz que foi feita? É algo espiritual ou corporal? Se espiritual, ela pode ser a primeira criatura, já perfeita em virtude dessa palavra, que primeiramente denominou “céu”, quando foi dito: No princípio, Deus fez o céu e a terra, de modo que Deus ao dizer: “Faça-se a luz”, e foi feita a luz, chamando-a a si como Criador, entenda-se que sua conversão foi feita e iluminada?
8. E por que foi dito: No princípio, Deus fez o céu e a terra, e não foi dito: No princípio, Deus disse: “Faça-se o céu e a terra, e foram feitos o céu e a terra”, do mesmo modo como está narrado: Deus disse: “Faça-se a luz”, e foi feita a luz? Acaso pelos nomes “céu e terra” dever-se-ia, por primeiro e em geral, entender e declarar o que Deus fez, e, depois, por partes, acompanhar como fez, quando se diz a respeito de cada obra: Deus disse, ou seja, porque fez pelo Verbo tudo o que fez?
CAPÍTULO IV
Outra resposta à questão anterior
9. Quando primeiramente era feita a informidade da matéria, seja espiritual, seja corporal, não se deveria dizer: Deus disse: Faça-se? Com efeito, a imperfeição, sendo dessemelhante daquele que é o mais sublime e o primeiro, pois, por sua informidade tende para o nada, não imita a forma do Verbo, sempre unido ao Pai, pelo qual Deus diz tudo eternamente, não pelo som da voz, nem por pensamentos que envolvem o tempo, mas pela luz coeterna da sabedoria que ele gerou. Mas imita a forma do Verbo, sempre e de modo imutável unido ao Pai, quando de acordo com a conversão ao que sempre e verdadeiramente existe, ou seja, ao criador de sua substância, ela toma sua forma e se torna criatura perfeita segundo a sua espécie. De modo que no que a Escritura narra: Deus disse: “Faça-se”, entendamos a palavra incorpórea de Deus na natureza de seu Verbo coeterno que chama a si a imperfeição da criatura para que não seja informe, mas receba sua forma de acordo com que cada uma é feita seguindo uma ordem. Nesta conversão e formação, a seu modo imita o Deus Verbo, ou seja, o Filho de Deus, sempre igual ao Pai com total semelhança e igual essência, pela qual ele e o Pai são um. Não imita, entretanto, esta forma do Verbo se, afastada do Criador, mantém-se informe e imperfeita; por isso, não se faz menção do Filho, porque é Verbo, mas somente porque é princípio, quando se diz: No princípio, Deus fez o céu e a terra. O começo da criatura se insinua ainda na informidade da imperfeição; mas se faz menção do Filho, que é também o Verbo, pelo fato de estar escrito: Deus disse: “Faça-se”, e, assim, pelo fato de ser o princípio, insinua o começo da criatura por ele existente ainda imperfeita. Mas pelo fato de ser Verbo, insinua a perfeição da criatura, que chamou a si, para se revestir de forma aderindo ao Criador, e, imitando, segundo a sua espécie, a forma inerente eternamente e de modo imutável ao Pai, por quem de modo permanente o Verbo é o que é o Pai.
CAPÍTULO V
A criatura intelectual é informe se não se aperfeiçoar convertida para o Verbo divino — Por que o Espírito Santo pairava sobre as águas antes de se dizer: Deus disse?
10. O Verbo Filho não tem uma vida informe. Para ele o ser é viver, mas também viver é o mesmo que viver sábia e bem-aventuradamente. Mas a criatura, ainda que espiritual e intelectual ou racional, a qual parece ser a mais próxima do Verbo, pode ter uma vida informe, pois se para ela ser é o mesmo que viver, não é o mesmo viver que viver sábia e bem-aventuradamente. Pois, afastada da Sabedoria incomutável, vive néscia e miseravelmente, o que representa sua informidade. Reveste-se de forma, porém, quando se converte para a incomutável luz da Sabedoria, o Verbo de Deus. Por ele, pois, subsiste de qualquer modo que exista e viva, converte-se para ele para viver sábia e bem-aventuradamente. O princípio, pois, da criatura intelectual é a eterna Sabedoria; este princípio, permanecendo em si de modo incomutável, de forma alguma, por uma oculta inspiração da vocação, cessa de falar à criatura de quem é princípio, para que se converta àquele do qual procede, porque não pode se formar e aperfeiçoar de outro modo. Por isso, interrogado sobre quem era, respondeu: “O princípio, eu que vos falo”.
11. O que o Filho fala, o Pai fala, porque o que o Pai fala denomina-se Verbo, e este é o Filho; o que Deus fala de maneira eterna, se é lícito empregar essa maneira, é o Verbo coeterno. Pois é inerente a Deus a maior benignidade, também santa e justa; é na verdade um amor que se volta para suas obras, não por necessidade, mas por munificência. Por isso, antes que se escrevesse: Deus disse: “Faça-se a luz”, a Escritura fez preceder: E o Espírito de Deus pairava sobre as águas, ou porque quis denominar pelo nome “água” toda a matéria corporal, para assim insinuar de onde foram feitas e formadas todas as coisas, as quais já podemos reconhecer cada uma em sua espécie, ou ainda denominou água porque vemos que todas as coisas na terra são formadas e crescem em variadas espécies a partir de uma natureza úmida; ou porque quis designar a vida espiritual como flutuante antes da forma da conversão. O Espírito de Deus pairava certamente, pois o que quer que fosse que ele começara a formar e a acabar estava sujeito à boa vontade do Criador, de modo que, falando Deus em seu Verbo: “Faça-se a luz”, em sua bondade, ou seja, em seu beneplácito permanecesse o que foi feito segundo a sua espécie. Portanto, é justo que agradasse a Deus, conforme diz a Escritura: E foi feita a luz; e Deus viu a luz porque era boa.
Excerto de: S. AGOSTINHO; De genesi ad litteram (Comentário Literal ao Gênesis), lib. I, cap. I-V, Paulus, edição Kindle.
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